terça-feira, 13 de abril de 2010

AS TRAGÉDIAS ANUNCIADAS

"Em visita ao morro do Bumba, o Desgovernador Sego Cabral disse não ter visto nada demais naquela situação.
- É uma inovação da nossa administração. Como prometemos, o pessoal da comunidade não vai mais precisar subir o morro. O morro é que vai descer até o pessoal – declarou o Governadador de enchentes."
(in http://www.eramos6.com.br/)

E não é que o morro desceu mesmo?

Ouço as notícias da Globonews, sessão da meia-noite. Um resumo dos principais acontecimentos da semana, enfatizando os eventos do dia. Claro que a tragédia das chuvas no Rio de Janeiro ocupa a maior parte do noticiário. Imagens dolorosas da destruição, mais dolorosas ainda, as imagens de pessoas que perderam parentes, amigos, que perderam os seus. Imagens de lágrimas, de dor, de desespero. Algumas entrevistas com os sobreviventes da tragédia, mostram o desalento da perda: "perdi tudo! Não tenho mais nada! Casa, filhos, mulher... Tudo"! Bombeiros e voluntários carregando corpos de feridos e mortos. Uma batalha contra um inimigo, um grande inimigo: a incúria administrativa, a desídia do Estado, a injustiça do abandono das comunidades que crescem como cogumelos nas encostas, beira de rios, nas chamadas "áreas de risco", por falta de opção, de recursos, pela garra da sobrevivência.
Somente a designação de "áreas de risco" para apontar o 'locum' de comunidades abandonadas a própria sorte, já encobre o cinismo dos órgãos responsáveis pelo planejamento urbano de uma cidade. Sim! Porque admitem a existência desses 'bolsões de miséria e de pobreza', e continuam complacentes, cuidando das suas alianças para se manterem no poder, na sinecura, no bem-bom...
Principalmente uma cidade como o Rio de Janeiro, com crescimento desordenado, não sei se trezentas ou mais comunidades "de encostas e morros", fruto da iniquidade social, da falta de orçamento público destinado a prevenção, ao planejamento e a construção de habitação popular, o que mais se pode esperar, senão as tragédias anunciadas de todos os anos?
Interessante nessa edição do jornal, foi a mostra do arquivo sobre as tragédias anunciadas, há anos...
Em 1938, o Secretário de Obras, na época Edson Passos, publicava um artigo: "Os rios do maciço da Tijuca precisam ser canalizados. Quem joga lixo nos rios e canais deve ser multado. É necessário fazer um reflorestamento imediato de todas as encostas, e as favelas tem que ser removidas dos morros."
Era   prefeito do Rio, se não me engana a memória, Henrique Dodswoth, interventor federal indicado por Getúlio Vargas, período de nov/1937 a nov/1945. Seu Secretário de Obras já  encomendava estudos sobre o reflorestamento nas encostas, a remoção das comunidades, a construção de conjuntos residenciais, a prevenção do assoreamento dos rios, a contenção... e por aí afora. Em 1938!!! Oitenta anos depois, BUMBA! A cidade maravilhosa volta a viver o drama de mais uma enchente devastadora.
Seguiram-se imagens das inúmeras enchentes. Todas envolvendo dramáticas situações de pessoas, que como sempre, pagam o preço do desleixo administrativo. Passando por inúmeros desastres diluvianos, até, senão me engano, o ano de 1997 ou 98.
Grandes tragédias, muitas perdas materiais e de vidas, mas também grandes discursos de autoridades, enormes promessas, gigantescas bravatas. Nada! Nadíssimo! Nadérrimo! Passada a euforia midiática, a necessária denúncia, a memória meio que adormece. Não a dos atingidos! Com seus mortos, com o seu 'nada' do que sobrou, com a sua raiva, o seu desespero! Eles estão aí, mostrando na cara, a contrafação de uma justiça social, que se amontoa com tantas outras...
Vejo o prefeito, que, claro, comparece como autoridade constituída pelo voto desse povo, para ver de perto o desastre. "Não somos responsáveis pelas chuvas, ou pelos fenômenos naturais!" Alguma coisa assim, que se difere nas palavras, não difere na essência. Penso com os meus botões. "Que maravilha! E o que se fez como prevenção, como planejamento urbano, como investimento em moradias populares? E o que se faz, nessa mesma direção nos dias de hoje?" Claro que não somos responsáveis pelas chuvas, se apenas olharmos de um ponto micro. Mas se ampliarmos os horizontes, podemos ver a culpa de todos na destruição do meio-ambiente, na destruição do ecossistema... Mas isso serviria apenas para uma monumental e científica desculpa política, como não faltará o discurso de algum cínico que denunciará o lixo jogado nas ruas pelo povo: "isso é que dá! jogam lixo na rua!!! E ainda constroem num lixão!!!" É. Realmente. Só que o problema não passa bem por aí... Não se isenta a responsabilidade dos governantes, procurando jogar a culpa das tragédias nas costas do povo. Considerando a eficiência, a eficácia e a efetividade dos serviços públicos, principalmente do planejamento e administração do lixo urbano.. E a grande disponibilidade de áreas urbanas para a construção das suas humildades moradias... Ou ainda, o eficiente planejamento urbano de prevenção de desastres... Óbvio que não isento de responsabilidade, o cidadão que sai por aí, arremesando seu lixo ladeira abaixo, nas vias urbanas, ou leito de rios, riachos, canais, numa demonstração clara de pouca urbanidade, educação e cidadania. Mas não conheço uma campanha planejada pela Prefeitura, no sentido de desenvolver o respeito público, pela preservação do ambiente. Já vi campanhas de bebida, camisinha, cigarro, violência no trânsito, mas nada que conscientize o 'homo urbanus' no caminho da  boa educação e higiene.

Estou pasmo e não sei até quando continuarei pasmo, diante da calamidade, e da declaração do governador. Também me encho de raiva, blasfemo, calão jogado pra todo lado. Meu pinscher não entende nada, não entende tamanha manifestação. Com certeza teme que eu tenha descoberto o seu mais recente xixi e se manda pra debaixo da mesa.
Esclareço que determinados acontecimentos do nosso cotidiano, costumo debatê-los com os meus botões. São os meus melhores amigos, confidentes discretos, não se envolvem com mensalões e outras falcatruas, desconhecem a 'delação premiada' (jargão legal, né?), preocupam-se apenas com a linha, e pedem para que eu a verifique; se ainda está boa e firme e se não há risco de se perderem numa queda. Afinal não basta apenas a casa em que se acolhem, a linha de segurança é indispensável...

M. AMERICO