quarta-feira, 16 de setembro de 2015

O HOLOCAUSTO MANICOMIAL BRASILEIRO: O HOSPÍCIO JUQUERI

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O inferno do Hospital Psiquiátrico do Juqueri no SBT ...


www.youtube.com/watch?v=3WQq1nB8q9E






16 de setembro de 2015
m.americo

O HOLOCAUSTO MANICOMIAL: TRECHOS DA HISTÓRIA DO MAIOR HOSPÍCIO DO BRASIL

Sessenta mil mortos[1]. Esse é o resultado do tratamento manicomial executado no Hospital Colônia de Barbacena/MG[2]. Fundado em 1903 com capacidade para 200 leitos, o hospital contava com uma média de 5.000 mil pacientes em 1961 e ficou conhecido pelo genocídio em massa ocorrido especialmente entre as décadas de 60 e 80. 

Trens com vagões lotados[3] (chamados de “trens de doido”), semelhantes aos dos campos de concentração alemães, despejavam diariamente os “dejetos humanos” para “tratamento” no hospital.

“Lá suas roupas eram arrancadas, seus cabelos raspados e, seus nomes, apagados. Nus no corpo e na identidade, a humanidade sequestrada, homens, mulheres e até mesmo crianças viravam "Ignorados de Tal; (...)comiam ratos e fezes, bebiam esgoto ou urina, dormiam sobre capim, eram espancados e violentados até a morte"[4]. 
Estima-se que cerca de 70% dos internados não tinham qualquer diagnóstico de doença mental. O hospital era destinado para a contenção dos indesejáveis, com função de higienização e sanitarismo da localidade, ou seja, sob as bases da teoria eugênica[5] eram enviadas "pessoas não agradáveis e incômodas" para alguém com mais poder, como opositores políticos, prostitutas, homossexuais, mendigos, pessoas sem documentos, epiléticos, alcoolistas, meninas grávidas e violentadas por seus patrões, esposas confinadas para que o marido pudesse morar com a amante, filhas de fazendeiros que perderam a virgindade antes do casamento, entre outros grupos marginalizados na sociedade. Em resumo: era preciso livrar-se da escória, do mal social e do incômodo em um local onde ninguém pudesse ter acesso. Era a barbárie humana.
“Os pacientes do Colônia morriam de frio, de fome, de doença. Morriam também de choque. Em alguns dias os eletrochoques eram tantos e tão fortes que a sobrecarga derrubava a rede do município. Nos períodos de maior lotação, 16 pessoas morriam a cada dia e ao morrer, davam lucro. Entre 1969 e 1980, mais de 1.800 corpos de pacientes do manicômio foram vendidos para 17 faculdades de medicina do país, sem que ninguém questionasse. Quando houve excesso de cadáveres e o mercado encolheu, os corpos passaram a ser decompostos em ácido, no pátio da Colônia, na frente dos pacientes ainda vivos, para que as ossadas pudessem ser comercializadas”[6].
E assim, dos ditos “loucos” enclausurados no Colônia, o Estado comia e roía até os ossos!
O psiquiatra italiano Franco Basaglia[7], pioneiro na luta antimanicomial na Itália, esteve no Brasil e conheceu o Colônia em 1979. 
Na ocasião, chamou uma coletiva de imprensa e desabafou: “Estive hoje num campo de concentração nazista. Em lugar nenhum do mundo, presenciei uma tragédia como essa”[8].

Os números exorbitantes e silenciados (por mais de 50 anos) das execuções sumárias, frias e violentas que ocorreram no hospital Colônia de Barbacena superam, e muito, as mortes registradas e ocultadas na ditadura militar brasileira (dentre índios, camponeses, perseguidos políticos, etc). 
Superam inclusive os números das mais sangrentas ditaduras da América Latina, Chile com mais de 40 mil e Argentina com mais de 30 mil mortos. Que Estado de Direito atual é esse? Como se pode permitir a prática e a ocultação desse genocídio por mais de 50 anos sem uma resposta estatal efetiva e humanizada para essas vítimas e seus familiares? 

Diante desse cenário nos parece claro o que Foucault[9] chamou de “emergência das técnicas de normalização”. Que são poderes não somente entendidos como efeito de conexão entre saber médico, judiciário e político, mas que se constituiu com autonomia e regras próprias, atravessando e estendendo sua soberania em toda a sociedade, sem se apoiar exclusivamente em nenhuma instituição específica. 
Os poderes de normalização utilizam um discurso que não se organiza apenas em torno da perversidade, mas do medo, da moralização, da contenção e da hipocrisia.  

Hoje restam menos de 200 sobreviventes da Colônia. Alguns deles estão e ficarão internados até o fim da vida porque não conseguem estabelecer vínculos sociais, em decorrência dos excessos de torturas e traumas sofridos no hospício e por não terem mais nenhum contato familiar. Outros sobreviventes foram transferidos para residências terapêuticas em busca de dignidade humana e para reaprender a tomar posse de si mesmos. 
O certo é que os que não morreram de fato, morreram em essência, em alma, como pessoa humana. Não há muito o que ser feito para recuperar essas estruturas já mortificadas.

Nesse quadro esquizofrênico tem-se: um Estado apático, omisso, permissivo, perverso, autorizador e co-autor dessa eterna história manchada de muito sangue e horror.  A sociedade, por sua vez, em alguns poucos momentos sensibiliza-se com outras tragédias da história mundial, mas desconhece o que ocorreu no seu quintal, às suas vistas. 
Enquanto micropoderes de normalização, quando sabem da sua história, usam o seu confortável tapa-olho fingindo não fazer parte disso ou pior, seus silêncios aplaudem e validam a eliminação dos indesejáveis sociais (até hoje), afinal, louco bom é louco morto, né?!.

E enquanto isso na sala de justiça.... o vazio e a mudez dos inocentes gritam por liberdade e humanidade nas inúmeras masmorras psiquiátricas existentes pelo país afora.

Thayara Castelo Branco é Advogada. Mestre e Doutoranda em Ciências Criminais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), com área de pesquisa em Violência, crime e Segurança Pública. Email: thaybranco@yahoo.com.br
Foto: Luiz Alfredo/ Revista O Cruzeiro
16 de setembro de 2015
Thayara Castelo Branco

Holocausto Brasileiro Manicômio de Barbacena - YouTube


www.youtube.com/watch?v=1xBQr5zFAHs




[1] Os 60 mil mortos estão enterrados no Cemitério da Paz, construído junto com o Hospital Colônia no início do século XX, cuja área pertence à Fundação Hospitalar do Estado de Minas Gerais. Está desativado desde a década de 80 e a explicação do psiquiatra Jairo Toledo, que respondeu pela direção do centro Hospitalar Psiquiátrico Barbacena até março de 2013, é que o terreno está saturado. (ARBEX, Daniela. Holocausto brasileiro - vida, genocídio e 60 mil mortes no maior hospício do Brasil. São Paulo: Geração Editorial, 2013. P. 65).
[2] Sobre o manicômio de Barbacena, ver o documentário “Em nome da razão”, de Helvécio Ratton, filmado em 1979, que se tornou o símbolo da luta antimanicomial. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=07p3y-OLDAA
Outro documentário mais recente também trata da mesma questão, denominado “Dos loucos e das rosas”, disponível em:https://www.youtube.com/watch?v=dQMIUqj6tPw
[3] Além do trem muitas pessoas chegavam ao hospital de ônibus ou em viaturas policiais. Várias requisições de internações eram assinadas por delegados, isso porque, antes do Hospital Colônia, muitas pessoas que se achava ter sofrimento psíquico em MG eram colocadas em cadeias publicas ou Santas Casas de Misericórdia.
[4] ARBEX, Daniela. Holocausto brasileiro - vida, genocídio e 60 mil mortes no maior hospício do Brasil. São Paulo: Geração Editorial, 2013. P. 14.
[5]  O interessante é que o fundamento eugênico para consubstanciar as práticas do Hospital Colônia, nem sequer, coadunava-se com a teoria eugênica desenvolvida no Brasil no início do século XX, muito menos com a teoria nazista de Hitler. Isso porque, “o movimento eugênico brasileiro do início do século XX, apostava em medidas preventivas para o melhoramento da raça, como: (a) higienização da população por meio do exame e do certificado pré-nupcial; (b) esterilização dos anormais. E não eram só negros e mestiços que ofereciam riscos para o futuro da nação, mas os “anormais” e todos os pobres, que sempre foram responsáveis pela miséria moral e material e agora, pela degeneração da espécie. Em resumo, a grande preocupação dos médicos cientistas era com as elites, na reformulação da organização familiar (de origem colonial). O projeto científico evolucionista era assegurar uma prole sadia, evitando a reprodução das taras hereditárias que também degeneravam as raças” (LOBO, Lilia Ferreira. Os infames da história: pobres, escravos e deficientes no Brasil. Rio de Janeiro: Lamparina, 2008. pp. 203-204).
Ou seja, no caso do Hospital Colônia não havia nenhum interesse em melhoramento da raça brasileira. O que se executava naquela instituição total ia para além da brutalidade humana, tratava-se de extermínio puro e simples, no contexto mais desumano e genocida possível. Inocuizava-se e matava-se pelos motivos mais abomináveis.
[6] ARBEX, Daniela. Holocausto brasileiro. P. 14.
[7] Sobre Franco Basaglia, dentre outras obras, indica-se: BASAGLIA, Franco. A instituição negada. Rio de Janeiro: Graal, 1985.
[8] ARBEX, Daniela. Holocausto brasileiro.p. 15.
[9] FOUCAULT. Michel. Os anormais. São Paulo: Martins Fontes, 2001. P. 32.

NOVAS DESCOBERTAS SOBRE O HOLOCAUSTO



Com mais de 42.000 guetos e campos de concentração espalhados por toda a Europa, quase todo mundo tinha de saber o que estava acontecendo.

A revelação mais recente sobre o Holocausto choca até os eruditos que pensavam já saber tudo sobre os horríveis detalhes do programa alemão de genocídio contra o povo judeu.

Foram necessários mais de 70 anos para finalmente sabermos os fatos na sua totalidade. E o que está quase além da crença é que aquilo que realmente aconteceu vai muito além do que alguém poderia jamais ter imaginado.

Por muito tempo falamos da tragédia dos 6 milhões de judeus. Era um número que representava a aproximação a que pudemos chegar sobre as vítimas do plano de Hitler para uma Solução Final. Aqueles que procuravam diminuir a tragédia alegavam que 6 milhões era um exagero. Outros iam ainda mais longe e negavam a historiedade do próprio Holocausto, alegando absurdamente que os judeus criaram o extermínio a fim de ganhar simpatia para a causa sionista.

Mas agora sabemos a verdade. A realidade foi muito pior do que imaginamos. Não foram apenas os enormes centros de matança cujos nomes – Auschwitz, Bergen-Belsen, Buchenwald, Dachau, Majdanek, Belzec, Ravensbruck, Sobibor, Treblinka – trazem à mente as horríveis imagens agora tão familiares para nós. Não foi apenas o Gueto de Varsóvia. Não foram apenas os famosos locais que todos conhecemos que falam daquela infâmia.

Pesquisadores do Museu Memorial do Holocausto dos Estados Unidos há pouco liberaram documentação que surpreende até os eruditos mais bem informados sobre as estatísticas das atrocidades alemãs. Aqui estão algumas daquelas que foram conclusivamente descobertas:

Houve mais de 42.500 guetos e campos nazistas em toda a Europa de 1933 a 1945.

Houve 30 mil campos de trabalho escravo; 1.150 guetos judeus; 980 campos de concentração; mil campos de prisioneiros de guerra; 500 bordéis repletos de escravas do sexo; e milhares de outros campos usados para eutanásia dos idosos e enfermos, abortos forçados, “germanizar” prisioneiros ou transporte de vítimas para campos de extermínio.

A melhor estimativa usando a informação disponível atualmente é de 15 a 20 milhões de pessoas que morreram ou ficaram presas em locais controlados pelos alemães em todo o continente europeu.

Simplificando, nas palavras de Hartmut Berghoff, Diretor do Instituto Histórico Alemão em Washington, “Os números são muito mais altos do que pensamos a princípio; sabíamos antes como era horrível a vida nos campos e guetos, mas os verdadeiros números são inacreditáveis.”

E o que torna essa revelação tão importante é que ela nos força a reconhecer a verdade crucial sobre o Holocausto que muitas pessoas têm tentado ignorar ou minimizar – uma verdade com profundo significado contemporâneo: o inenarrável crime do Século 20, mais do que o triunfo do mal, foi o pecado do espectador “inocente”.

Durante anos nossos esforços para entender o Holocausto concentrou-se nos perpetradores. Procuramos explicações para a loucura de Mengele, o ódio obsessivo de Hitler, a crueldade impassível de Eichmann. Buscamos respostas sobre como foi possível para os criminosos, os sadistas e os mentalmente desequilibrados atingir o tipo de poder que tornou factível o assassinato em massa.

Isso foi porque não tínhamos ideia da verdadeira extensão do horror. Com mais de 42 mil guetos e campos de concentração espalhados por todo um continente supostamente civilizado, não há maneira de evitar a conclusão óbvia. Os cultos, os educados, os esclarecidos, os liberais, os refinados, os sofisticados, os urbanos – todos eles partilharam a vergonha de um mundo que perdeu sua bússola moral e concordou com a vitória do mal.

“Não tínhamos ideia do que estava acontecendo” precisa ser claramente identificada como “a grande mentira” dos anos de poder nazista. A dura verdade é que quase todos tinham de saber. Os números negam a possibilidade de ignorância coletiva. E ainda assim as matanças não pararam, a tortura não cessou, os campos de concentração não foram fechados, os crematórios continuaram sua tarefa bárbara.

As pessoas “decentes’ de alguma maneira conseguiam racionalizar seu silêncio.

No ano passado Mary Fullbrook, uma famosa erudita da história alemã, em “Uma Pequena Cidade Perto de Auschwitz” escreveu um exame dolorosamente detalhado daqueles alemães que, após a guerra, se colocaram com sucesso no papel de espectadores inocentes.

“Aquelas pessoas escaparam quase inteiramente da familiar rede de ‘perpetradores, vítimas e espectadores’; porém foram funcionalmente cruciais para a possibilidade de implementar políticas de assassinato em massa. Eles talvez não tenham pretendido nem desejado contribuir com esse resultado; mas, sem suas atitudes, mentalidades e ações, teria sido praticamente impossível ter ocorrido o assassinato na escala em que ocorreu, da maneira que ocorreu. Os conceitos de perpetrador e espectador precisam ser corrigidos, expandidos, tornados mais complexos, à medida que nossa atenção e foco mudam para aqueles envolvidos em manter um sistema assassino.”

Mary Fulbrook destacou para censura aqueles que moravam perto de Auschwitz. Mas isso foi antes de sabermos que Auschwitz foi replicado milhares de vezes em todo o continente em maneiras que não poderiam ter passado despercebidas pela maior parte da população. Milhões de pessoas foram testemunhas em cidades pequenas como Auschwitz em seus próprios quintais.

E assim Elie Wiesel, é claro, estava certo. A ideia que precisa ser entendida mais fortemente quando refletimos sobre a mensagem do Holocausto deve ser que: “O oposto do amor não é o ódio, é a indiferença. O oposto da arte não é a feiúra, é a indiferença. O oposto da fé não é a heresia, é a indiferença. E o oposto da vida não é a morte, é a indiferença.”

Este permanece como o nosso maior desafio atualmente. Se ousarmos esperar a sobrevivência da civilização é melhor rezarmos para que os pessimistas estejam errados quando alegam que a única coisa que aprendemos com a história é que a humanidade jamais aprende com a história.



16 de setembro de 2015
Benjamin Blech
Novas Descobertas Sobre o Holocausto

A ÚLTIMA ENTREVISTA DE JORGE LUIS BORGES

JORGE LUIS BORGES

O escritor morreu alguns meses depois de ter concedido a entrevista ao jornalista e apresentador Roberto D’Ávila, em 1985

“Não criei personagens. Tudo o que escrevo é autobiográfico. Porém, não expresso minhas emoções diretamente, mas por meio de fábulas e símbolos. Nunca fiz confissões. Mas cada página que escrevi teve origem em minha emoção.”

Jorge Luis Borges nasceu em 1899 na cidade de Buenos Aires, Argentina, e morreu em Genebra, Suíça, em 1986. Entrelaçando ficção e fatos reais, Borges concentrou-se em temas universais, o que lhe garantiu reconhecimento mundial. É considerado o maior escritor argentino de todos os tempos e um dos mais importantes nomes da história da literatura.

Na entrevista, que foi concedida em julho de 1985 ao jornalista Roberto D’Ávila, Jorge Luis Borges fala sobre a infância, a cegueira, a morte. Afirma que o fracasso e o sucesso são impostores. E traduz o seu amor pela literatura em uma frase: “Se recuperasse a visão eu não sairia de casa. Ficaria lendo os muito livros que estão aqui, tão perto e tão longe de mim”. Borges morreria menos de um ano depois de ter concedido a entrevista.

Fale-me de sua infância, de suas memórias…

Minhas primeiras memórias são da biblioteca de meu pai. Não me recordo de uma época em que não soubesse ler e escrever. Meu pai era professor de psicologia e me disse que a memória começa aos 4 anos de idade. Aprendi a ler e escrever entre os 3 e 4 anos. A biblioteca de meu pai era essencialmente de livros ingleses. De modo que quase tudo que li na vida foi em inglês e depois em outros idiomas, já que, em 1915, fomos para Genebra e tive que estudar francês e também bastante latim. Depois disto, eu me ensinei alemão para ler Schopenhauer. Mas antes passei pela poesia e pelos expressionistas alemães: Johannes Becher, Wilhelm Klemm, Kafka e outros. Quando perdi a vista como leitor em 1955, para não “abound in loud self pity”, para não abundar em sonora autocomiseração, como diz Kipling, empreendi o estudo do inglês arcaico. Depois estive duas vezes na Islândia e estudei um pouco do escandinavo antigo. O islandês é a língua mãe do sueco, do dinamarquês e, parcialmente, do inglês. Agora pensei em estudar japonês ou chinês, que são idiomas tão estigmatizados.

Das leituras da infância, o que mais lhe impressionou?

“As Mil e Uma Noites”. Livros de diferentes épocas da vida de Kipling, que comecei a ler quando criança. Sempre gostei muito dos atlas e das enciclopédias. Curiosa­mente, continuo a comprar livros. Não posso lê-los. Aqui tenho, por exemplo, uma excelente enciclopédia italiana, a Garzanti, tenho duas edições da Brockhaus, alemã, e uma edição da Britânica. Gosto muito. Acho que é a melhor leitura para um homem ocioso e curioso como eu. Infelizmente perdi a vista. Se eu a recuperasse, não sairia desta casa. Ficaria lendo os muito livros que estão aqui, tão perto e tão longe de mim. Mas perdi a vista. Diversos países me convidam para dar conferências. Vou agora à Califórnia, à Nova York e depois à Roma. Depois volto à Roma no fim do ano para falar de meus livros. Continuo a escrever. Que mais posso fazer? É que não gosto do que escrevo. Nesta casa não encontrará um só livro meu. Por que quem sou para ficar ao lado de Euclides da Cunha, Camões ou com Montaigne? Não sou ninguém! Continuo a adquirir livros porque gosto de estar rodeado por eles. Como quando era menino, já que minhas primeiras lembranças são de livros e acho que minhas últimas o serão também. Quanto à minha memória, a única coisa que consigo lembrar são citações, mas, dos fatos de minha vida, me esqueci. As datas, não me lembro de nenhuma. Tenho lembranças de meus pais a quem adorava, dos meus amigos. Agora meus amigos estão embaixo da terra.

E as lembranças dos amores?

Agora estão menos vivas. Lem­bro-me de uma frase muito triste de Emerson: “Life itself becomes a quotation”. “A própria vida se converte numa citação.” Tenho a memória cheia de versos em tantos idiomas. E continuo escrevendo. Bem, escrevendo é uma metáfora; ditando. Como passo boa parte do tempo sozinho, vou povoando esta solidão com projetos literários. Não vão durar muito porque, aos 85 anos, não se tem muito por vir. Entretanto minha mãe morreu aos 99 anos com o terror de chegar aos 100. Eu tentava convencê-la de que os 100 são uma superstição. Mas, mesmo assim, o número 100 a apavorava. Quando fiz 80, achei horrível. Espero não chegar aos 90. Eu preferiria morrer esta noite. Agora não, porque quero conversar um pouco com você. Quando vocês se forem, eu morro. Eu gostaria. Assisti a várias agonias no curso de minha excessivamente longa vida. Minha mãe acreditava em Deus, eu não. Todas as noites lhe pedia que a levasse durante o sono. Uns meses antes de fazer 100 anos morreu, que era o que queria. Ela acordava de manhã e chorava ao ver que não tinha morrido durante a noite e se preparava para outro dia.

Como é a cegueira?

Uma das primeiras cores que se perde é o negro. Perde-se a escuridão e o vermelho também. Vivo no centro de uma indefinida neblina luminosa. Mas não estou nunca na escuridão. Neste momento esta neblina não sei se é azulada, acinzentada ou rosada, mas luminosa. Tive que me acostumar com isto. Fecho os olhos e estou rodeado de luz, mas sem formas. Vejo luzes. Por exemplo, naquela direção, onde está a janela, há uma luz, vejo minha mão. Vejo movimento mas não coisas. Não vejo rostos e letras. É incômodo mas, sendo gradual, não é trágico. A cegueira brusca deve ser terrível. Mas se pouco a pouco as coisas se distanciam, esmaecem… No meu caso, comecei a perder a vista desde o momento em que comecei a enxergar. Tem sido um processo de toda minha vida. Mas a partir de 55 anos, não pude mais ler. Passei a ditar. Se tivesse dinheiro, teria uma secretária, mas é muito caro. Não posso pagar.

Nunca ficou desesperado por causa da cegueira?

Não. Como foi um processo lento, não houve um momento patético. Mas se uma pessoa perde a vista de repente, pode, inclusive, pensar em suicídio.

O sr. já pensou em suicídio?

Quando era jovem, sim. Mas quando a pessoa é jovem, quer ser o príncipe de Hamlet, Byron, Edgar Alan Poe, ou Baudelaire. Mas agora procuro a serenidade. As pessoas são muito boas para mim. Claro. Sou um velhinho inofensivo. Quem vai me molestar? Não pertenço a nenhum partido político. Sou um velho anarquista spengleriano. Principalmente neste país, as pessoas se interessam muito por política. Eu não. Mas tenho minha consciência tranquila. Falei e escrevi contra Perón. Minha mãe, minha irmã e um sobrinho meu estiveram presos. Ameaçaram-me de morte, mas eu sabia que, se alguém lhe ameaça de morte, você não corre nenhum perigo. Depois vieram todos esses governos. Falei contra o terrorismo, muitas vezes, contra a ditadura militar. Depois escrevi contra uma possível guerra com o Chile. Contra a invasão das Malvinas, escrevi dois poemas e uma milonga, que foi proibida pelo governo.

Pode recitar?

Não me lembro. Tenho um poema que se intitula “Juan Lopez y John Ward”. São dois rapazes, um argentino e um inglês, que poderiam ter sido amigos, mas que se matam na guerra. Tenho uma milonga que se chama “Milonga del Muerto” sobre um soldado que morreu na guerra. As pessoas riem um pouco dessa guerra, mas toda guerra é terrível, até mesmo uma pequena como essa. Morreram 2000 argentinos e 500 britânicos. Conversei com sodados que me disseram que se tivessem um rifle na mão teriam matado seus oficiais. Os sargentos quando viram, fugiram e deixaram os soldados. É que não eram soldados; eram recrutas. Era gente trazida das províncias semitropicais do norte e os mandaram às cercanias do Polo Sul combater soldados verdadeiros. Eram todos rapazinhos de 18 ou 20 anos, ainda que houvesse uma superioridade numérica grande.

Quais foram as grandes sensações de sua vida?

São as grandes sensações da vida de todo homem. O amor, a amizade, a leitura, o gosto por escrever, embora não goste do que escrevo. Nesta casa não há livros meus nem sobre mim. A partir dos 30 anos, não li uma única linha que se escreveu sobre mim. Sei que há bibliotecas inteiras, mas não li nada. Acho que deve-se viver para o futuro. Quando publico um livro, não sei se teve êxito, se está vendendo. O que disse a crítica. Meus amigos sabem que não devem falar do que escrevo.

Por que?

Porque é incômodo falar da própria pessoa. Prefiro falar de outros autores. Deve acontecer o mesmo com outros escritores. Há uma frase muito bonita de Kipling que fala sobre o fracasso e o sucesso. O fracasso e o sucesso são impostores. Ninguém fracassa tanto como imagina. Ninguém tem tanto sucesso como imagina. Além disso, o que importa o sucesso e o fracasso? No fim das contas, todos seremos esquecidos, o que aliás é melhor. Não creio em imortalidade pessoal. Meu pai dizia: “Quero morrer eternamente — corpo e alma”. Segundo a Bíblia, depois dos 70, tudo é aflição. Mas eu diria que antes também. Não é preciso fazer 70 anos para conhecer a aflição. Segundo a tradição, os 33 são a idade perfeita, porque é quando morre Cristo e nasce Adão. Adão nasceu aos 33 anos. Na Idade Média, houve uma discussão muito séria sobre se Adão tinha ou não umbigo. Adão não pode ter umbigo porque não nasceu de mãe, porque foi criado do pó por Deus. Mas, ao mesmo tempo, se lhe falta o umbigo, é imperfeito. Então Adão tem que ter umbigo, embora não tenha tido cordão umbilical. Isto se discutiu com toda seriedade durante muito tempo. Havia teólogos encarniçados em ambos os lados. Sir Thomas Brown, um escritor do século 18, diz “The man without a navel lives in me”. “O homem sem umbigo vive em mim”; ou seja: “Adão vive em mim; sou também o primeiro homem”.

O sr. leu muitos de livros?

Não. Li muito poucos. Sempre reli os mesmos livros. Não conheço a literatura contemporânea. Desde que perdi a vista como leitor em 1955, não li nada de novo.

Mas quando era menino, na biblioteca de seu pai, lia muito?

Não lia muito. Folheava os livros. Não creio que tenha lido quase nenhum livro do princípio até o fim, salvo livros de filosofia. Romances li muito poucos. Para mim, o romancista é Conrad.

O sr. leu pouco, mas sua vida é a literatura. A realidade para o sr. não importa muito. O que importa são as sensações?

Se eu tivesse interesse na realidade europeia, leria jornais. Nunca li um jornal na vida. Pra que lê-los? É tudo bobagem. Só falam de viagens de presidentes, congressos de escritores, partidas de futebol. Por isso gostaria de recuperar a visão para poder folhear um livro, escolher o que vou ler ou omitir. Quase não li romances na vida, fora Joseph Conrad, que para mim é o romancista. Fracassei com grandes romances, com Zachary, com Flaubert.

Mesmo com “Cem Anos de Solidão” o sr. não foi até o fim?

Com “Cem Anos”, não. Completei no máximo 50 anos. Mas é um excelente livro. Gostaria de conhecer o autor.

Não o conhece?

Não tive oportunidade. E possivelmente nunca terei. Ele vive na Colômbia, não? Estive duas vezes na Colômbia. Todo mundo foi muito amável comigo, sobretudo porque sou um ancião inofensivo. Inimigos pessoais não tenho. Às vezes me ameaçam de morte, mas por telefone, o que não tem nenhuma importância. Se uma pessoa quer matar a outra, não avisa porque seria um imbecil. Bem, os assassinos são imbecis.

Queria mudar um pouquinho a assunto. Queria que o sr. falasse do amor.

Ocupou tanto lugar na minha vida, que ocupa pouco em minha obra. Estive casado por três anos e compreendemos que o único modo de continuarmos amigos era a separação. Mas agora também não somos amigos porque não a vejo nunca. Não sei se morreu ou não.

Quer dizer que o sr. acha que o casamento mata mais que o amor?

Três anos de casamento foram um pouco onerosos.

Fale-me de seu sentimento por Buenos Aires.

Mudou tanto a cidade… Já não a conheço… Nasci aqui no centro de Buenos Aires: Rua Tucumán, quatro ou cinco quadras daqui. Toda a Buenos Aires era de casas baixas com terraços, pátios, campainhas manuais. Só havia algumas casas altas perto da praça do Congresso. A cidade toda tinha casas com pátios, poços. Sempre havia uma tartaruga no fundo para comer os bichos: uma espécie de filtro vivo. Buenos Aires mudou completamente. Minha mãe se lembrava des­ta rua sem calçamento.

Mas o sr. é um homem universal, tem todos os sangues…


Não tenho tantos. Meu bisavô era lisboeta. Era Borges de Mon­corvo, uma cidadezinha de Trás-os-Montes. Depois tenho uma maioria de sangue espanhol, uma avó inglesa, algum sangue judaico-português e, muito distante, algum sangue normando dos Bittencourt, uma família de Rouen, noroeste da França. Devo ter ainda algum sangue escandinavo e isto é tudo. Mas eu trato de ser cosmopolita, de ser digno deste planeta.

A sua genialidade vem de que lado?

Não tenho genialidade de ne­nhuma espécie. Sou apenas um pequeno escritor sul-americano, um mínimo argentino.


16 de setembro de 2015
Carlos Willian Leite

GONÇALO M.TAVARES: "O MEU TRABALHO É ILUMINAR PALAVRAS".





Aos 43 anos, Gonçalo M.Tavares é uma das vozes mais representativas do romance português contemporâneo. Em “Matteo perdeu o emprego” (Foz, 160 pgs. R$ 34,90), ele constrói uma trama singular, na qual os personagens aparecem pela ordem alfabética, como num jogo de dominó, culminando na história de Matteo, que responde a um estranho anúncio de emprego. Ecoando elementos da literatura de Italo Calvino e Georges Pérec, Gonçalo também já foi chamado de “Kafka português”. Com livros traduzidos em mais de 30 idiomas, ele já recebeu importantes prêmio literários, como o Portugal Telecom e o Prêmio José Saramago.

“Matteo perdeu o emprego” se divide em duas partes. A primeira é um conjunto de 25 histórias curtas, em que personagens com sobrenomes judaicos – retirados de um trabalho do fotógrafo Daniel Blaufuks – vivem situações caricatas ou absurdas. Cada história se encadeia na seguinte por meio de um pormenor comum, criando uma narrativa em que cada personagem passa o testemunho à personagem seguinte. Na segunda parte, de natureza ensaística, o autor reflete sobre a parte ficcional, com o distanciamento de um leitor exterior. Nesta entrevista, Gonçalo M.Tavares fala sobre o processo de criação de “Matteo perdeu o emprego”, declara-se admirador de Clarice Lispector e afirma que seus livros são “animais muitos distintos”, como se tivessem sido escritos por diferentes autores.

- A estrutura de “Matteo perdeu o emprego” evoca um jogo de dominó, com um personagem saindo e outro entrando em cena, com seus nomes seguindo a ordem alfabética. Para você a literatura é um jogo?

GONÇALO M.TAVARES: Eu penso que há infinitas formas de escrita literária. De certa maneira a minha intenção é experimentar vários caminhos: um caminho trágico, um caminho lúdico, um caminho de escrita rápida… Todos os caminhos são possíveis, então não vejo a literatura apenas como um jogo, nem como algo muito sério. Acho que não nos devemos levar a sério, mas que devemos levar a sério o mundo. “Matteo perdeu o emprego” tem sem dúvida uma carga lúdica, como se a história fosse narrada não devido à causa e efeito de seus acontecimentos, mas sim devido aos personagens, e como se os personagens entrassem em cena não devido ao que fazem, mas à primeira letra do seu nome. O alfabeto é algo que domina, e muito, a civilização ocidental, não é apenas algo que usamos para escrever, é algo que nos organiza. Numa sala de aula, os que têm o nome começado por “A” se sentam mais à frente, por exemplo, e podemos pensar também na organização das bibliotecas… Enfim, o alfabeto é uma lógica, uma ordem que não é racional mas que de certa maneira domina todo o mundo cultural, e “Matteo perdeu o emprego” tem essa questão do tempo estabelecido pelo alfabeto.

- Fale sobre o processo de criação do livro: você se impôs uma regra e fez um planejamento meticuloso ou deixou a escrita fluir? A divisão do romance em duas partes, a segunda explicando a primeira, unindo o ficcional e o ensaístico, já estava prevista desde o início?

GONÇALO: Eu escrevo sempre com grande rapidez. O primeiro momento da escrita é muito rápido, de grande excitação, em certos momentos escrevo sem olhar para o monitor do computador, e por vezes depois percebo que as letras estão todas fora do lugar, porque só passado um tempo olho para o texto. Para mim a escrita tem vários movimentos e vários ritmos, um primeiro mais rápido e um segundo lentíssimo, que é voltar ao que escrevi e corrigir, rever. Neste caso o ponto de partida foi a história do Matteo, a ideia de que um homem desempregado está disponível para ofícios de certa maneira perversos, como é o de ser as mãos de uma mulher sem braços, que é o emprego que o Matteo que dá nome ao livro aceita, levando a um jogo de perversão entre esse homem e essa mulher. Primeiro escrevi a parte ficcional, quase como em um jogo de dominó, em que uma personagem se cruza com uma segunda, e esta segunda encontra uma terceira, e se segue a quarta personagem, como se todas estivessem ligadas por fios invisíveis, e me interessava uma visão de cima, de cada momento. Mais tarde escrevi o ensaio, porque depois de ter o texto de ficção feito, tentei refletir sobre o que escrevi, como se fosse alguém de fora refletindo sobre a ficção. Me interessa muito essa mistura de ensaio e ficção, que são dois mundos totalmente misturados. Mas o ensaio da segunda parte é também uma narrativa, não é um ensaio que conclua e dê uma interpretação final, é apenas mais uma interpretação, entre as interpretações possíveis dos leitores. Não é um ensaio que explica, ele tenta aumentar, digamos, o pensamento sobre o texto, mas também a ambiguidade do texto.

- Sua obra já foi definida como uma “cartografia da desordem humana”, e “Matteo perdeu o emprego” parece refletir uma visão pessimista e irônica da humanidade. Você concorda?

GONÇALO: Eu diria que não sou um pessimista nem um otimista puro. É preciso entender o ser humano como um bicho que tem coisas absolutamente extraordinárias e outras terríveis. Depende de para onde se virar o homem, para o belo ou o feio, para a bondade ou a maldade, e ele está sempre disponível para se virar para qualquer ponto. De certa maneira, as circunstâncias muitas vezes funcionam quase como um vento que o dirige para um lado ou para o outro. Esta visão faz com que a minha escrita seja a de alguém que entende que a história humana não é somente feita de flores, bondade e beleza, que ela é também a história da maldade em movimento. Por isso a literatura deve ter um núcleo eu não diria pessimista, mas que está sempre a lembrar que a tragédia é qualquer coisa de inerente à vida. Por outro lado, como é evidente, a questão do lúdico, do prazer, é fundamental na literatura, porque o ser humano é também um ser feito para o prazer e para o desejo.

- Sua linguagem é avessa ao sentimentalismo, e você parece não se importar com a vida interior dos personagens. A psicologia tem alguma importância na construção de suas histórias?

GONÇALO: Em “Matteo perdeu o emprego”, a linguagem realmente tenta ser direta, mas eu diria que em geral a linguagem dos meus livros tenta misturar a exatidão e a ambiguidade. O que eu tento, não sei se consigo, é ser o mais sintético possível. Se eu conseguir dizer ou transmitir uma ideia com sete palavras em vez de 20, prefiro realmente usar sete. O meu trabalho é iluminar palavras, fazer uma escrita que não tenha palavras a mais, totalmente seca. Mas isso não tem a ver com uma exatidão matemática, é uma secura completamente diferente, uma exatidão ambígua, que que leva a milhares de intepretações. Não é fácil, mas tento sempre sintetizar, diminuir, ser como uma flecha que acerta no centro, Mas dez leitores farão dez análises diferentes do que escrevo. Não é portanto como na matemática, onde dois mais dois são sempre quatro, eu espero que as frases sejam exatas mas não tenham um único resultado. O resultado que o leitor dá é apenas um dos resultados possíveis. Me interessa muito a psicologia, o que está dentro do ser humano, mas para mim o fundamental é que a emoção não seja como a da televisão, mas uma emoção que dure, transmitida ao longo do tempo. Não gosto da literatura com aquela emoção presente nos programas de televisão que entrevistam pessoas que contam seus casos trágicos de doenças etc. Vendo esses programas ficamos emocionados e se for necessário até choramos, nos sentimos comovidos, mas passados cinco minutos o mesmo programa mostra um cantor alegre, e já nos esquecemos daquele caso trágico. Esse tipo de emoção que atinge um pico muito alto rapidamente é perigosa, engana, não é empática nem humana. Não gostava que as pessoas chorassem ao lerem meus livros, mas que pudessem guardar um ano ou dois anos depois uma imagem, que ainda os comove ou perturba. Uma emoção que dure anos, e não apenas 1 minuto, de intensidade baixa mas de longa duração, é uma definição possível da emoção que me agrada.

- Você já disse temer que a atual crise econômica na Europa abra espaço para regimes totalitários. Nesse contexto, os escritores têm um papel político importante a desempenhar? Ou não se deve misturar literatura e política?

GONÇALO: Sobre política e literatura, penso que o escritor deve lembrar a importância da memória, de percebemos que não estamos a começar nada de novo, mesmo politicamente. A História nos ensina que não devemos ter a arrogância de pensar que estamos inaugurando alguma coisa, porque a História do homem é feita de muitas repetições. Nesse particular, a literatura pode ter essa função de memória, de chamar a atenção para a violência e para a potência do mal que existe no homem. Essa memória se liga ao gesto político de dizer “Atenção!”, porque ainda hoje, no século 21, qualquer coisa de terrível pode acontecer. A literatura deve interferir na política através do aumento da lucidez individual das pessoas. Pessoalmente, não me interessa uma política partidária, mas uma política no sentido de intervenção na cidade, na pólis, na forma como os homens vivem, e penso que aí a literatura é essencial, por ser o espaço da reflexão, de uma certa distância em relação aos acontecimentos e às circunstâncias do mundo. Por exemplo, entender por que a violência e a agressividade aparecem… Tudo isso são problemas políticos, e é essa política que me interessa em termos literários.

- Que relação é possível estabelecer entre “Matteo perdeu o emprego” e os textos da série “O Bairro” e “O reino”? Há uma evolução?

GONÇALO: Para mim os meus livros são completamente diferentes, costumo usar a imagem de que cada livro é uma espécie de animal, um animal distinto. “Matteo perdeu o emprego” poderia ser uma cobra, e não faz sentido dizer que uma cobra ou uma girafa é melhor do que um cão. Cada animal tem suas características, se quisermos rapidez pensamos no tigre, mas a tartaruga não é um animal pior do que o tigre. Então não vejo os livros como melhores ou piores, vejo como animais diferentes. Se queremos uma temática artística, devemos escolher um animal e não outro, um livro e não outro. Mas “Matteo perdeu o emprego” é um livro muito distimto da série dos bairros, tem a ver com um ponto de vista mais lúdico e remete para um mundo paralelo, em uma espécie de utopia ficcional. Outros livros meus atiram mais para uma escrita mais realista, enquanto “Viagem à Índia” é um livro que mistura poesia e prosa. “Matteo… “ mistura uma realidade totalmente absurda e uma segunda parte, de reflexão. O que eu sinto é que cada livro vai numa direção diferente, cada livro define um ponto, e vários livros permitem traçar uma linha. Não sei qual é esse desenho, nem o que ele está a representar, mas cada livro é um traço de um desenho, que é a obra que se vai construindo aos poucos.

- Os sobrenomes dos personagens são judaicos, espelhando o seu gosto por sobrenomes alemães presente em outros livros. Fale sobre isso.

GONÇALO: O nome de uma personagem é talvez aquilo que há de menos racional em um livro, é um pouco como dar um nome a uma criança, algo que tem a ver com ordem lógica mas também tem a ver com uma escolha instintiva. Normalmente a escolha dos nomes é muito instintiva, vem do próprio som, como se o som do nome tivesse para mim uma história lá dentro. “Matteo…” partiu de um conjunto de fotografias que eu vi de campos de judeus,e os nomes judaicos remetem para um conjunto de acontecimentos do século 20 que são quase uma paisagem invisível obscura, escondida no livro. O ensaio da segunda parte de “Matteo…” é também uma reflexão sobre essa ideia que de que as primeiras letras dos nomes são algo que traz uma energia, boa ou má, como se o nome de uma personagem não fosse apenas um conjunto de letras, mas também uma história. Quando damos um nome a uma personagem, mesmo que ela não tenha uma história, esse nome já lhe dá uma determinada energia.

- Percebo a influência de Italo Calvino e Georges Pérec em sua escrita, você concorda? Com que outros autores você dialoga?

GONÇALO: Gosto de inúmeros autores, é impossível falar de uns e não de outros. Autores de um mundo muito literário e lúdico e autores completamente distintos, de um mundo mais seco e trágico. Gosto de autores completamente opostos e inimigos, às vezes, Lembro de um debate sobre um livro de ensaios “Calvino ou Pasolini”, que basicamente era sobre se devíamos escolher a literatura de Italo Calvino, mais cerebral e literária, ou a literatura de Pasolini, mais realista. Para mim é evidente que a resposta será sempre “Calvino e Pasolini”, porque os dois me interessam mesmo sendo autores que fazem coisas completamente opostas. Gosto de juntar mundos opostos, escritas trágicas e escritas lúdicas, e cada vez mais tento avançar por caminhos que têm a ver com uma necessidade individual de escrever, sem me identificar com nenhuma escola.. Um livro meu como “Canções mexicanas” e outros como “Viagem à Índia” ou “O sr.Valéry” parecem escritor por autores diferentes. Então não me sinto especialmente próximo de nenhum autor, há centenas de autores que para mim são muito importantes.


16 de setembro de 2015
Luciano Trigo

A VERDADEIRA FACE DE SÊNECA


Mestre da arte da retórica, o filósofo viveu no centro do poder durante os principados de Calígula, Cláudio e Nero. Uma figura ambígua, que pregava um código de conduta bem diferente da sua prática


O verdadeiro busto de Sêneca, descoberto em escavações
arqueológicas com o nome do filósofo entalhado no mármore.

Nascido em Córdoba entre os anos 4 e 1 a.C., Lucius Annaeus Sêneca era a própria imagem de sua época. Segundo filho de Sêneca, o Orador, e por isso também conhecido como Sêneca, o Jovem, mudou-se cedo para Roma. Tinha um vivo interesse pela filosofia dos mestres, como o estóico Átalo, ou o pitagórico Sótio. Para eles, a moral tinha prioridade absoluta. Sêneca conseguiu se destacar em uma sociedade cuja elite valorizava um mesmo ideal: ser orador. Em torno da eloqüência organizavam-se reuniões de salão e leituras públicas. Sêneca fez parte da Corte romana, e se comprazia em uma vida requintada que não combinava com seus ensinamentos. Não se deixar corromper, não ser tentado pelo luxo e pela luxúria, levar uma vida simples e honesta: essa era a sua filosofia. Mas não sua vida. Foi mais retórico que estóico, mais trapaceiro que honesto e mais ligado ao artifício que à verdade.

Não foi sempre assim. Sêneca parece ter levado uma vida recatada durante a juventude. Em sua carreira de servidor do Império, o cursus honorum, galga algumas posições na magistratura, além de revelar-se brilhante advogado.

Calígula, cultor ele próprio da eloqüência, tinha restrições às qualidades de Sêneca. Desprezava seu estilo estudado e elaborado, acusava seus livros, os mais populares da época, de “inconsistentes” e de serem “puras tiradas teatrais”. Às vezes, preparava respostas aos discursos do orador. Só poupou Sêneca da morte por estar convencido de que ele não chegaria à velhice devido à sua saúde frágil.

Durante o principado de Cláudio e Messalina, Sêneca participava de bom grado das recepções dadas pela imperatriz. Depois, Messalina deixou de convidá-lo, alegando que ele se permitia fazer observações pouco respeitosas. Com sua eloqüência, Sêneca fascinava demais os jovens para não ser considerado perigoso. Sêneca revelou ao imperador a conduta libertina de sua esposa. Messalina se defendeu, lembrando a avareza de Sêneca e suas relações com suas serviçais do palácio, e a audácia com que ele tinha ousado insultar Calígula. Por fim, acusou-o de semear a discórdia entre ela e o imperador.
Os temores de Messalina aumentaram quando suas primas Júlia e Agripina foram trazidas por Cláudio de volta do exílio a que Calígula as condenara. Sêneca se tornou amante de Júlia – que era casada – e se pôs a aconselhar Agripina, seduzida por sua capacidade de encantar a multidão. A lei condenava ao exílio todos os homens culpados de adultério. Assim, Messalina informou Cláudio do romance com Júlia. Sêneca foi mandado para a Córsega e Júlia, para a ilha de Pandateria.

O filósofo permaneceu no exílio por oito anos. Enviou várias cartas aduladoras a Messalina, tentando fazê-la mudar de idéia. Pensando em suicídio, com a saúde abalada, ninguém acreditava que voltasse a Roma. Todavia, mesmo que por vezes sua conduta fosse condenável, os romanos ainda o respeitavam, pois tomava posições firmes diante dos problemas de sua época, não hesitando, por exemplo, em condenar os combates de gladiadores. Depois da morte de Messalina, Agripina, a Jovem (homônima de sua mãe), manobrou para se casar com seu tio Cláudio, o que se efetivou no ano 49, e desde o início de seu reinado impôs seus caprichos. Conseguiu que Sêneca fosse trazido de volta do exílio e que se tornasse pretor (ver glossário). Confiou a Sêneca a educação de seu jovem filho, Domício, o futuro Nero. Mas Agripina se deu rapidamente conta do gosto pelo poder de Sêneca e de sua habilidade de manobra. Sêneca, por sua vez, logo percebeu a crueldade de Agripina e decidiu se opor a ela, aliando-se a Sextus Afranius Burrus. Os dois homens orientavam o jovem Nero: Burrus, por seus talentos militares, e Sêneca, por seus ensinamentos de sabedoria. Aos 12 anos, Nero viu em Sêneca um substituto do pai, Domitius Athenobarbus, que tinha morrido dez anos antes.

Com a morte de Cláudio, coube a Sêneca a honra de redigir o elogio fúnebre proferido por Nero. A fim de exibir sua sabedoria e de fazer seu talento brilhar, Sêneca tinha o costume de redigir para Nero discursos cheios de clemência, favorecendo acusados pertencentes aos altos estratos sociais. Sêneca conseguiu pouco a pouco desviar para si mesmo toda a afeição que Nero sentia pela mãe.

Quando Agripina tentou se reaproximar do filho para retomar sua influência sobre ele, Sêneca se apressou a enviar uma ex-escrava, Claudia Acte, para seduzir o imperador. Na verdade, estava preocupado com o futuro de sua carreira, caso Agripina conseguisse retomar as rédeas do Estado. Em 58, o advogado Suillius acusou Sêneca de ser hostil aos amigos do antigo imperador, Cláudio. Acrescentou ainda que, acostumado à vida de estudos, Sêneca tinha inveja dos que dedicavam uma eloqüência “sadia” à defesa dos cidadãos.

Sêneca acumulava uma fortuna de 300 milhões de sestércios, que certamente não vinham de suas aulas de filosofia. Em Roma, caíam em sua rede os testamentos dos velhotes sem herdeiros. Pela usura, esgotou a Itália e as províncias. Como advogado não tinha direito de receber pagamentos pelo trabalho que fazia. Como resultado de ter enfrentado Sêneca, Suillius foi acusado de todos os crimes e mandado para as ilhas Baleares . Entretanto, se Suillius também era afeito à corrupção, seu mestre havia sido o próprio Sêneca.Quando Nero organizou o assassinato da mãe, o filósofo limitou-se a lhe perguntar se deveria encarregar os soldados do assassinato, sem proferir uma única palavra para salvar Agripina.SUICÍDIO Para não perder o posto, Sêneca prestou-se a todas as concessões. Quando seu príncipe decidiu se misturar aos histriões (ver glossário), ele providenciou uma cena teatral. Quando quis conduzir uma biga de corrida, mandou delimitar na colina do Vaticano uma área onde pudesse guiar seus cavalos.A morte de Burrus em 62 afetou seu poder. Muitos foram os que tentaram afastar Nero do filósofo, denunciando as imensas riquezas que ele havia acumulado durante os anos em que vivera na Corte. Sêneca queria ultrapassar o imperador, pelos atrativos de seu jardim e pela magnificência de suas casas de campo. Seu orgulho o levou a acreditar que era o melhor orador do mundo. Quanto às diversões do príncipe, depois de tê-las facilitado, as lamentava. Sentindo-se ameaçado, se afastou da Corte.
Mesmo assim, contra sua vontade, Sêneca se viu envolvido na Conspiração de Pisão, organizada por Caio Calpúrnio Pisão para assassinar Nero. Com o fracasso do complô, Nero ordenou a condenação de Sêneca à morte. Tiberius Plautius Silvanus Aelianus, que também havia feito parte da conspiração, mas tinha o pudor de não se mostrar em público, mandou um de seus centuriões avisar Sêneca da sentença fatal. Fiel no fim ao estoicismo que havia ensinado durante toda a vida, Sêneca ditou seu testamento e instou os amigos que choravam a se manterem fortes. Sua esposa, Pompéia Paulina, disse-lhe que estava disposta a morrer com ele. Temendo que ela fosse ultrajada depois de sua morte, Sêneca não se opôs. A mesma lâmina cortou as veias de seus braços e dos dela. Sêneca mandou que lhe abrissem também as veias das pernas e da parte posterior dos joelhos, porque seu sangue escorria demasiado lentamente.Nero, que não tinha nada contra Paulina e temia ver sua impopularidade aumentar se a deixasse morrer, ordenou que ela fosse salva. Paulina se deixou seduzir pelos encantos da vida. Por que morrer, se Nero não tinha nada contra ela? Quanto a Sêneca, que não conseguia morrer, pediu a um amigo médico que lhe trouxesse o veneno que já tinha providenciado havia tempos. Ele o tomou, mas em vão, pois seus membros já estavam frios. Entrou então em uma banheira com água quente e molhou os escravos que o cercavam, dizendo que oferecia aquela libação a Júpiter Libertador. Não sabia que, instados por Nero, seus serviçais acorriam à volta de Paulina, reanimando-a, amarrando seus braços para estancar o sangue. Pelo contrário, tomado pela dor, Sêneca achava que Paulina suportava os piores tormentos. Sentiu-se tentado a correr ao seu quarto, para lhe pedir que não consumasse tal sacrifício. Mas se lembrou da firmeza dela, e ordenou que o levassem a uma estufa, onde o vapor o sufocasse.Depois de morto, seu corpo foi incinerado sem qualquer pompa, como havia ordenado. Após levar uma vida luxuosa e dissimulada na Corte, durante 13 anos, e ser um cortesão disposto às piores concessões políticas; depois de se envolver em duvidosas transações financeiras; depois de praticar a usura sem qualquer escrúpulo e ser um oportunista até mesmo no ensino da moral estóica, Sêneca era dono de uma imensa fortuna, ao mesmo tempo em que pregava a filosofia da medida, da sabedoria e da moderação.Sua vida, assim como sua arte, oscilou entre um desregramento que por vezes beirou a luxúria, e um ideal de firmeza exagerado. Sêneca só foi sincero em suas convicções no início da carreira e no fim da vida.

16 de setembro de 2015
in o fascinante universo da história

CRONOLOGIA

4-1 a.C.
Período estimado para o nascimento de Sêneca, em Córdoba.

5
O jovem Sêneca reside em Roma.

37
Entra em conflito com o imperador Calígula, que o poupa de uma sentença de morte.

41
É enviado para o exílio pelo imperador Cláudio por influência de Messalina.

49
Agripina, a nova esposa de Cláudio, convence-o a trazer Sêneca de volta para Roma.

54-62
Período em que atua como conselheiro do imperador Nero, até a morte de Burrus.

65
Sêneca, sentenciado à morte por Nero, se suicida.