sábado, 7 de dezembro de 2019

CRIMES DO COMUNISMO CUBANO QUE A ESQUERDA NÃO CONTA


TOCANDO AGORA

REPOSTAGEM: HOLOCAUSTO E INDÚSTRIA CULTURAL



"Die Todesmühlen" (Moinhos da morte, 1945).

Historiadores de todo o mundo continuam a perguntar-se como o nazismo foi possível. A progressão de uma barbárie que culminou em Auschwitz parece não ter sido suficientemente interpretada. E as pesquisas são incontáveis: já é humanamente impossível dominar a bibliografia e, mergulhados num caos de interpretações parciais e contraditórias e de interpretações de interpretações, igualmente parciais e contraditórias, somos tentados a fazer como Claude Lanzmann, que reagiu às racionalizações da Shoah com a afirmação contundente: “Aqui não tem nenhum por quê.”. Registrada por Primo Levi como a regra de Auschwitz que lhe fora ensinada por um S.S. assim que chegou ao campo, a frase foi retomada por Lanzmann como única atitude ética e operatória possível para encarar o horror escapando ao diversionismo das interpretações, “com a seqüência infinita das frivolidades acadêmicas ou das canalhices que ele (o porquê) não cessa de introduzir.” [1]

Mesmo os melhores livros sobre o Holocausto afiguram-se supérfluos a Lanzmann: “Lembro-me… de ter lido tantos livros de acadêmicos reputados, como, por exemplo, La formation de l’esprit allemand, de Georges Mosse. É um livro muito bom. Mas depois que se o lê tem-se que dizer: ‘Bem, será por causa de todas essas condições que as crianças foram gaseadas?’. Isto é o que chamei de obscenidade do projeto de compreensão – e isto é mais que obscenidade, é verdadeira covardia, porque a idéia de sermos capazes de engendrar harmoniosamente, se posso dizer assim, essa violência, é um sonho absurdo de não-violência. É uma forma de escapismo, uma maneira de não encarar o horror.”

Lanzmann rejeitou até mesmo Eichmann em Jerusalém: “Essa história da banalidade do mal – com o perdão de Hannah Arendt, ela escreveu algumas coisas melhores, não? Penso que todas aquelas pessoas sabiam perfeitamente que o que estavam fazendo não era absolutamente banal. Talvez elas fossem banais, mas elas sabiam que o que elas estavam realizando não era nada banal, certamente não.” [2]

Uma teologia do Holocausto tende a elevar o acontecimento histórico a um plano metafísico, implícito nos desígnios de Deus na sua luta contra o Demônio, como uma provação necessária pela qual os judeus teriam de passar, diante de uma humanidade indiferente, como parte de um drama escrito nas estrelas. Nessa perspectiva religiosa, o acontecimento adquire um sentido hermético, que apenas os iniciados podem apreender, como se eles tivessem encontrado, no pacto com o carrasco-iniciador, uma reserva secreta de poder sobre a multidão dos profanos.

O projeto de compreender a Shoah pode implicar a idéia de sua aceitação como causalidade inscrita no jogo de forças que determinam o movimento dialético da História, na visão tranqüilizadora de um mundo racional, que se estrutura através dos conflitos entre classes e grupos, em torno de interesses econômicos. Neste caso, a compreensão está a meio caminho da recuperação, do perdão, do esquecimento. O mundo segue sua marcha, evoluindo, progredindo, avançando na meta inevitável da nivelação social. E, no entanto, Auschwitz é a negação da conformista visão marxista do mundo: um buraco negro na dialética sangrenta, mas ainda perfeitamente razoável, da luta de classes.

Como pressentiu o poeta Yehiel Dinur, Auschwitz escapou às leis da História e da Natureza, constituindo um fenômeno histórico cuja simples existência é capaz de revolucionar o conceito que os homens possuíam, não apenas da História, como da própria vida: “Não me considero um escritor. O que eu escrevo é a crônica do planeta Auschwitz. Passei cerca de dois anos lá. O tempo lá não passa como aqui na Terra. Cada fragmento de segundo transcorre segundo outra medida de tempo. Os habitantes deste planeta não têm nome, nem pais, eles não nasceram lá e não deixam filhos. Eles respiram segundo outras leis da natureza. Eles vivem e morrem segundo outras leis que as deste mundo. Acredito no mais fundo do coração que, assim como na astrologia as estrelas influenciam nosso destino, este planeta de cinzas, Auschwitz, está diante de nosso planeta Terra e o influi.”

No projeto de compreender a Shoah há ainda outra dimensão a ser considerada: a de um saber apocalíptico capaz de transformar a consciência humana. Se o gesto que leva o homem aos abismos da loucura permanece inapreensível à razão, o processo histórico dessa loucura pode e deve ser interrogado, pois suas correntes subterrâneas continuam a fluir, emergindo, a cada crise, à superfície do espaço público. Mas o desejo de que Auschwitz não se repita, sob qualquer forma, em qualquer lugar e em qualquer tempo, implica em encarar o horror; e não há como fazê-lo senão pela representação e pela consciência histórica. E é no campo da representação que a rejeição emocional à tentativa de compreender o processo histórico que levou a Auschwitz – tentativa que Lanzmann considera como “frivolidade acadêmica”, “culto do material escrito” e “exploração da alma dos carrascos” – encontra sua maior resistência.

Bruno Bettelheim, num ensaio de seu livro Sobreviver, um ensaio brilhante, mas desatento à condição do cinema como arte industrial, já havia condenado Pasqualino Settebelezze (Pasqualino Sete Belezas, 1976), de Lina Wertmüller, como inverídico e caluniador. Num ensaio menos brilhante, Reflexions of Nazism, an Essay on Kitsch and Death, Saul Friedländer estendeu a crítica a Cabaret (Cabaret, 1972), de Bob Fosse; Il Portiere di Notte (O porteiro da noite, 1974), de Liliana Cavani; e Sophie’s Choise (A escolha de Sofia, 1982), de Alan Pakula, como filmes glamourizadores do nazismo como metáfora do Mal.

Durante um evento organizado por uma associação psicanalítica americana, em que se debateria um documentário holandês sobre o médico Eduard Wirth, carrasco de Auschwitz, após assistir ao filme em sessão privada, e considerando-o uma tentativa de reabilitar o doutor nazista, Claude Lanzmann tentou convencer os espectadores a não vê-lo. A platéia, reunida ali justamente para com ele debater o filme, protestou contra essa sua sugestão de censura. Vencido por uma curiosidade adulta, Lanzmann concluiu pateticamente: “Eu realmente queria proteger vocês.” [3]

Como Lanzmann, mas com uma argumentação muito mais inquietante, os cineastas alemães Hartmut Bitomsky e Heiner Mühlenbrock, autores de um documentário sobre a vanguarda nazista, Deutschlandbilder (Imagens da Alemanha, 1992), recusaram usar imagens de Auschwitz em seu filme sob o seguinte argumento: “Cada um que usa as imagens de um tal sofrimento, toma imediata e irrecusavelmente uma posição moral de direito, mas sem nada ter feito, realizado ou sofrido, mantendo-se o mais distante possível do que se vê nas imagens. Quando hoje alguém mostra estas imagens, continua a praticar mais uma vez o crime. Os mortos lhe são bem-vindos.” [4]

Aqui, a razão do não uso das imagens de Auschwitz é de um pudor tão extremo que beira a má-fé: ao equiparar os crimes hediondos dos carrascos nazistas à divulgação das imagens desses crimes, Bitomsky e Mühlenbrock sugerem que todos os registros de abertura dos campos, todas as provas apresentadas ao Tribunal de Nuremberg, todos os livros de História do Nazismo, todas as mídias judaicas, todos os Museus do Holocausto seriam, ao exibir essas imagens, tão criminosos quanto os carrascos nazistas. Distorcendo Adorno, os pudicos do Holocausto recaem numa forma intelectualizada de antissemitismo. O exemplo mais acabado dessa pudicícia do Holocausto que leva ao ódio à memória organizada e, logo, ao antissemitismo, é a tese desenvolvida por Norman Finkelstein em A indústria do Holocausto, um livro que, não sendo propriamente antissemita, foi a justo título adotado por todo antissemita.

Ora, deverão as imagens do horror dos campos de morte, realizadas assim que eles foram abertos, revelando seu horror ao mundo, ao término da guerra, pelos documentaristas dos Exércitos Aliados (entre os quais se encontravam alguns dos maiores cineastas de todos os tempos, como Frank Capra, Anatole Litvak, George Stevens, John Ford, Alfred Hitchcock, Billy Wilder, Samuel Fuller) serem pouco a pouco esquecidas? Deverá o nazismo ser representado apenas pelas imagens de seus próprios documentaristas, que mostravam como se vivia bem, em força e beleza, sob o ‘Terceiro Reich’?

Claude Lanzmann pôde ainda recorrer aos sobreviventes dos campos em Shoah (Shoah, 1985). Sem utilizar nenhuma imagem de arquivo, ele transmitiu o acontecimento combinando as linguagens oral, gráfica, gestual e cinematográfica numa obra de arte que é, ao mesmo tempo, um documento histórico. Com nove horas e meia de duração, o filme de Lanzmann, cuja realização ocupou onze anos de sua vida, recorda o genocídio dando a palavra aos carrascos e vítimas, trazendo o horror do passado ao presente apenas pela forca da evocação, obrigando o espectador a imaginar o que aconteceu e a pensar no que isto significou, revelando o aspecto absoluto da tragédia dos judeus: como eles foram abandonados pelo mundo e levados a morrer nas câmaras de gás.

Shoah é um documentário exemplar e Lanzmann pode dar-se ao luxo de aí dispensar as imagens de arquivo, já que contou com depoimentos de judeus sobreviventes dos campos e de carrascos nazistas ainda vivos. Mas até quando os sobreviventes do Holocausto poderão dar seu testemunho? Como poderão os cineastas e documentaristas do futuro revisitar Auschwitz sem recorrer às imagens de arquivo? Para alguns críticos judeus, a resposta é simples: Auschwitz não deve mais ser representado.

Para A. B. Yehoshua, representar o Holocausto seria desrespeitar milhões de vítimas: só se poderia aludir ao inconcebível, ao nefando, ao indizível de maneira indireta. Como Perseu, que só conseguiu degolar a Medusa, que petrificava os que a viam, perscrutando-a através de seu escudo brilhante, que lhe serviu de espelho, o Holocausto só poderia ser percebido indiretamente, através de alusões e de metáforas. Por outro lado, transformar o Holocausto em objeto de fruição estética é imoral: não poderia haver em sua representação nenhuma beleza que causasse prazer: ao abordar o tema, a arte precisaria abdicar de sua essência.

Da mesma forma, Elie Wiesel, num artigo publicado no The New York Times, elevou o protesto contra as representações de Auschwitz a toda a indústria cultural, não se limitando a criticar alguns filmes, mas questionando a própria possibilidade de se representar o horror dos campos: “Por que essa determinação de mostrar ‘tudo’ nos filmes? Uma palavra, um olhar, o próprio silêncio comunica mais e melhor. De que modo, afinal, é possível ilustrar a fome, o terror, a solidão de anciãos destituídos de forças e órfãos sem futuro? Como é possível ‘encenar’ um comboio de deportados que foram desarraigados e estão sendo enviados para o desconhecido, ou a liquidação de milhares e milhares de homens, mulheres e crianças? Como é possível ‘produzir’ os metralhados, os asfixiados nas câmaras de gás, os cadáveres mutilados, quando o espectador sabe que eles são atores, e que depois da filmagem voltarão ao hotel para um banho bem merecido e uma farta refeição? Certamente, isto também se aplica a todos os temas de todos os filmes, mas é justamente esta a questão: o Holocausto não é um tema como todos os outros. Ele impõe certos limites. Há técnicas que não deveriam ser usadas, ainda que sejam comercialmente eficazes. Para não trair os mortos e não humilhar os vivos, este tema, particularmente, requer uma sensibilidade especial, uma abordagem diferente, um rigor fortalecido pelo respeito e a reverência e, sobretudo, fidelidade à memória.” [5]

Na literatura de Wiesel, o Holocausto é apresentado como algo de indizível, indescritível, inexprimível, inimaginável, impensável, indecifrável, inescrutável, inefável, inapreensível: “A verdade de Auschwitz permanece oculta em suas cinzas. Somente aqueles que viveram sua realidade na carne e na mente talvez possam transformar sua experiência em conhecimento. Os outros, por melhores que sejam as suas intenções, não podem fazê-lo”. Sim. Mas de que serviria a razão se o conhecimento fosse apenas atingido pela experiência pessoal? Wiesel parece de antemão derrotado: “Essa é a vitória do algoz: ao elevar os seus crimes a um nível além da imaginação e da compreensão humanas, ele planejou privar suas vítimas de qualquer esperança de compartilharem o seu monstruoso significado com os outros”.

Contudo, é Elie Wiesel quem recusa as tentativas realizadas pelo cinema de comunicar ao grande público, sem acesso aos documentos, o significado da Shoah, revoltando-se quando “mercadores de imagens e corretores da linguagem se põem a falar em nome das vítimas”. Até que ponto a mitificação do acontecimento não constitui uma recaída do pensamento crítico na metafísica religiosa, na tentativa de substituir a razão pela experiência como instrumento do saber? A diferenciação que Wiesel faz dos assassínios nazistas de qualquer outro assassínio tende à sacralização do Holocausto, para além de sua especificidade histórica, que inclui a intenção singular do extermínio total de um povo, o número inédito das vítimas e as técnicas inusitadas empregadas nessa destruição.

Mas que princípio ético justifica essa distinção? Ideologia, número, técnica? Wiesel condena o “sensacionalismo” em torno da Shoah como uma blasfêmia e uma profanação, apoiando-se na tradição judaica, segundo a qual “a morte é algo íntimo, privado, e é proibido transformá-la num espetáculo”. O perigo de tal invocação está na constituição de um novo dogmatismo: toda tradição religiosa torna-se terrorista ao agir na esfera laica para suprimir a expressão autônoma dos indivíduos.

Ao analisar as peças e filmes que abordam a Shoah, o que Elie Wiesel recusa, em nome de uma ética religiosa, é o próprio princípio da representação estética: “Homens nus. Mulheres nuas. Crianças nuas. E todos eles maquilados com ketchup e pagos para ‘cair’ nas ‘valas coletivas’. Como é possível explicar tal obscenidade?” Ora, se a arte devesse ser regida pela religião (e a linguagem de Elie Wiesel é conscientemente bíblica), teríamos que recusar, igualmente, as tragédias de Ésquilo, Sófocles e Eurípides, as epopéias de Homero, as peças de Shakespeare e Racine, os contos de Poe e Lovecraft, os filmes de Hitchcock e Polanski, para citar apenas alguns artistas que transformaram o crime, a violência, a maldade e a morte em “espetáculos”.

Toda a arte ocidental, baseada na representação, estaria, por esses critérios, condenada ao desaparecimento. O protesto de Elie Wiesel soa como um eco tardio do discurso de Jean-Jacques Rousseau contra as ciências e as artes, e no qual a representação era condenada de uma perspectiva moralista como fonte de luxúria e decadência. Neste sentido, o lançamento de Schindler’s List (A lista de Schindler, 1993), de Steven Spielberg, reabriu a polêmica sobre a possibilidade de uma reconstituição histórica do Holocausto para o grande público através do cinema. Depois da série da NBC-TV Holocaust (Holocausto, 1978), de Marvin Chomsky, mais um grande sucesso comercial sobre a Shoah! Spielberg não negligenciou o mercado alemão, o maior da Europa, escolhendo adaptar o romance de Thomas Keneally, cujo herói é o industrial nazista Oskar Schindler, e não outros mártires judeus, ou justos não-nazistas.

Mas o filme de Spielberg não poderia ser acusado de “puro entretenimento”. Se ele já abordara o mundo real em The Color Purple (A cor púrpura, 1985) e Empire of the Sun (Império do sol, 1987), nunca antes engajara seu cinema para reverenciar a memória da catástrofe de seu povo. A contradição permanece: para atingir um grande público, Spielberg amenizou a realidade dos campos de morte e não fez um filme sobre os mortos, como Shoah; para seduzir a crítica, sonhando com a noite do Oscar, optou pela fotografia em preto-e-branco e uma duração dilatada, por um estilo de reportagem documental.

Claude Lanzmann protestou num artigo editado por Le Monde logo após a estréia do filme: Schindler’s List seria uma aventura a Indiana Jones; judeus e alemães estariam em permanente comunicação; a própria opção pela forma narrativa, pelo gênero “ficção” trairia os propósitos comerciais do filme, apesar de toda a seriedade com que reconhecidamente fora feito. O que Lanzmann não aceitava era que o tema pudesse atingir um grande público através das formas pelas quais este público estava acostumado a viver suas emoções: com lágrimas reconfortantes, sentimentalismo, vibração pelo herói, compaixão pelos sobreviventes e um quase desprezo pelos mortos.

Mesmo acreditando que o cinema é capaz de tudo, Spielberg evitou mostrar os gaseamentos. Ele poderia tê-lo mostrado, e isto seria politicamente correto num tempo em que neonazistas centram sua propaganda justamente na negação da existência das câmaras de gás. Mas, como artista, Spielberg preferiu sublimar a realidade, apenas sugerindo os gaseamentos de uma forma simbólico-material, na seqüência das mulheres sob o chuveiro; por uma sorte tremenda, elas escapam ao destino da massa dos prisioneiros. Lanzmann considerou estas imagens sublimadas do Holocausto obscenas; para ele, aliás, todas as imagens do acontecimento deveriam ser impedidas, censuradas, proibidas. Chega a confessar que se encontrasse nos arquivos um filme realizado por operadores nazistas mostrando os gaseamentos, não hesitaria: “Eu destruiria este filme”.

Este impulso de destruir documentos visuais coincide de modo inquietante com a prática dos neonazistas falsificadores da História, que poderiam agir como Lanzmann diz que agiria, caso encontrasse tal filme (não acreditamos que ele o faria: sua retórica é apenas uma maneira de ser crítico do revisionismo valorizando sua própria opção estética em Shoah) a fim de impedir as futuras gerações de constatar, de forma irrecusável, o horror “inimaginável”. Recaindo, em sua crítica que se queria radical, num moralismo igualmente radical, Lanzmann termina sancionando uma conduta que poderia ser facilmente adotada, sem o menor escrúpulo, pelos revisionistas e neonazistas.

O paradoxo da indústria cultural é que ela é por natureza boa e má ao mesmo tempo, obrigando os artistas a todo tipo de concessões para que possam atingir as massas, e, deste modo, elevá-las a algum patamar de sensibilidade e consciência. Em outras palavras, é nos seus defeitos mesmos, ou seja, por ser comercial e massificante, que o filme de Spielberg tornou-se um dos melhores antídotos já produzidos contra o veneno que os movimentos neonazistas oferecem, quase sem resistência, às massas que vão sendo desempregadas pela automação do trabalho nas sociedades industriais. Um antídoto cujo efeito, claro, é passageiro, uma vez que a raiz do mal não está nas novas ideologias que o automatismo gera ou favorece, mas nesse modo de produção que desemprega em massa.

Elie Wiesel e Claude Lanzmann consideram os projetos de representação estética e de compreensão racional da Shoah “obscenos”. No entanto, a arte permanece o meio mais universal da transmissão sensorial do conhecimento. A Shoah, enquanto acontecimento histórico, não poderia ser profanada por sua representação, nem o projeto de sua compreensão racional poderia ser imoral em si mesmo. Na sua unicidade e singularidade, Auschwitz continua inserido – como Hiroshima e Nagasaki, modelos diversos e talvez ainda mais radicais de Holocausto – na História da Humanidade, como barbárie inédita em sua forma e conteúdo, mas produzida pela ação humana e pelo que permanece oculto na aparente banalidade do comportamento humano, um acontecimento que requer estudo para ser compreendido e arte para ser transmitido em todas as suas dimensões.

Na resenha intitulada “O sagrado como deserto”, Luiz Costa Lima afirma – dificilmente com razão – que Mameloshn [6] da psicanalista Halina Grynberg, é “o primeiro livro publicado no Brasil por uma descendente dos que sobreviveram ao Holocausto.” [7] Observa que o subtítulo, Memória em carne viva, é “mero arbítrio”, pois em sua opinião o livro poderia ser um romance, sendo esse gênero rejeitado pela autora devido à “descontinuidade que, na visão contemporânea, separa a experiência nos campos de concentração nazistas e a forma ficcional”.

Luiz Costa Lima atribui essa descontinuidade ao “tabu da ficcionalização do Holocausto”. Ele não se decide, contudo: por um lado, censura a autora por temer transformar em ficção os horrores que os pais dela sofreram, embora eles pudessem dar interessantes personagens; por outro lado, afirma que, “embora a autora não o saiba” (e como ele sabe que ela não sabe?), é o respeito a esse tabu que distingue seu livro da massa amorfa, evitando “a obscenidade de cenas de impacto, facilmente transformáveis em best-seller ou em peça de propaganda de um país”. O crítico sugere que obras que mostrem os horrores do Holocausto serão negócio garantido ou propaganda de Israel, obra de judeu ganancioso (a “indústria do Holocausto”) ou de judeu sionista (que “massacra os palestinos”): “Embora a decisão de Lanzmann tenha de antemão lhe recusado a assistência de nem sequer um milionésimo dos espectadores do diretor norte-americano, filmes posteriores – A vida é bela, de Roberto Benigni, e O pianista, de Roman Polanski – mostram que Lanzmann venceu o desafio: para a sensibilidade de agora, ficcionalizar o Holocausto equivale a uma verdadeira obscenidade. Para que a evitassem, Benigni, numa solução discutível, optou por focalizar a experiência concentracionária sob uma ótica infantil e, Polanski, pela criação de um argumento paralelo: a do próprio protagonista, cuja carreira é cortada pela raiz pelo evento que permanece em segundo plano. Em ambos os casos, pois, a invenção fílmica evita ou tratar a matéria dura pelos olhos de um adulto ou dispô-la em primeiro plano. [...] É espantoso que, em tempos dessacralizados como os nossos, se crie uma nova prática de proibição da figura. A proibição, conhecida por culturas antigas como a hebraica e a islâmica, tinha como razão o sagrado. Interditava-se a representação do sagrado ou de toda figura que se lhe assemelhasse. Hoje, não é nenhum sagrado que formula o princípio interditor; nem muito menos há algum preceito que o exprima literalmente. A interdição (prática) de representação ficcional do Holocausto não aponta senão para o lugar vazio hoje ocupado pelo sagrado. O sagrado é a ausência que mal conseguimos perceber ou entender. Por isso mesmo seu desrespeito será exercitado em nome de um “sagrado” que se respeita sem que se lhe tenha como tal: a caixa da bilheteria, a conta bancária, as cotações da Bolsa.” [8]

O crítico contraditoriamente considera “espantosa” a suposta “nova prática de proibição da figura” que hoje interditaria a ficcionalização do Holocausto, ao mesmo tempo em que observa, com amargura, que os que desrespeitam tal tabu fazem-no em nome de outro “sagrado”: “a caixa da bilheteria, a conta bancária, as cotações da Bolsa”. O crítico emite uma mensagem com dois sentidos opostos: os judeus devem quebrar esse tabu, mas os que o quebram são gananciosos avarentos ou propagandistas de Israel. Assim, ele sugere à autora que ficcionalize o Holocausto com seus “personagens interessantes” ao mesmo tempo em que censura os que ficccionalizam o Holocausto como geradores de best-sellers e propagandistas de Israel: um beco sem saída!

Na verdade, as contradições de Costa Lima são de ordem metodológica. Para explicar o suposto medo da autora de quebrar o suposto tabu da ficcionalização do Holocausto, ele compara A lista de Schindler, de Steven Spielberg, com Shoah, de Claude Lanzmann; qualifica negativamente o primeiro como uma obra de “ficção, com todos os ingredientes – enredo sentimental, música de fundo melodramática, reconstituição de época, o homem de ‘bons sentimentos’ entre uma corja de animais, etc. para atrair centenas de milhares de espectadores”; e o segundo positivamente de “recusa terminante de romancear a tragédia”. Afirma que Lanzmann, apesar de fracassar na bilheteria, venceu o desafio, dado que filmes posteriores, como A vida é bela, de Roberto Benigni, e O pianista, de Roman Polanski, evitaram a obscenidade de ficcionalizar o Holocausto – Benigni focalizando a experiência concentracionária sob uma ótica infantil, Polanski criando o argumento paralelo da carreira do protagonista cortada pelo Holocausto, deixado em segundo plano: nos dois casos, essas invenções cinematográficas evitariam a “matéria dura”.

Ora, em primeiro lugar, o filme de Spielberg é igualmente posterior ao de Lanzmann, participando, logicamente, da mesma “visão contemporânea” de A vida é bela e O pianista. Tanto Spielberg quanto Benigni e Polanski ficcionalizam o Holocausto. A posição de Lanzmann não venceu, como afirma Costa Lima. Benigni, de maneira torpe, e Polanski, com dignidade, seguiram, bem ao contrário, a opção artística de Spielberg (e de tantos outros cineastas), e não a opção radical de Lanzmann. Não há, portanto, nenhum tabu atual quanto à ficcionalização do Holocausto: o que existe é uma dificuldade óbvia de tratar de tema tão complexo e sensível.

Um dos sentidos da palavra “ficção” é o de coisa falsa, inventada. Contudo, uma “obra de ficção” não é necessariamente falsa, inventada: se há ficção saída da pura imaginação, há ficção baseada em fatos reais; e para além das obras de ficção, há memórias documentais e memórias romanceadas. Se a autora não pretendeu escrever romance, nem memória romanceada, mas memória documental, ela tem todo o direito de reivindicar para seu relato esse caráter, e não outro.

Diários da época, como Crônica do Gueto de Varsóvia, de Emmanuel Ringelblum; depoimentos como É isso um homem?, de Primo Levi; A noite, de Elie Wiesel; ou O coração informado, de Bruno Bettelheim; análises como A destruição dos judeus da Europa, de Raul Hilberg; romances como Treblinka, de Jean-François Steiner, ou O jardim dos Finzi Contini, de Giorgio Bassani; reportagens da época como Moinhos da morte (1945) e Evidência para toda a humanidade (1945); filmes de ensaio com base documental, como Noite e brumas (1955), de Alain Resnais; filmes testemunhais, como Shoah (1985), de Claude Lanzmann; documentários como O longo caminho para casa (1997) e Nos braços de estranhos (2000), de Mark Jonathan Harris; e The Last Days (1998), de James Moll; ou filmes de ficção baseados em fatos reais, como Estrelas (1959), de Konrad Wolf; A passageira (1963), de Andrzej Munk; O jardim dos Finzi Contini (1970), de Vittorio de Sica; A escolha de Sofia (1982), de Alan Pakula; A lista de Schindler (1993), de Spielberg; ou O pianista (2003), de Polanski, são obras que, em diferentes gêneros, abordam a realidade do Holocausto, ampliando nossa consciência, agindo no sentido de alertar a humanidade sobre os perigos das idéias, das palavras e dos atos que conduzem ao anti-semitismo, ao totalitarismo, ao genocídio – fenômenos que estão longe de desaparecer de nosso mundo.

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[1] LANZMANN, Claude. “Hier ist kein Warum”, in Au sujet de Shoah – Le film de Claude Lanzmann. Paris: Belin, p. 279.

[2] LANZMANN, Claude. [Entrevista]. American Imago, v. 48, 1991, n° 4, p. 473-496.

[3] LANZMANN, Claude. [Entrevista]. American Imago, v. 48, 1991, n° 4, p. 473-496.

[4] BITOMSKY, Hartmut; MÜHLENBROCK, Heiner, apud ROSENBERG, Karen, Mit Avantgarde-Verfahren gegen die Avantgarde der Nazizeit, Kinetmathek, n° 78, ano 29, mar. 1992.

[5] WIESEL, Elie. A dessacralização do Holocausto. O Estado de Sao Paulo, Caderno Cultura, n° 466, 1° jul. 1989, p. 1-2.

[6] O iídiche falado na Europa Oriental, especialmente na Polônia.

[7] LIMA, Luiz Costa. O sagrado como deserto. Folha de S. Paulo, 30 mai. 2004.

[8] LIMA, Luiz Costa. O sagrado como deserto. Folha de S. Paulo, 30 mai. 2004.


janeiro 2, 2011
Luiz Nazario