sábado, 10 de abril de 2010

FECHARAM A PORTA E APAGARAM A LUZ!

Quando nos damos conta de que "há algo de podre no Reino da Dinamarca", paulatinamente iniciamos um processo de mudança e adaptação de hábitos, descobrindo novas habilidades, novos prazeres e mais simples formas de bem-estar. Isso nos dá uma nova visão do sentido essencial da vida.
Nossos sonhos não serão mais dirigidos por uma mídia que vende ilusões e fantasias, quando precisamos apenas da nossa capacidade de admirar a vida e o que nela podemos encontrar de grandioso e atender às necessidades básicas do corpo e do espírito, cujos prazeres nunca podem ser comprados e também não precisam ser tão complicados.
Nesse momento, já não estamos mais nas grandes avenidas do dinheiro, da ambição desmedida que soterra em nós a criatividade, a elegância, a estética, a competência para o amor.
Nesse momento, enveredamos por estreitas vias, por onde caminhamos apenas com o nosso esforço. Cada passo é uma descoberta, uma mudança interior, e cada mudança, um sentimento de renovação e liberdade. Liberdade em relação a nossa capacidade de decisão.
Fala-se demasiado em liberdade, mas pouco se diz da necessidade de disciplina para possuí-la.
Liberdade e disciplina?! Engraçado, não? Que conúbio mais estranho se poderia arranjar! Mas é isso mesmo: liberdade é disciplina, como canta Rentato Russo.
Mas antes de adentrarmos em discussões desse porte, quero que o leitor desmistifique comigo, os tortuosos caminhos da "felicidade banalizada" oferecida por preços "razoáveis" nas feéricas feiras do consumo e das vaidades, com pagamento facilitado em prestações a perder de "vida".
Ainda não vi nos veículos mediáticos um casal de 'gordinhos' repousando em campo aberto e florido. O horizonte jogado na última linha do olhar, aquelas margaridas derramadas na geometria caótica e casual, a garrafa aberta de vinho, em toalha alva de linho, as taças tombadas romanticamente... As fisionomias alegres, daquela alegria que se esparrama, nascida na simplicidade do prazer gratuito; alegria belíssima de dentes 'branco global'. A paixão desenhada em céu azul, recortada pela frondosa árvore, como aquela do filme "O vento levou".
Por quê? Por que ainda não assisti a essa cena na TV? As pessoas gordas não podem ser eroticamente felizes? Os seus corpos não permitem a felicidade? Ou a grande indústria da estética anórexica e longilínea não autoriza, não permite? Sim, porque se ganha muito dinheiro com o mito da 'felicidade elegante', do 'sexo elegante', da 'saúde elegante'...
As clínicas de estética, spas e outras arapucas de emagrecimento, a indústria de alimentos "diet" e "light", as drogas milagrosas, as academias de "malhação" e tantas outras formas de vender, não a apregoada saúde do corpo, mas a "felicidade do corpo", o "prazer do corpo", somente possível segundo um certo peso corporal, uma certa medida et coetera.
Já estamos diante de um sofisticado sistema de consumo: o consumo do próprio corpo, segundo certos padrões considerados o ideal, a medida certa da felicidade, da liberdade de expressão erótica, da expansão do ego para os horizontes do subjetivo.
Já não cobiçamos o objeto. Como magos, almejamos realizar no corpo a fantasia de sonhos que possam encobrir a realidade, transmutá-la nos nossos desejos. As tatuagens invadiram os corpos e imprimem neles as figuras dos nossos obscuros desejos. Quase mandalas do nosso inconsciente...
Não por outras razões as revistas, os jornais, a televisão, apregoam as vitaminas da moda, a ginástica da moda, os músculos ressaltados a base de drogas... Tudo isso produz muito dinheiro!
É facil descobrir por que não vemos na TV demonstrações de amor e respeito entre pessoas que não integram os padrões de beleza; pessoas comuns que fazem piquenique nas praias, no campo. Isso não produz a riqueza desejada pela máquina do consumo; não se ganha dinheiro com formas de prazer que estão ao alcance de qualquer pessoa, gratuitamente.
A 'felicidade', por representar um estado de completo prazer nas três dimensões humanas (corpo, mente, espírito), deve ser um produto 'caro', acessível somente a poucos eleitos (assim como possuir uma Mercedes Benz conversível - sonho maior de consumo dos divagantes estranbóticos e delirantes...). Por isso, necessário se faz apregoar na televisão os ingredientes da receita e, obviamente, o seu preço.
Poderíamos, a grosso modo, classificar o prazer em três grupos: o deleite do corpo, o prazer do intelecto e o êxtase do espírito (dimensão estética e religiosa).
Preocupemo-nos apenas e incialmente, com o deleite do corpo, já que as outras dimensões do prazer, melhor serem discutidas em grossos tratados.
O deleite do corpo, independente do corpo que tenhamos, é simples como um copo de água: namorar, tomar um sorvete, olhar o mar, um 'papo' com os amigos, uma feijoada no sábado, um franguinho na brasa com farofa e um bom vinho, uma caipirinha bem tomada, um pagode no fundo do quintal, um por-de-sol, lua cheia... Deus meu! Quantas coisas poderiam ser lembradas... Quantas coisas disponíveis e ao alcance de qualquer mortal! O calor do sol na pele, quando caminhamos à beira-mar, pisando suas espumas brancas; ou numa trilha, mergulhados no silêncio da mata, nos ruídos da vida; admirar uma criança brincando, absorta em seus movimentos graciosos, pairando numa realidade invisível para nós. Você já abraçou uma árvore? Já sentiu a potência vital, transbordante, que dela emana? Não?! É de graça! Tente... Não se paga por isso!
Mas quando estamos naufragados na "felicidade" dependente de pacotes vendidos à retalhos e a crédito, não acreditamos que possa ser diferente, ou que possa haver alguma outra maneira de "estarmos felizes". Nunca de "sermos felizes". Poque estar é diferente de ser.
O sistema empurra-nos para a "angústia da felicidade", se é que me explico bem. Nos torna neuróticos, angustiados, ansiosos para sermos felizes... E nesse jogo de comprar a alegria, de comprar o prazer, de comprar a 'felicidade', acabamos sempre por cair na cilada do "amanhã tudo será diferente".
Lembra-me aqueles versos do nosso poeta, a propósito da felicidade sempre adiada, por ser  "uma árvore arreada de dourados pomos" e que "está sempre apenas onde nós a pomos / mas nunca a pomos onde nós estamos."
A vida, como o malabarista, equilibra-se em fino fio suspenso no abismo. Brilho fugaz entre duas escuridões, entre dois infinitos, entre dois imponderáveis, entre dois sonhos. Como disse o poeta inglês, séculos atrás, "morrer, dormir, sonhar talvez, quem sabe..."
E trata-se exatamente disso. Trata-se de evitar, na sociedade do prazer ilimitado, do gozo eterno, o contato doloroso com a Verdade da Vida, que nos prepara para a sua essencialidade, toldando-nos o trágico sentimento de nossa efemeridade.
A antiga serenidade dos homens que atravessavam o grande abismo da vida, e que mistificavam a morte com os seus mitos, foi substituída na 'modernosa' e hipnótica sociedade pós-industrial, por novos mitos que mistificam a dor e vende a crença do prazer sem fronteiras do corpo, que se compra a preços módicos.
A proposta do grande sistema, aquela que se vende por todos os cantos da mídia e que se insinua sempre como a proposta de uma enorme, desmedida, gigantesca felicidade que se deve adquirir a preços de liquidação e em suaves prestações, mistifica o sentido essencial da Vida e gera a ilusão de que seremos felizes para sempre, com o último modelo  de televisão ou com aquele carro zero km, que desliza sobre a inveja e os olhares concupiscentes da multidão despossuída.

M. AMERICO