sábado, 24 de abril de 2010

VAIDADE DE VAIDADES!

Dos livros bíblicos do Velho Testamento, há dois que consagro especialmente como uma leitura diária: "O livro de Jó" e "O Livro do Eclesiastes ou Pregador". Do Novo Testamento, os Evangelhos, evidentemente, Atos, Romanos e Coríntios (I e II). Não vai nessa indicação qualquer restrição aos demais livros. Como não admirar o Livro dos Salmos? Os Provérbios de Salomão? Mas como disse e repito, voltando ao Velho Testamento, especialmente ao Eclesiastes, vou citar alguns versículos, que calam fundo em mim e sempre me levam a reflexão:

"01. Palavras do pregador, filho de Davi, rei em Jerusalém:
   2. Vaidade de vaidades! Diz o pregador, vaidade de vaidades! é tudo vaidade.

M. AMERICO
   3. Que vantagem tem o homem, de todo o seu trabalho, que ele faz debaixo do sol?
   4. Uma geração vai, e outra geração vem, mas a terra para sempre permanece.
   5. E nasce o sol, e põe-se o sol, e volta ao seu lugar donde nasceu.
   6. O vento vai para o sul, e faz o seu giro para o norte; continuamente vai girando o vento, e volta  fazendo os seus circuitos.
...................................................
   9. O que foi, isso é o que há de ser, e o que se fez , isso se tornará a fazer; de modo que nada há novo debaixo do sol.
 10. Há alguma coisa de que se possa dizer: vê, isso é novo? Já foi nos séculos passados, que foram antes de nós.
 11. Já não há lembrança das coisas que precederam; e das coisas que hão de ser também delas não haverá lembrança, nos que hão de vir depois."

Mas por que trago eu palavras bíblicas para um lugar, senão profano, ao menos pequeno demais para acoitá-las?
Para emprestar uma verdade, às observações do nosso cotidiano. Não cansa o homem de repetir nos seus atos, o lugar comum da vaidade, do orgulho, da arrogância. E para mostrar, pelas palavras de Gil Vicente, no seu AUTO DA LUSITÂNIA, o que vemos hoje, incrivelmente, repetir-se.
Gil Vicente é um homem nascido no reinado de D.Afonso V, alguns anos antes ou alguns anos depois de 1465 e falecido entre 1536 e 1540, testemunha, portanto, das lutas políticas do reinado de D.João II, a descoberta da costa africana, a chegada de Vasco da Gama à India, as conquistas de Afonso de Albuquerque, a transformação de Lisboa no cais mundial da pimenta, o fausto do reinado de D.Manuel, a construção dos Jerônimos, do Convento de Tomar e de outros monumentos, as perseguições sangrentas aos cristãos-novos e, finalmente, os começos da crise do reinado de D.João III, que trouxe a Inquisição, a Companhia de Jesus e o ambiente simultaneamente austero e hipócrita que ele próprio personifica na figura de Frei Paço, e que Camões definirá como uma "austera, apagada e vil tristeza". Viveu na época do poder absoluto.
Ignora-se a profissão e a condição social de Gil Vicente. Importa que viveu na corte palaciana e observou criticamente os diversos vícios sociais, especialmente os relativos à nobreza e ao clero.
O teatro vicentino é uma criação a partir de elementos tradicionais mais dispersos legados pela Idade Média. O Auto da Lusitânia é uma fantasia alegórica, em parte proveniente dos momos. O teatro de Gil Vicente é uma criação original e ímpar, de um prodigioso poder de invenção.
Vamos ao Auto, que é o que interessa...

TODO MUNDO e NINGUÉM
(1532) Excerto do AUTO DA LUSITÂNIA
Figuras: Ninguém, Todo o Mundo, Berzebu e Dinato.

[Estão em cena dois diabos, Berzebu e Dinato, este preparado para escrever].

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Entra TODO O MUNDO, rico mercador, e faz que anda buscando alguma coisa que lhe perdeu; e logo após ele, um homem, vestido como pobre. Este se chama NINGUÉM, e diz:

Ninguém: Que andas tu i buscando?
Todo o Mundo: Mil cousas ando a buscar: delas não posso achar, porém, ando porfiando, por quão bom é porfiar.
Ninguém: Como hás nome cavaleiro?
Todo o Mundo: Eu hei nome Todo o Mundo, e meu tempo todo inteiro sempre é buscar dinheiro e sempre nisto me fundo.

Ninguém: E eu hei nome Ninguém, e busco a consciência.

[Berzebu para Dinato]
Berzebu: Esta é boa experiência! Dinato, escreve isto bem.
Dinato: Que escreverei, companheiro?
Berzebu:  Que Ninguém busca consciência, e Todo o Mundo dinheiro.

[Ninguém para Todo o Mundo].
Ninguém: E agora que buscas lá?
Todo o Mundo: Busco honra muito grande.
Ninguém: E eu virtude, que Deuos mande que tope co'ela já.

[Berzebu para Dinato]
Berzebu: Outra adição nos acude: escreve logo i a fundo, que busca honra Todo o Mundo, e Ninguém busca a virtude.

Ninguém: Buscas outro mor bem qu'esse?
Todo o Mundo: Busco mais quem me louvasse tudo quanto eu fezese.
Ninguém: E eu quem me reprendesse em cada cousa que errasse.

[Berzebu para Dinato]
Berzebu: Escreve mais.
Dinato: Que tens sabido?
Berezebu: Que quer em extremo grado Todo o Mundo ser louvado e Ninguém ser repreendido.

[Ninguém para Todo o Mundo]
Ninguém: Buscas mais,amigo meu?
Todo o Mundo:  Busco a vida e quem ma dê.
Ninguém: A vida não sei que é, a morte conheço eu.

[Berzebu para Dinato]
Berzebu: Escreve lá outra sorte.
Dinato:  Que sorte?
Berzebu: Muito garrida: Todo o Mundo busca a vida, e Ninguém conhece a morte.

[Todo o Mundo para Ninguém]
Todo o Mundo: E mais queria o Paraíso, sem mo ninguém estrovar.
Ninguém:  E eu ponho-me a pagar quanto devo pera isso.

[Berzebu para Dinato]
Berzebu: Escreve com muito aviso.
Dinato: Que escreverei?
Berzebu: Escreve que Todo o Mundo quer paraíso, e Ninguém paga o que deve.

[Todo o Mundo pra Ninguém]
Todo o Mundo: Folgo muito d'enganar, e mentir naceo comigo.
Ninguém: Eu sempre a verdade digo, sem nunca me desviar.

[Berzebu para Dinato]
Berzebu: Ora escreve lá, compadre, não sejas tu preguiçoso!
Dinato: Quê?
Berzebu: Que Todo o Mundo é mentiroso, e Ninguém diz a verdade.

[Ninguém para Todo o Mundo]
Ninguém: Que mais buscas?
Todo o Mundo: Lisonjar.
Ninguém: Eu som todo desengano.

[Berzebu para Dinato]
Berzebu: Escreve, ande la mano!
Dinato: Que me mandas assentar?
Berzebu: Põe aí mui declarado, não fique no tinteiro: Todo o Mundo é lisonjeiro, e Ninguém desenganado.