Não tenho conhecimento de qualquer estatística que apresente o consumo "per capta" de tranqüilizantes, antibióticos, hipotensores etc. Imagino, diante do crescente processo de 'medicalização' da vida, nas sociedades urbanas, que tal estatística seja surpreendente. E creio que deve ser muito expressivo, diante do crescimento da indústria farmacêutica e do controle cada vez maior dos diversos patamares etários, ou dito de outra maneira, das diversas categorias sociais devidamente rotuladas. Claro que tal estatística estaria correlacionada com a renda "per capta" de segmentos sociais mais expressivos economicamente. Quanto mais rico o segmento, maior o seu grau de dependência do processo de 'medicalização' social, visto que há recursos para pagar e consumir as drogas farmoquímicas.
Mas não pode passar despercebido o controle médico sobre as pessoas e a aceitação passiva com que se submetem 'ordeiramente' às práticas médicas do atual modelo biomédico.
Esse conceito de 'medicalização' das sociedades urbanas, procura definir o controle e a dependência extrema a que chegou a sociedade ocidental, ou ocidentalizadas, no esforço de alcançar a saúde e o bem-estar. (Não se discute, em momento algum, que o processo mórbido atualmente vigente nas sociedades, resulta das escolhas feitas pelo homem, na organização da vida e seus propósitos.)
É o princípio da 'outorgação' dos seus direitos de gerenciar o próprio corpo e buscar a própria cura através de recursos alternativos ao modelo dominante, que retira de cada um de nós o direito e a liberdade de administrar a vida em cima de outros conceitos de saúde, reforçando o processo de 'medicalização' da saúde.
O crescente processo de 'medicalização' da vida, acaba por transformar a saúde em mercadoria. Um mercado altamente lucrativo!
O crescimento da classe profissional de médicos não é malsã apenas porque tais profissionais provocam lesões orgânicas ou distúrbios funcionais. Não! Ela o é, sobretudo, proque produzem a dependência. E porque a dependência tende a empobrecer o meio social e físico em seus aspectos salubres e curativos. E porque a dependência reduz as possibilidades orgânicas e psicológicas de luta e adaptação que as pessoas possuem. E porque o crescimento dessa classe, denota o poder das indústrias farmoquímicas de dirigir e controlar a saúde, com amplas 'benesses' distribuídas à classe.
[ Não se fala num amplo programa público de saneamento básico, de soluções para o lixo urbano, programas de controle da poluição ambiental, medidas que, com certeza, contribuiriam para um novo modelo de saúde. Discute-se politicamente, mas nada acontece. Os lixões (aterros sanitários), a poluição ambiental etc, continuam. ]
Não tenho, como disse, qualquer informação sobre o volume de vendas de medicamentos no Brasil. Posso avaliar, pelo grau de dependência social aos produtos farmacêuticos e pela proliferação impressionante de farmácias. Também posso avaliar pelo crescimento da fantástica lucratividade das indústrias farmoquímicas da saúde, considerando que o vasto segmento sem privilégios ou direitos, moureja a margem do 'badalado' crescimento da riqueza nacional e da imaginária distribuição de renda, que se justifica pelo controle monetário (inflação), pela ampliação do sistema de saúde pública, pela ampliação da rede de educação etc.
Não há dúvida de que são fatores promissores, mas ainda distantes da imensa miséria da nossa realidade social; distantes do fato de, verdadeiramente, redistribuírem a renda nacional.
Encontramos milhares de pequenos povoados por esse imenso Brasil, sem qualquer expectativa da existência de alguma clínica médica, em condições de um atendimento eficiente e eficaz. Mas se fosse possível encontrá-la, por um desses acasos surpreendentes, não mudaria em nada a condição dos seus habitantes, dada a simples circunstância de se encontrarem afastados dos grandes centros urbanos onde ocorre a distribuição de medicamentos, (e lógico, os custos elevadíssimos desses medicamentos) e a complexidade de intervenções cirúrgicas. Por falta de opção, continuam consagrando o conhecimento cultural dos seus antepassados.
Fica de alguma forma, no entanto, abalada a crença de que as pessoas não possam enfrentar e resolver os problemas de doenças sem a medicina moderna, cartesiana, especializada, desprovida de uma visão integral do homem como unidade psicossomática.
A incapacidade de reagir a 'medicalização', termina por instituir categorias sociais dependentes, isto é, a vida fica etiquetada segundo seus períodos vitais. Essa etiquetagem acaba integrando uma visão de mundo, que os leigos aceitam como fato 'natural' e banal, de que as pessoas têm necessidades de cuidados médicos de rotina, simplesmente porque são gestantes, ou porque são recém-nascidos, ou crianças, ou porque estão no climatério, ou porque são idosas. Curiosamente, somos empurrados para dentro das inúmeras especializações médicas, como incapazes de sobreviver por conta própria, e fazendo prosperar a indústria química, as profissões vinculadas à saúde, as clínicas etc.
A vida já não é mais uma sucessão de diferentes formas de saúde em seus diferentes ciclos vitais, e sim uma seqüência de períodos, cada qual exigindo uma forma particular de práticas terapêuticas.
Ante os variados ciclos humanos, a vida é jogada num meio ambiente especial para otimizar a "saúde-mercadoria". O homem fica encaixotado no espaço destinado à sua categoria, conforme decisão do especialista 'biocrático', gerente da sua vida.
Um exemplo clássico desse processo "bioadministrativo": a velhice.
Concebe-se a velhice, nesse modelo biocrático da saúde, não como a condição natural da vida, mas como uma doença.
O que pode ser apontado na moderna intervenção médica que se faz nas desordens cardiovasculares, ou na artrose, ou na cirrose ou no câncer dos idosos etc, é que os feitos dos biocratas e os sofrimentos impostos não aumentam muito a longevidade da vida de seus pacientes.
Segundo estudos feitos, 82% dos idosos portadores de doenças graves, morrem menos de três meses após a internação numa clínica ou hospital.
Observou-se que a mortalidade dos idosos no primeiro ano de internamento é expressivamente superior a de um grupo comparável, deixado no meio a que estava habituado, próximo aos que lhe são caros, entre as suas coisas.
Separar-se de sua família, do seu leito, em que dormiu decênios, é para os idosos, o início dos processos mórbidos.
Não se nega que muitas dores de que padecem os idosos são atenuadas pela competência médica, que muitas vezes ultrapasssa o 'savoir faire' de um leigo. Infelizmente, porém, a maioria dos tratamentos profissionais impõe mais sofrimento, e se bem sucedido, prolonga igualmente a vida, quando tratada domesticamente.
A 'medicalização' da velhice é apenas um exemplo, quando a vida é organizada em categorias de pacientes.
M. AMERICO
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