quinta-feira, 16 de julho de 2015

O ARCAICO E O MODERNO



A amizade epistolar entre Mário de Andrade e Pio Lourenço Corrêa


Pio Lourenço Corrêa (1875–1957), ao contrário dos demais correspondentes de Mário de Andrade, além de ser dezoito anos mais velho, não é um escritor, artista ou intelectual conhecido. Fazendeiro, viveu em Araraquara e, desde menino, foi grande amigo de Carlos Augusto de Andrade, pai de Mário.

Como classificar esse homem invulgar e contraditório que, embora ligado à oligarquia, não representa o protótipo de uma certa ordem social, de um estilo de vida, de uma concepção arraigada de poder? Na paisagem de sua região natal, ou no contexto mais restrito da família, Pio emerge antes como anomalia, pois se alguns traços de sua personali-dade o identificam à imagem tradicional do senhor, muitos outros o afastam do modelo de que, sem dúvida, derivou. Nas diversas etapas da vida em que foi comerciante, banqueiro, lavrador, sempre apresentou um perfil atípico, alheio aos hábitos da classe dominante, indiferente à acumulação de dinheiro, à expansão das terras ou ao prestígio.

Na verdade, o espaço em que se situa – como atestam os inúmeros instantâneos fotográficos nos quais aparece – não é o mesmo das pessoas que se dispõem a sua volta: se elas encaram atentas a objetiva, ele está frequentemente de perfil e isolado, como um personagem de Piero della Francesca; ou, numa pose frontal, com as mãos espalmadas sobre os quadris e o olhar cintilante, enquanto os demais se entreolham e parecem conversar entre si. É um homem solitário, mas não um desadaptado.

Filho do segundo casamento de um patriarca de 67 anos, já encontrou ao nascer uma família numerosa e disciplinada: onze irmãs e irmãos, cunhadas e cunhados, sobrinhos adultos, hábitos e valores arraigados. Dos 12 aos 13 anos, no curto espaço de um ano, perde o pai e a mãe, faz uma breve estadia no Seminário Diocesano de São Paulo e vai viver nessa cidade sob a tutela do parente e padrinho Joaquim de Almeida -Leite Moraes, agregando-se à família do mesmo, a família materna, hospitaleira e caudalosa de Mário de Andrade.

Sabe-se pouco de sua formação intelectual em São Paulo, mas temos notícia de que a 10 de dezembro de 1889 – com 14 anos – presta exames de aritmética e francês no Curso Anexo da Faculdade de Direito, sendo aprovado com os graus Simplesmente, na primeira, e Plenamente, na segunda. É sua intenção prosseguir os estudos na capital, talvez cursar essa faculdade e ingressar na diplomacia.

A partir dos 15 anos já é quase independente, responsável pela mesada, que vai apanhar em Santos, pontualmente, na casa comissária de Francisco de Almeida Leite Moraes, irmão de seu padrinho, anotando com bela caligrafia a despesa e a receita no livro de assentamentos que o padrinho lhe confia. Pelos assentamentos e retratos da época vemos que se transformou num rapazinho urbano, de aparência agradável e elegante, que frequenta o teatro e se dedica à leitura. Em 1892, aos 17 anos, na companhia de seu tutor e irmão Antonio Lourenço, vinte e sete anos mais velho, vai para Buenos Aires, e se hospeda com ele na Legação Brasileira, chefiada por Assis Brasil.

Com a morte de Leite Moraes, em 1895, quando se desfaz o núcleo patriarcal que abrigava tantos membros da família – inclusive ele próprio –, Pio Lourenço se transfere com a cunhada Isabel, viúva de seu irmão Cândido Lourenço, e com os três órfãos, seus sobrinhos, para uma casa da rua Major Sertório. “Aí vivi eu um dos anos mais felizes de minha vida”, anota ele, cinquenta anos mais tarde, à margem de uma carta da cunhada, que guardara com saudade.

Tem 20 anos quando, em 1896, Antonio Lourenço chama-o a Araraquara, sob o pretexto de que a herança que recebera do pai está sendo afetada e é tempo de ele começar a tratar da vida.

A separação da casinha da rua Major Sertório foi dolorosa, pois já se habituara ao ritmo movimentado da cidade e estava apaixonado pela sobrinha Zulmira, dois anos mais moça. Dois anos depois, já estabelecido e com a vida assentada, casa-se com ela, que é a segunda filha de seu irmão Cândido Lourenço, e neta pela mãe do padrinho Leite Moraes.

O primeiro decênio do casamento não é tranquilo para o jovem casal. Estudos interrompidos, acomodações de carreira, epidemias e crises políticas, graves problemas familiares, tudo isso deixou marcas na sensibilidade exacerbada de Pio Lourenço, e foi provavelmente responsável pelos mal-estares que o vão acompanhar pela vida afora: ciática, dor de estômago, depressões nervosas, temperamento progressivamente solitário.

Mas embora retraído, e talvez tímido, não dispensa interlocutores, precisa de alguém por perto a quem possa impor sua vontade e que acate as suas razões. Tem o temperamento autoritário, mas, talvez por ser o caçula de uma extensa irmandade, sente-se mais seguro exercendo a tirania em círculos fechados, na cidade do interior onde nasceu, na fazenda, na chácara, nas casas que construiu. O tempo e os acontecimentos fizeram dele um misantropo, uma “espécie de neurastênico de profissão”, temido na família, como o vai definir Mário de Andrade.

Esse homem inteligentíssimo, culto, civilizado, é em tudo original: no mundo cerrado que construiu e no qual se encasulou, no horário das refeições, na concepção de conforto, na peculiar utilização do dinheiro, na maneira pessoal de se vestir e calçar, no desprezo soberano por toda e qualquer sujeição à moda. A correspondência com Mário de Andrade será a abertura mais prolongada, mais importante que manterá com o mundo exterior.

O conjunto da correspondência é constituído por 105 cartas e bilhetes de Pio Lourenço e 84 cartas de Mário de Andrade, datadas de 1917 a 1945. Devido ao temperamento ordeiro e escrupuloso dos dois correspondentes, o conjunto foi preservado em perfeitas condições. Não obstante, Pio Lourenço só começou a colecionar as cartas do amigo depois que o prestígio deste estava, de certo modo, consolidado. Quando essa curiosa amizade epistolar se inicia, ele tem 41 anos e meio, e Mário de Andrade pouco mais de 23. Dois acontecimentos familiares foram decisivos na aproximação dessas duas pessoas tão diversas em temperamento, concepção de vida, normas de conduta, preferências intelectuais e artísticas, idéias políticas: as mortes do irmão mais moço e do pai de Mário de Andrade.

A morte do irmão Renato dá-se a 22 de junho de 1913, quando Mário está entrando na casa dos 20 anos e inicia seus cursos de teoria musical no Conservatório, como aluno praticante. Renato, menino extremamente dotado e o predileto da família, teria sido certamente pianista. A morte inesperada, o excesso de trabalho e a convalescença de “um amor besta de adolescência” contribuíram certamente para a séria depressão nervosa que atingiu Mário. Em carta a Manuel Bandeira, de 29 de maio de 1931, ele relata como foi o bom senso de seu tio que o salvou: Pio levou-o para a fazenda em Araraquara e deixou-o lá sozinho. Aparecia de tempos em tempos para saber se não estava precisando de nada e ia-se embora. Quando Mário voltou da fazenda, estava curado. É esta a primeira vez que a mão amiga de Pio Lourenço intervém no seu destino.

Quatro anos mais tarde, a 15 de fevereiro de 1917, Carlos Augusto de Andrade morre de uma crise cardíaca. Mário ainda não tinha se encontrado como escritor e atravessava o período do “ruim esquisito” a que Manuel Bandeira se refere. Se a primeira morte o surpreendeu na disputa com o irmão, a segunda ocorre quando ainda não havia resolvido a “desafetividade” entre ele e o pai, que deixou marcas tão profundas como atestam as cartas e os Contos Novos.

A primeira carta de Mário se perdeu, mas pela resposta de Pio Lourenço percebemos que ela acompanhava a oferta de seu primeiro livro, Há uma Gota de Sangue em Cada Poema (1917), e que o autor pedia a opinião sobre ele, pondo-se diante do tio para ser julgado.

Pio Lourenço rejeita vivamente a responsabilidade, sentindo-se incapaz de julgar o que quer que venha dos filhos de Carlos Augusto:

Eu sou o tio Pio, eu sou o amigo do Papai. O Papai, em longos anos de convivência que eu vivo e viverei revivendo, obliterou em mim o livre exame para examinar essas coisas, quando elas vêm do Carlinhos, do Mário ou da Lourdes. Eu me sinto perfeitamente suspeito: é como se houvesse de emitir juízo sobre obra minha.

Mas se não pode julgar, pode, como camarada, exigir tarefas, trocar favores. Por exemplo: pedir que Mário lhe compre mercúrio para trabalhos na fazenda; que procure nas casas do ramo os anéis de metal para identificar as galinhas da raça Bresse compradas no Rio de Janeiro; que se empenhe de corpo e alma na complexa aquisição de um presente para a “impressionante afilhada” de casamento; que lhe compre a Encyclopédie Scientifique, “publiée sous la direction du dr. Toulouse”, em que um dos volumes é dedicado aos insetos himenópteros... Pede-lhe ainda o “estafante favor” de folhear os dez primeiros volumes da Revista Lusitana, que está à venda, verificar se a obra está em ordem e se vale mesmo os 800 mil réis que estão pedindo. “É espiga e grande” – comenta meio contrafeito – “que o trabalho de folhear dez volumes de cerca de 300 páginas não é festa!”

Mário de Andrade, por seu lado, pede a Pio Lourenço um sem-número de pequenos favores: informações sobre problemas de linguagem, sobre hábitos de animais e de insetos, crendices e costumes da região:

Escarafunche bem a memória e veja se tira dela algum provérbio, abusão, -frase feita, quadrinha, superstição que imagine não recolhida e vá mandando. (...) Veja se se lembra de qualquer espécie de documento folclórico referente ao boi.

Em outro momento pede ao tio que, “com a sua larga experiência da nossa natureza paulista”, tente identificar um vespão que mata e come aranha, citado por Anchieta numa de suas cartas vicentinas...

A chácara onde mora Pio Lourenço em Araraquara é a réplica rural da rua Lopes Chaves. Mais que em sua própria casa, é ali – “na paz sapientíssima da chácara” – no universo ordenado e protegido que Mário trabalha com mais prazer. Ora sentado debaixo do grande ceboleiro, junto à mesa de pedra rosada do rio Chibarro, ora olhando a paisagem tranquila, os três ipês floridos, o gadinho pastando além da cerca. Onde esteja é assaltado pelo desejo da chácara. Em plena viagem ao Amazonas, escreve lamentando que por aquela altura não esteja chegando para o descanso de fim de ano. Só descansa realmente ali. É ali que deseja mergulhar no trabalho – como fez quando escreveu Macunaíma. E por isso projeta, um dia, “estourar pela sua casa adentro munido dum organete e volumosos embrulhos de livros e notas”, para redigir afinal Na Pancada do Ganzá. O amigo que sossegue: “O organete não será para tocar Wagner e a comparsaria da bulha”, mas para o fazer escutar as melodias do Brasil. Não pretende incomodar ninguém, pede apenas “quarto e silêncio”.

A chácara, enfim, é o seu vício, a sua Pasárgada, onde são satisfeitas as suas “vontades rurais”: comer macuco, sentir o sabor verdadeiro do mel de jataí, saborear “filé de carneiro gordo de forno, preparado com sal e lenha de angico”, ceder à “suave convicção de que um arroz com baguaçu vale mais que um prestígio”. A chácara amacia tudo, mas apesar de ser um nirvana dissolvente, não impede que Macunaíma exploda nela em seis dias febris de inspiração, no quarto contíguo ao de Pio e Zulmira.

A correspondência não se refere a Macunaíma, que deve ter ficado na memória de Pio Lourenço como um pecado hediondo a ser esquecido. Em compensação, abre espaço para a discussão deAmar, Verbo Intransitivo, sobretudo na tradução em língua inglesa. Mas, como atesta a carta de 10 de março de 1927, já tinha gostado do livro desde a leitura da versão original, mesmo fazendo “muitas e severíssimas objeções, já quanto à ortografia, já quanto à sintaxe, já quanto ao estilo e – arre! – já ainda quanto à geral orientação artística”.

A tradutora norte-americana, Margaret Richardson Hollingsworth, deve ter tido opinião semelhante à de Pio Lourenço, e quando a editora Macaulay remeteu ao autor a versão inglesa, Mário ficou horrorizado. Ao discutir a dificuldade de fazer o livro original ser aceito pela sensibilidade norte-americana, ele concorda, imprudentemente, que, por causa do tamanho do volume exigido pelo editor, os diálogos interiores, disseminados pela obra, fossem substituídos por “alguma descrição de paisagem”, quando necessário. A tradutora não se limitou a isso: modificou integralmente “a geral orientação artística do livro”, interferindo ainda, profundamente, no caráter psicológico da protagonista. Referindo-se em carta a essa catástrofe, Mário comentou que achava, sem modéstia, o livro “bem ruinzinho”, irregular e com páginas que já não assinaria, mas, mesmo assim, ele representava sem dúvida “um livro de arte”: “O trabalho da tradutora foi converter um livro de arte em um livro de comércio, dessas histórias gostosas que a gente lê no trem, no bonde etc.”

Mas como a tradução lhe valera uma “verdadeira conquista”, que era o aplauso do tio, dava tudo por bem empregado:

Bem haja pois a senhorita Margaret – concluía – que entre as tremendas desilusões que me deu, sempre me deu, além dos dólares que estou acostumado toda vida a desprezar no gasto imediato, o seu aplauso a uma obra minha.

Em resumo, foi uma obra degradada que empolgou Pio Lourenço e provocou, em 1934, as cartas entusiásticas dos dias 21, 22, 23 e 27 de setembro, e a compra de mais dois exemplares suplementares de Fräulein, para presentear às amigas. Esse episódio foi decisivo na sua avaliação subsequente do talento do amigo, tendo como fator principal a substituição dos idiomas. A tradução descaracterizou completamente a mensagem artística original, mas na medida em que para Pio Lourenço a língua inglesa era a mais civilizada de todas as línguas, ela purificava, sacralizava o território suspeito e selvagem de Mário de Andrade.

É através de um livro deformado, transposto para outra língua, que Pio Lourenço conclui a sua iniciação na modernidade brasileira. Dali em diante, o interlocutor ranheta e autoritário de 1922 vai se abrandando, tornando-se mais receptivo, oferecendo-se como colaborador possível para as traduções futuras. Traduções, é claro, mais afeitas ao gosto dominante – como as preconizadas por miss Hollingsworth.

Por outro lado, “a deliciosa aventura” de Fräulein deve ter provocado um período de recordações, de lembranças de episódios e pendores da juventude que, com o aprofundamento da amizade, e o afrouxamento da censura, emergiam agora espontaneamente entre os dois amigos. Acho que é assim que devemos entender os anos seguintes da correspondência na qual parece despontar em Pio Lourenço a esperança de um entendimento estético com o amigo e a possibilidade de também ter talento literário.

É então que tira da gaveta velhos esboços como O Caso do Barraqueiro e Garapa Azeda, que talvez pudessem ser refeitos. E que lembra episódios extraordinários de sua jeunesse dorée interiorana, quando ainda era solteiro, amava os cavalos ajaezados e gostava de escandalizar a parentela da cidadezinha, idealizando carros alegóricos em que as raparigas locais posavam de gregas.

No início de 1942, provavelmente durante uma estadia de Mário na chácara e depois de algumas recordações nostálgicas, combina com ele reproduzirem literariamente, cada um a seu modo, estilo e temperamento, um desses episódios pelo qual Mário se apaixonou. O episódio escolhido é registrado em cinco cartas do escritor e seis de Pio, e merece uma breve análise.

As divergências quanto ao tratamento do personagem central surgem desde o início e decorrem da própria concepção que cada um tinha do que seja a verdade da vida e a verdade da arte. De certo modo, Pio está preso a um amor genérico da verdade: confia sem hesitação no “sol velhíssimo da verdade”. E por isso, eu acrescentaria, é que faz na correspondência a defesa da fotografia em detrimento da pintura, dando vivas à Kodak de Mário contra os Caipiras Negaceando de Almeida Júnior. E desafia “o mais agudo engenho humano a produzir qualquer coisa igual ao inigualável quadro naturalista” produzido pelo instantâneo fotográfico.

Mário, ao contrário, pende para a mentira da arte:

O que me interessa no caso – diz ele a certo momento – não são as verdades, mas aquilo em que as verdades locais e episódicas iam se transformar, para mim, num dado de universalidade. E para isso eu deformava tudo, em proveito da “nova síntese” que é a arte.

Para Mário, “era a verdade da arte X a mentira da vida; a deformação X a transposição fiel da realidade”.

Quanto aos personagens e ao entrecho, Mário explica que conservaria alguns traços verdadeiros, exageraria outros etc. No caso presente, o que ia interessá-lo era o homem (e não o personagem feminino), mas não iria descrevê-lo como um tipo, um exemplar particular, e sim como protótipo, isto é, naquilo em que era “representativo de uma mentalidade brasileira numa dada época psicossocial do Brasil”.

O que me interessou – conclui – foi retratar aquela noção ríspida, um bocado estreita mas elevada e de forte defesa social, com que ali pela caudinha do século passado o homem se conservava numa noção tamanha de honradez, de dignidade, de respeito aos seus compromissos quaisquer (no caso matrimoniais), a ponto de fazer os maiores sacrifícios de sensibilidade e lembranças gratas para impedir que uma mulher livre guardasse “exposto” um retrato dele. Essa concepção, em favor da qual, está claro, eu não hesitaria em exagerar os dois tipos, tornando aliás o homem bastante mau e antipático, favorecendo a mulher na luz roxa de bastante infeliz. Enfim um fenômeno irritante de patriarcado (...).

Mas, refletindo bem, viu que a deformação poderia ferir o amigo e acabou desistindo do conto que, se tivesse prosseguido na elaboração, denominaria “O retrato”, dada a perspectiva escolhida.

Mas não deixou de analisar a versão de Pio Lourenço, centrada na personagem feminina, referindo-se inicialmente à escrita: “(...) o problema da linguagem, esse, é irremovível entre nós.”

Concede que o conto está admiravelmente bem escrito no sentido da linguagem castigada, estilizada, gramatical etc., “mas é linguagem muito à feição dos que não podem se libertar de um estilo que, nem em Portugal, já não se usa mais”.

Em resposta, Pio Lourenço argumenta humilde, embora magoado:

Escrevi na minha [linguagem], ou na única que sei manejar. Um homem de 67 anos é quase um antepassado. É um documento histórico ambulante, que pode sentir ainda os choques da vida presente, mas não tem a energia precisa para os assimilar. Não sei, não posso absorver os eflúvios que dimanaram da Semana de Arte Moderna, tenho por eles invencível antipatia, talvez porque eles ponham as minhas fraquezas em evidência, e com isso me sinto diminuído entre os moços que os assimilam.

Apesar das divergências entre os dois, sentimos que está menos irônico e mais respeitoso das posições do antagonista. Quanto a Mário, não desistiu de conquistar o amigo. Por ocasião do aparecimento de Os Filhos da Candinha escreveu-lhe anunciando a próxima remessa do livro e diz que as crônicas que o compõem foram “dirigidas pra outra banda da arte, a beleza, o valor estético, a perfeição do dizer. Pode não ser para os outros” – conclui –, “mas para mim essas crônicas de Os Filhos da Candinha que o senhor receberá lá por abril ou maio são o meu livro mais bem escrito. O meu livro impossível de um português escrever”.

Pio Lourenço recebe o livro a 7 de agosto de 1943, acusa logo o recebimento “da visita conjunta” e trata “de ouvir um por um os rapazes” que lhe dão a melhor das impressões: “Tenho gostado muito dos meus novos amigos, entre os quais reconheci aliás dois ou três antigos interlocutores”, escreve em carta de 23 de agosto:

E, o que é mais, à medida que vamos entrando em maiores intimidades, aumenta a simpatia que vários membros da notável família me inspiraram. (...) O livro ainda não viu e não verá tão cedo a prateleira da estante. Anda por aqui, de mesa em mesa, de mão em mão, nesta sala quadradona e ampla, de que se constitui atualmente o primeiro enfeite. Já tem cosido à dobra da folha de rosto, por meio de um alfinetão grosso e comprido, a carta em que você declara ser este o seu livro mais bem escrito (...) Mot de la fin: gosto do livro: será guardado juntinho do Verbo Intransitivo.

Terminava o longo aprendizado dos dois amigos, a mútua iniciação em personalidades e concepções literárias tão diversas. Caminho bem mais complexo que a volta de uma ovelha ao aprisco.

Por essas razões – e outras a que vou aludir mais adiante – a correspondência pode ser abordada de outra perspectiva.

Vendo as cartas em conjunto – como estrutura funcional, não como documento –, percebemos que representam um todo orgânico. É uma estrutura fechada, coerente, com princípio, meio e fim, provocada por uma propulsão inicial (a publicação de um livro conjugada à morte do pai). Vem depois uma progressão ascendente, representada pelo debate intelectual dos dois correspondentes e, em consequência, o delineamento do acordo no episódio de Amar, Verbo Intransitivo(sobretudo através da versão norte-americana do livro). Segue-se um esforço de entendimento, com a aceitação de Os Filhos da Candinha, que se caracteriza por ser um entendimento puramente artístico, desta vez sem nenhuma conotação erótica, como acontecera com o livro anterior. Segue-se a estes um período depressivo, em que os correspondentes ontologicamente infelizes procuram se apoiar mutuamente, a introdução do tema da morte e a carta final em que Mário de Andrade, quinze dias antes de morrer, coloca com melancolia o tema da celebridade. Do ponto de vista intelectual, a correspondência se estende da estréia literária do escritor até sua entrada na posteridade.

Curiosamente, o cenário onde esta trajetória se efetua não é o do mundo das artes e das letras, como no restante do epistolário. Não é igualmente o mundo familiar, como podia parecer à primeira vista, uma vez que o interlocutor é um parente muito próximo. É o mundo envolvente, enfeitiçante da chácara, mundo fechado, diverso de todos os outros espaços. Eu ouso dizer que é o mundo onírico, odorante e sonoro (povoado de cigarras, cheirando a murta e magnólia, como diz Pio Lourenço), onde reina um casal de velhinhos afáveis e hospitaleiros, sempre à espera da chegada anual do visitante.

De tempos em tempos, para se retemperar, o visitante retorna e penetra nesse mundo encantando, vencendo a vigilância da coruja, que preside à entrada das cartas e visitas.

É nessa atmosfera amorosa e protegida que Mário de Andrade descansa e produz.

Uma série de fatores e pequenas coincidências – a que irei me referir – aliadas à tonalidade mágica da atmosfera parecem sugerir que a visão da chácara é uma fantasia compensatória e o seu dono Pio Lourenço, uma substituição. Uma dessas substituições muito frequentes nos sonhos, a que recorremos para abrandar as tensões e trapacear a censura. Ele não está ali por ele, mas por outra pessoa. Quem sabe substituindo Carlos Augusto, o grande amigo ausente a quem se refere, aliás, na primeira carta.

Pio Lourenço não é um parente qualquer, escolhido ao acaso dentro da família: é o amigo devotado de Carlos Augusto de Andrade. Quando aos 14 anos, órfão de pai e mãe, foi retirado do seminário e incorporado à grande família patriarcal de Leite Moraes, esta já havia estendido o seu braço protetor a Carlos Augusto, Maria Luiza e aos filhos que iam chegando. Passou toda a adolescência à sombra desse amigo mais velho, experiente, instruído e civilizado, que soube estabelecer com ele uma relação cordial, bem mais espontânea do que aquela que manteve com os filhos.

A lembrança afetuosa que Pio Lourenço guardou de Carlos Augusto, e mais tarde procurou transmitir aos filhos dele, divergia muito da imagem ríspida e fria que Mário fixa nas cartas e em várias narrativas bastante autobiográficas de Contos Novos, sobretudo “Peru de Natal”, de que o pai é protagonista latente. Em todas essas transposições deformou sensivelmente o original, exagerando as características negativas e ignorando os traços que poderiam sugerir complexidade ou ambiguidade. A deformação provém não apenas de convicções literárias (como explica na correspondência), mas um pouco porque perdeu o pai num momento de incompatibilidade, não tendo tido tempo de refazer o juízo da mocidade. Ora, prestando atenção verificamos que maltrata igualmente Pio Lourenço, ao transpô-lo na figura extraordinária de Joaquim Prestes em “O poço” ou no que seria o personagem masculino da versão que esboçou de “O retrato”. O modelo servia indiferentemente para Carlos Augusto e Pio Lourenço, mas na vida real ambos eram para ele homens de “nobreza inflexível”, podendo servir de exemplo, refúgio e inspiração para os artistas.

Neste sentido, a carta de 11 de maio de 1931, escrita na véspera do aniversário do “tio Pio da longe Araraquara”, serve de pretexto para, saudando-o pelos 56 anos (pois é mais fácil contar por carta o que sentia), comunicar o juízo verdadeiro que faz dele e dizer como preza a intimidade que, apesar das “diferenças de idade e de experiência de vida” se estabeleceu entre ambos:

Em vidas muito acidentadas e muito cheias de precariedades derivadas da curiosidade do mundo e da paixão por ele, como são em geral as vidas dos artistas e é esta minha, nada faz tanto bem, nada repõe a gente dentro da sua mais perfeita e sobrenatural finalidade que a presença dum homem de nobreza inflexível. A gente se garante nesse refúgio e cobra forças pra não derrapar definitivamente. (...) Às minhas “loucuras”, fantasias, -curiosidades, a sua simplicidade sistematizada de ser deu maior paciência, mais precisão de fortificarem-se no estudo; à minha sensibilidade, o senhor e sua vida trouxeram novos lados, desconhecidos antes, por onde ela se experimentasse e enriquecesse; e finalmente à riqueza milionária das minhas fraquezas veio a sua belíssima e tão nobre atitude moral pôr freios (...).

É uma carta filial, agradecida, reverente, que podia ter sido endereçada ao pai, se a morte não tivesse colhido antes do amadurecimento do filho.

Mas a meu ver o traço mais convincente da substituição é o convite que ele faz ao tio para que esteja presente, como convidado especial, ao Congresso da Língua Nacional Cantada que o Departamento de Cultura realiza em julho de 1937:

Desejaria intensamente que viesse – declara por carta – quanto mais não fosse para espiar a cara de Souza da Silveira e do Antenor Nascentes que virão e trazem teses.

Será realmente por esse motivo que desejava a presença de Pio Lourenço? Para lhe dar a alegria de se aproximar, ver de perto, trocar idéias com os dois linguistas que tanto admira e com os quais tem trocado cartas, sob o pseudônimo de Mota Coqueiro? Ou porque deseja exibir aos companheiros o tio de que ele se orgulha, tão aristocrático, gentil e civilizado em seu terno abotoado até o peito, como se usava em 1910? Ou estará, antes, exigindo a sua presença para que o “amigo de papai” testemunhe, por ele e por Carlos Augusto ausente, o respeito público que cerca naquele momento a antiga ovelha tresmalhada, aquela que foi impiedosamente vaiada na terrível Semana de 1922? Acaso, não é em momentos como esses que costumamos repetir a frase surrada, mas reveladora, “Imagine se seu pai fosse vivo!”?

Sob este enfoque, talvez um pouco fantasioso, a presença de Pio Lourenço no Congresso da Língua Nacional Cantada, ideado e presidido por Mário de Andrade, representaria o momento final de uma conversão, o episódio público e apoteótico que completaria agora a adesão artística de Pio aAmar, Verbo Intransitivo e Os filhos da Candinha.

A última etapa da correspondência (1938 a 1945) não conserva essa tonalidade vitoriosa. Mário projetou uma trajetória curta, ela está terminando e Pio Lourenço envelhece, no refúgio da chácara, sentindo adensar-se em torno dele uma névoa opaca, pesada, que lhe oculta os horizontes:

Cada dia me torno mais comparável a certas fêmeas de coccídeos, que segregam do corpo um líquido ceroso e abundante que, dissecando-se após exposição ao ar, adere à madeira onde está a bichinha, formando-lhe justo em volta do corpo uma valente e apertada prisão intransponível – confessara anos antes.

Mário, por sua vez, passado o episódio do Departamento de Cultura, ingressa no pior período de sua vida, período cheio de atribulações financeiras e, logo mais, de dúvidas sobre o que foi sua trajetória intelectual. Em 1940, escreve à mão, com caligrafia descontrolada, uma carta de desespero:

Ando cada vez mais bicho-do-mato, sem ver ninguém de ninguém. Não que esteja neurastênico, estou pior: misantropo, detestando homens e mundos e com poucas razões de existir.

Impressionado com a “linguagem sombria” do amigo, Pio Lourenço responde procurando apaziguá-lo, acenando-lhe com o recurso pacificador da chácara:

Você está esgotado, homem (...), venha cá descansar, tomar fitina, comer ovos frescos, pescar lambaris, ler as Peregrinações, escrever artigos em ambiente perfumado de murtas e magnólias, rodeado dos “pequenos barulhinhos que constituem o grande silêncio” e verá desaparecerem, na poesia das estradas do São Francisco e do Matão, as equimoses subjetivas que mancham a alma e prejudicam a saúde do corpo.

Aqui já começa a aparecer de manhã uma fresquinha macia, que ajuda a viver. Venha gozá-la, venha sentir as carícias de abril longamente, docemente – e apreciar de bem longe o rumor da política, das ferocidades sociais e das guerras de extermínio. Saudades e abraços nossos.

Depois da crise provocada pela saída do Departamento de Cultura, os dois amigos procuram se apoiar na depressão. É um período melancólico de poucos anos, a última crise da vida de Mário, quando ele toma consciência de que se transformou em um “homem célebre” e se vê “obrigado a encarar o problema desilusório da celebridade”, mas não consegue confiar no veredicto dos contemporâneos.

Assim se expressa na última carta, datada de 10 de fevereiro de 1945:

Mas afinal desde meados do ano passado que me vi enfim obrigado a encarar o problema desilusório da celebridade. (...) Tenho esperneado que o senhor não imagina para me livrar de exigências, convenções, e o diabo que a celebridade traz. Se ao menos trouxesse uma qualquer certeza pessoal de valor, qualquer confiança... Mas à medida que a vida dos outros, a vida “social” da -celebridade toma conta de mim, cada vez mais, ca-da vez mais me sinto incerto de minha vida e minhas obras. É triste.

Quinze dias depois, morria de repente.

Pio Lourenço sobreviveu doze anos ao amigo. Depois de sua morte, foram encontrados em seus papéis alguns testemunhos comoventes de seu apego a ele: cartas de pêsames dos colegas filólogos, recortes de jornais, recorte do último artigo da Folha da Manhã, às vezes com anotações na sua bela caligrafia e dois originais escritos a lápis, com correções e em papel rascunho: o primeiro, do Relatório e o segundo, da Exposição de Motivos do Congresso da Língua Nacional Cantada. E há um longo artigo de Mário intitulado Língua Nacional em que a certa altura o escritor faz a seguinte avaliação da Monografia da Palavra Araraquara:

Livro muito bem escrito, o qual veio demonstrar que, de raro em raro, aparece algum filólogo que, além de escrever correto, escreve bem (...) é dos ensaios mais finos e hábeis de psicologia linguística que conheço em português.

A correspondência é uma versão miniaturizada do trajeto que Mário de Andrade percorreu desde o livro de estréia até sua glorificação final de escritor. Na última carta, já no limiar da morte, ele entrega ao tio o resultado do esforço que fez para ser digno da estima, como quem confessasse:

Esta é a minha carta de brasão.

16 de julho de 2015
Gilda de Mello e Souza

O VERDADEIRO AVATAR QUEIRA POR FAVOR SUBIR AO PALCO



O escritório dele está cheio de fotos autografadas de atrizes, modelos e deputadas. Golda Meir aparece estirada sobre um tapete de pele de urso


Imagino eu que deuses sob forma humana possam muito bem dar as caras de tempos em tempos nesta nossa bolinha de gude azul perdida no espaço, mas duvideodó que algum já tenha rodado por Beverly Hills a bordo de um Thunderbird conversível ostentando a pinta e a panca de um Warren Beatty. Depois de ler Star, a nova biografia do ator, de autoria de Peter Biskind, é impossível alguém não se sentir aplastado pelas estuporantes realizações desse cara. 
Pense um pouco nos filmes que ele protagonizou, nas bilheterias, nas críticas, nos Oscar e nas tantas indicações ao prêmio que esse goleador intrépido amealhou. Sem falar que ele é um leitor voraz e um gênio do marketing, afiadíssimo também ao teclado de um Steinway, enfronhado na política e um Adônis em tempo integral, aplaudido por toda sorte de gente para quem ele é não apenas um ser das telonas de cinema, mas também do Salão Oval, ou Oral, como ficou conhecido o gabinete reservado a estrepolias com estagiárias na Casa Branca à época em que Bill Clinton andava por lá, nem sempre de braguilha fechada.

O currículo do astro, erigido, em mais de um sentido, nas suas legendárias incursões por camas e outras superfícies receptivas a corpos hollywoodianos incendiados de desejo, é de deixar qualquer Orson Welles babando de inveja. 
A biografia escrita por Biskind arrola seus inumeráveis casos com mulheres de variados biotipo, qualidade e status social, de atrizes a modelos, de mocinhas da chapelaria a primeiras-damas. 
Beldades absolutamente endeusáveis faziam fila, salivando de vontade de cair de boca nesse virtuoso dos lençóis. "Quantas mulheres já passaram por suas mãos?", indaga-se o biógrafo. "É mais fácil contar as estrelas no céu... Beatty afirmava que lhe era impossível pegar no sono à noite sem antes fazer sexo. Era parte de sua rotina, como usar o fio dental... Levando-se em conta os períodos em que ele esteve com uma mesma mulher, podemos chegar à cifra de 12 775 mulheres, mais ou menos."

Na qualidade de humilde amante que nem chegou ainda a contabilizar dois dígitos de exemplares do sexo oposto abatidos, vários dos quais só depois de ter-me valido de técnicas subliminares de hipnose, não consigo resistir a imaginar o relato de uma dessas fogosas garotas que ajudaram a conduzir um astro priápico do feitio de um Warren Beatty ao panteão erótico do Livro dos Recordes. Mas vamos deixá-la falar por si mesma:

Nossa, que manhã! Tive de engolir dois Valium para espantar as moscas, borboletas monarcas e vira-bostas que se valiam do meu estômago como espaço para suas manobras aéreas. Era a minha primeira pauta como repórter, e olha só o que me acontece. Saí de casa pensando por que cargas d'água o mais carismático ator de Hollywood, Pino Durango, que foge dos holofotes da mídia feito um Howard Hughes, iria conceder entrevista a uma jovem desconhecida de 19 anos, loira, com o cabelo batendo nos ombros, longas pernas bronzeadas, zigomas da dinastia Ming na cara, portando um frontispício peitoral considerável e fazendo um biquinho labial capaz de provocar tremendos estragos na patota detentora do cromossoma Y.

Se esse Casanova tisnado de sol pensa que vai me faturar, como tem feito com essa miríade de cocotinhas deslumbradas nas quais ele passa o rodo direto, ele vai ver só. Meu objetivo na vida é fazer reportagens sérias, e, francamente, prefiro encarar um Bento xvi ou um Dalai Lama num tête-à-teta. Só que esses figurões pernósticos nunca responderam aos meus pedidos de entrevista, ao passo que o Pino?- que, por coincidência, tinha me visto pelada num ensaio da Playboy sobre as mais bem formadas alunas de jornalismo da Universidade Columbia?- não só me respondeu, como ainda perfumou a cartinha.

Para me certificar de que as demandas em escala industrial da sua libido não viessem a lhe sugerir nenhuma falsa ideia sobre as minhas intenções, fui vestida de maneira conservadora, com uma microssaia nada provocativa, de meia-calça arrastão e uma blusa de muito bom gosto, bem justinha, de tecido transparente sobre meus seios desprovidos de sutiã. 
Nos meus lábios, que, modéstia à parte, deixariam a beiçorra do jovem Mick Jagger parecendo os lábios chupados da bruxa Memeia, passei apenas um discreto batonzinho rubi fosforescente, sentindo-me assim suficientemente chué para desencorajar qualquer tipo de intimidades da parte do Mister Testosterona. 
A perspectiva do meu encontro com Pino Durango causou certa apreensão no meu noivo, mas Cornellius sabe que não precisa se preocupar, apesar de saber também que nenhum homem?- ainda mais um quase sósia do Mickey Mouse?- é páreo para o maior garanhão da Playboylândia californiana.

Cheguei finalmente à casa de Pino Durango, em Bel Air, modesta para os padrões da vizinhança, com sua arquitetura clonada do Partenon, acrescida de alguns floreios inspirados na Catedral de Notre-Dame e na Ópera de Sydney. Pino, que não apenas atua, mas também escreve, dirige e produz, tinha acabado de apresentar seu último filme, o já aclamadíssimo Réquiem para um Pidão. 
Ele desfruta de total liberdade artística e tem sido chamado de gênio tanto pela Varietyquanto pela prestigiosa Gazeta do Avicultor. Segundo um mandachuva de Hollywood, "se esse cara quiser botar fogo no estúdio, eu mesmo lhe dou os fósforos". Só que, por ironia, quando Pino tentou fazer isso, eles chamaram a segurança.

Ao estacionar, notei que um punhado de jovens starlets emergia pela porta da frente aos risinhos, exibindo carinhas de radiante plenitude.

"Ainda estou vibrando", dizia a moreninha. "Ele fez um amor totalmente passional comigo, acompanhando-se ao mesmo tempo ao piano."

"Só sei que cheguei cedo", contava a ruivinha. "Me deram um número e esperei a minha vez. Daí, quando me chamaram, fizemos sexo várias e várias e mais várias vezes. Quando dei por mim, estava recobrando a consciência na unidade de convalescença, e uma enfermeira tentava me dar um chá."

Toquei a campainha e o empregado chinês, o Chi Fu Deng, todo esticadinho em seu dólmã branco, me abriu a porta. A casa é mobiliada em madeiras escuras e viris, com fotos autografadas de adoráveis mulheres, penduradas pelas paredes. Atrizes e modelos estão ao nível do olho. As de deputadas, e a de Golda Meir estirada sobre um tapete de pele de urso, ficam logo acima.
 A fileira de baixo está reservada às odontólogas, aeromoças e um grupo de mulheres de olhos marejados integrantes de uma colônia de leprosos. Tem muitos badulaques e quinquilharias à mostra também, como um par de algemas de ouro sobre a mesinha de centro, presente de Margaret Thatcher. O item mais estimado pelo astro, como vim a saber, é um Rolex com seu nome gravado, que lhe foi ofertado no Dia dos Namorados por madre Teresa de Calcutá.

Enquanto eu xeretava por ali, senti duas órbitas ardentes a sondar minha anatomia. Ao me voltar, topei com a atração número 1 das bilheterias americanas dissecando a minha protuberância calipígia. "Belo equipamento de locomoção", disse-me ele, depois de deslocar o foco do olhar para as minhas pernas. "É óbvio que você malha bastante. Quer um aperitivo para relaxar a musculatura do baixo-ventre?"

Ele era o máximo. Era fácil perceber porque o pessoal responsável pelo cabelo e maquiagem dele havia sido agraciado com o prêmio Big Tycoon, concedido a obras de caráter humanitário. "As vibrações dessa sombra da Revlon que você está usando, somada à sutil fragrância do seu Madonna di Gaga n° 5, sinalizam que a sua bebida preferida deve ser um stoli martini, de vodca Stolichnaya, é claro, com apenas um quê de limão. Me diga se cheguei perto de acertar", ele perguntou.

"Incrível! Como foi que você sacou o quanto sou fissurada exatamente por esse drinque?", respondi, sentindo um frisson primitivo na base da medula.

"Pode chamar isso de intuição", ele retrucou. "Digamos que sou capaz de captar os mais profundos desejos femininos. Por isso mesmo sei que o seu poema favorito é 'Recuerdo', da Edna St. Vincent Millay, o seu pintor de estimação é o Caravaggio e a sua música predileta é 'Goofus', dos Carpenters. Acertei?"

"Na mosca! Você é o cara, Pino! Aliás, você é a cara do Alain Delon quando jovem."

"Isso é porque tô meio mal do estômago hoje", ele confessou, passando-me a vodca. "Na verdade, o modelo do meu look é o Davi, do Michelangelo."

O telefone tocou, e, pelo que pude pescar da conversa, era um dos cupinchas do Pino na política. O astro, cujas sacadas e sagacidade não se restringem à criação de obras-primas em celuloide, também é conhecido por ser o manipulador de marionetes por trás de algumas das mais altas autoridades governamentais. No caso, o telefonema era de um cardeal do Partido Democrata que investigava uma mulher indicada para um posto no Ministério da Justiça. Ele queria apurar se a figura estava dizendo a verdade quanto à localização do ponto G dela.

"Adorei a sua versão pra cinema do Macbeth", falei, quando ele desligou. "Você acabou se acertando com o sindicato dos roteiristas quanto aos créditos do filme?"

"O Smartie Outlaw, meu advogado, caiu matando em cima daqueles pentelhos reclamões de Stratford-upon-Avon", ele explicou. "No fim das contas, eles concordaram com uma coautoria."

Enxugando o segundo stoli martini, puxei meu caderninho e minha esferográfica e ajustei minha liga, esperando que ele não notasse.

"Vou direto ao ponto", lancei. "Como você consegue ser tão incrivelmente produtivo como artista e ainda achar tempo para levar tanta mulher pra cama?"

"No começo era difícil", ele confessou. "Nem era tanto o sexo que atravancava a minha agenda. Era mais o pós-coito: cigarro e aquele papinho de travesseiro. Um dia me caiu a ficha de que eu poderia contratar alguém para os trabalhos de confraternização afetiva, que eu chamo de 'sessão fofura'. Aí tudo mudou. Eu não precisava mais ficar ali escutando aquela arenga pastosa sobre o planeta Terra e sei lá o quê. Me vi livre para trabalhar nos roteiros dos filmes e desenvolver conceitos inovadores."

Foi aí que o Chi Fu Deng entrou e anunciou que um ônibus havia acabado de chegar de Seattle com um grupo de jovens esposas suburbanas, ganhadoras, ao que parecia, de algum tipo de concurso. "Bota todo mundo lá em cima", comandou Pino. "Fala pra tirarem a roupa e dá pra elas um roupão de papel. Diz que é pra amarrar o roupão na frente. Já, já, eu subo."

Retomei a entrevista:

"E a que você atribui o seu extraordinário apetite sexual, Pino? Estamos falando aqui de mais de 12 mil mulheres. Às vezes, várias por dia."

"Basicamente, faço isso para prevenir cáries", ele respondeu. "É como passar fio dental. Uns anos atrás, percebi que se, eu fosse pra cama sem fazer sexo, minhas gengivas começavam a retroceder."

"Você deve ser uma verdadeira máquina na alcova", continuei, tentando imaginar como seria ser desfrutada por um cara que era uma combinação de Narciso com o Minotauro.

"Quer experimentar?", ele desafiou, tomando-me em seus braços e estalando os dedos para convocar uma banda de mariachis.

"Eu tenho um noivo", protestei.

"O.k., mas será que ele consegue fazer isto?", disse ele, dando um salto mortal para trás e caindo de pé novamente com um sorriso nos lábios.

"A verdade é que eu e o Cornellius temos um acordo", sussurrei. "Eu sou livre para dormir com quem quiser, e ele fica dono absoluto do controle remoto."

Quando vi, ele já pressionava seus lábios contra os meus, ao mesmo tempo em que minha calcinha me era subtraída por artroscopia. A partir daí, tudo ficou nebuloso. Lembro de alguém, talvez o Pino mesmo, ou algum assistente seu, mordiscando minha orelha. Mais tarde fiquei sabendo que, além de um dublê para a sessão fofura, Pino Durango usa outro assessor para desempenhar as preliminares, poupando-lhe preciosos minutos antes de entrar na ação propriamente dita.

Lembro de me ver trancada no abraço do Pino enquanto ele me castigava sem piedade. Pela primeira vez na minha vida sexual, vi espocarem fogos de artifício?- de verdade! Cornellius ligou para o meu celular bem no meio da transa. Menti dizendo que estava trabalhando. Mas achei que ele desconfiou de alguma coisa quando me disse: "Ei, estou ouvindo rojões. Você por acaso está em Chinatown?"

Depois de fazer amor, Pino me falou do quão especial aquela experiência tinha sido para ele, e de como, entre todas as suas mulheres, eu era a única com a qual ele de fato se importava. Em seguida, me fez sentar em uma poltrona de frente para uma janela aberta, enquanto pressionava um negócio onde se lia "botão do assento ejetor". Aquilo me fez sair do recinto de forma bastante rápida, não antes, porém, de alguém me jogar nas mãos um globo de acrílico onde estava gravado, com notório romantismo, o número 12 989.


16 de julho de 2015
Woody Allen

OS PRIMEIROS PASSOS DO ESCRITOR: OVOS


O primeiro conto que escrevi na vida foi para a revista Collier’s, embora a Collier’s não soubesse disso. Chamava-se “Ovos”, e era sobre um homem que entra numa lanchonete e pede ovos mexidos. 
O atendente do balcão não quer lhe servir ovos e sugere um goulash. O homem insiste e o atendente, depois de alguma relutância, acaba por servi-los, o homem come os ovos e se retira. Fim. 
Eu tinha 18 anos e acabara de entrar na faculdade. Assim que terminei o conto, mostrei para a minha mãe e, como no caso de tudo que eu fizera na vida até então, ela achou ótimo. Mostrei também para o meu professor de banjo, Mike Pantone. E ele concordou que era bom. Não “muito bom” nem “excelente”, que era o que ele dizia quando eu tocava bem nas aulas de banjo.

Mostrei o conto a meu pai, e ele leu o original à mesa do café da manhã enquanto comia seus ovos. Gostava de ovos quentes com uma colher de açúcar, acompanhados de uma xícara de chá com três colheres de açúcar. Nunca o vi comer ovos mexidos. Como poderia entender meu conto? Ele leu até o fim e então perguntou: “Que diabo é isso?”

“Um conto”, respondi.

“Sobre um sujeito que resolve comer ovos”, disse ele.

“Exatamente”, respondi.

“Mas que tipo de conto é esse?”, perguntou.

“Um conto realista”, disse eu. “Que vou mandar para a Collier’s.”

“E eles publicam esse tipo de coisa?”

“Toda semana”, respondi.

“Mas quem vai querer ler a história de um sujeito que entra num lugar para comer ovos?”

“Todo mundo lê a Collier’s”, falei. “Todo mundo come ovos.”

“Foi isso que você aprendeu na escola?” Meus estudos tinham custado um bom dinheiro.

“Não vou discutir com você”, disse. “Ou você gosta ou não gosta.”

“Adivinhe”, falou meu pai.

Pois ele ia ver só. Mandei o conto para a Collier’s naquela mesma tarde e ainda guardo a prova: a carta de recusa que recebi em resposta. Nunca mais mostrei conto algum para o meu pai. O que também é conhecido como bloqueio criativo. No entanto, voltei a ler o conto na semana passada pela primeira vez em quarenta e cinco anos, e posso dizer que meu pai se sai dessas lembranças como um crítico literário de primeira. Um orangotango retardado teria escrito um conto melhor do que “Ovos”.

Seja como for, escrever o conto teve a sua importância, por uma série de motivos. Foi o primeiro passo de uma carreira. Provava que eu iria melhorar, pois pior que aquilo seria impossível. 
Foi minha primeira experiência de rejeição, e nem por isso causou a minha morte. Ensinou-me que, estejam certos ou errados, o escritor nunca deve confiar no juízo literário de seus pais. 
O conto falava de um lugar específico, a lanchonete que ficava a um quarteirão da minha casa e eu frequentava cinco noites por semana, e de um sujeito que trabalhava atrás do balcão chamado Herbie que tinha trabalhado como encarregado dos tacos do time de beisebol dos Yankees e foi meu amigo, morreu de tanto fumar e era uma figura tão única que reescrevi “Ovos” duas vezes nos anos seguintes. 
Primeiro mudei o nome do conto para “Balconista” e depois só para “Comer”, e o texto melhorou um pouco sem contudo jamais chegar à categoria de bom. Finalmente abandonei o conto e incluí Herbie num romance, com outro nome, e lá ele está até hoje, muito embora jamais tenha saído na Collier’s.

Eudora Welty escreveu certa vez que os escritores devem escrever não sobre o que conhecem, mas sobre o que não sabem das coisas que conhecem. A maneira como traduzo essas palavras é a seguinte: todo escritor precisa compreender e valorizar o mistério. O único mistério em relação a “Ovos”, porém, é o motivo pelo qual não percebi o quanto era ruim. Com o tempo fui acrescentando um pouco do meu próprio mistério aos lugares sobre os quais escrevi, e minha ficção melhorou bastante.

Lamento que meus pais não tenham podido acompanhar o que aconteceu comigo como escritor. Minha mãe morreu enquanto eu ainda tentava publicar meus primeiros contos, e meu pai já se encontrava no limiar da senilidade quando meu primeiro romance saiu. 
Mas gabava-se muito do livro na Suprema Corte do Estado de Nova York, onde trabalhava. Dizia que era a história de como duas mil vacas tinham sido varridas para o mar em Porto Rico. 

Na verdade, o livro se passa em Albany e não fala de vaca nenhuma. Mas logo se vê de que maneira, com esse tipo de imaginação e capacidade crítica nos meus genes, era inevitável que eu me tornasse escritor.

16 de julho de 2015
William Kennedy
Tradução Sergio Flaksman

RIA, NÃO SORRIA...



O humor é uma espécie de bóia no mar revolto das nossas aflições cotidianas. É assim que conseguimos escapar do desespero: quando descobrimos que rir das pequenas "tragédias" do nosso dia a dia, é mais ou menos como sair pela porta dos fundos, quando a coisa fica preta e corremos o risco de levar porrada.
Poucos entendem a força do humor, pela multidão que vejo contorcendo-se aflita diante das nossas pequenas misérias. Não sabem rir. Pior: os que o fazem sem cautela, tornam-se odiados, porque se recusam a participar dos sofrimentos comuns que edificam a vida. 
Alguns, os loucos temerários que se divertem e fazem 'piada' com o cotidiano, socorrem, sem que saibam, os padecentes da vida.
É vezo antigo e faz parte da sabedoria popular (e vamos respeitá-la, pois resumem séculos de experiências amargas, e outras doces...) que a paciência ("o tempo cura todos os males") e o riso ("rir é o melhor remédio", ou o moderno "sorria, você está sendo filmado") são os artífices da felicidade (eita palavrinha corroída!).
O riso, ou o sorriso - e há uma diferença enorme entre eles, visto que rir é quase uma rebelião. Rimos alto, às 'bandeiras despregadas', parente próximo da gargalhada, do rabelesianismo, do descabelamento... Sorrir já é um modo esguelho, uma obliquidade,  disfarce de superioridade,  fingimento educado, quase uma ficção... Sorrir é pura ironia.
O humor nos faz rir, nos descola do real, pois patina na possilidade de acontecer, torce e distorce a realidade a seu bel prazer. Não sorrimos na dimensão do humor. Não cabe o sorriso no escracho. O sorriso é elitista, enfadonho, meio que paira na superfície da hipocrisia. Ninguém sorri num boteco. Também não rimos nos salões bem postos. 
O riso não casa bem com o champanhe. Seu namoro é com a pinga, com a cerveja, com o torresmo. O sorriso é sofisticado (falso).
Vou citar exemplos de humor, quase defensivo, quase irõnico, mas com tendência ao deboche, porque o deboche é a grande força do humor.
Quando Ronnie Barker diz: "Se eu fosse rico como Rockefeller, seria mais rico do que Rockefeller, por que faria um bico limpando janelas".
Ele está debochando de alguma coisa, de alguma "virtude" (já que ser rico nos confere a maior de todas as 'virtudes', no nosso mundo tão precário), de algum sentimento. Ou estaria apenas criticando a avareza, a riqueza, debochando da efemeridade, da precariedade das nossas ânsias de poder, tão rapidamente passageiras? Ou seria apenas o humor fincado na autocomiseração? 
Como é complexo destrinçar o humor! Suas faces derrapam em múltiplas esquinas.
Mas o que importa é que nos provoca o riso, e nos leva após, a divagar sobre um mundaréu de sentimentos... Esse é o humor que brinca com a vida, que nos salva do estreito cotidiano, que nos diz algo que realmente merece o riso.
Cito mais uma tirada, de Drew Carey,  muito próxima das nossas insastifações (estamos quase sempre, ou sempre, insatisfeitos, e não pensem os mais ingênuos e ambiciosos que a fortuna, o dinheiro, aliviaria a nossa condição torturada pela eternidade):
"Oh, você detesta o seu emprego? Por que não disse antes? Há um grupo de apoio para isso. Chama-se "todo mundo" e reúne-se no bar..."
Uma sacada e tanto de humor! 
Mais uma para encerrar essa arengação. Agora do Dennis Miller:
"Uma boa regra geral é que, se você chegou aos 35 anos e continua usando crachá com o seu nome, cometeu um sério erro vocacional".

16 de julho de 2015
m.americo