segunda-feira, 20 de julho de 2015

O CASTIGO DESABOU DO CÉU




No ranking de acontecimentos de interesse global, violência e morte na Faixa de Gaza costumam ter pontuação baixa. Foram tantas as guerras, intifadas, deslocamentos humanos e territoriais naquele enclave do Oriente Médio que notícias de nova erupção entre palestinos e israelenses parecem já nascer velhas. Não seria diferente em novembro passado. O mundo estava ocupado olhando para a agonia eleitoral de George W. Bush nos Estados Unidos, a condenação à forca de Saddam Hussein, a colisão de dois aviões no céu brasileiro. Foi a imagem da menina Maysa Al-Athamna, envolta no pranto fúnebre de sua gente, que entreabriu, fugazmente, a fresta de interesse por Gaza.

Numa manhã de junho, a base militar de Kerem Shalom, na fronteira de Israel com Gaza, foi surpreendida pelo assalto de um grupo de militantes palestinos. Os invasores tinham conseguido cavar um túnel de 1 km de extensão para chegar até a fortificação. Pior: causaram duas baixas no poderoso inimigo, fizeram um prisioneiro e sumiram com ele. Desde então, o cabo Gilad Shalit, nascido na Galiléia e com dupla nacionalidade (franco-israelense), está seqüestrado. Completou 20 anos e deixou as Forças de Defesa de Israel insones e humilhadas. Estava com uma mão quebrada e tinha um ferimento no ombro quando foi raptado.

Preço inicial do resgate exigido pelos terroristas no dia seguinte: a libertação de todas as mulheres e todos os homens palestinos de menos de 18 anos presos em Israel. Preço adicional, comunicado cinco dias mais tarde: libertação de outros mil prisioneiros palestinos e interrupção dos assaltos militares de Israel contra Gaza, desencadeados pelo seqüestro do soldado.

A essa altura, já estava em curso a Operação Chuvas de Verão, desencadeada por Israel contra um território do tamanho de Belo Horizonte, com uma das populações mais jovens do mundo - 49% dos seus 1,4 milhões de habitantes têm menos de 14 anos. "Os céus desabarão", haviam advertido as autoridades militares, alertando para a integridade física do cabo Shalit. Disparos tombaram sobre Gaza três dias depois do seqüestro do soldado, matando pelo menos 370 palestinos, metade deles civis. Entre eles, a pequena Maysa, de 3 anos.

Foi por volta das cinco e meia da manhã que os primeiros foguetes de 155mm atingiram a localidade de Beit Hanun. Eles acertaram os prédios da Rua Hamad, quase toda ocupada pela extensa parentela dos Al-Athamna. As crianças ainda dormiam e os adultos terminavam de se lavar para a primeira oração do dia. No caos das explosões, cabeças foram arrancadas dos corpos e a rua se transformou num painel de Bosch. "Vi a perna da minha tia Jamila soltar-se no ar", conta Haneen, de 20 anos, que morava num quarto andar. "Tentei socorrê-la, mas ela gritou que eu deveria correr e me salvar."

o final, havia sessenta feridos e dezenove mortos, sendo treze da mesma família. Vinte e quatro horas depois, o taxista Madji Al-Athamna chegava ao necrotério do hospital Kamal Adwan para dar conta das perdas. Anotou, um a um, num maço de cigarros aberto, os nomes dos cadáveres que lhe iam sendo apontados no frigorífico - dois filhos seus, três irmãos, oito primos e sobrinhos. Entre eles, a menina Maysa. Todos foram transportados para seus túmulos em macas ou caixões abertos, exceto Maysa e a caçula do clã, Maran, de 18 meses, carregadas nos ombros da multidão.

Por um fiapo de tempo, os protagonistas dessa longa história de relações marcadas a sangue interromperam a engrenagem. Em Telavive, o pai do soldado ainda em mãos dos palestinos irrompeu no hospital em que se encontravam feridos da Rua Hamad e se encontrou com o palestino Osama Al- Athamna, primo de Maysa. Juntos, pediram o fim da violência. O primo Madji, que havia anotado as perdas no maço de cigarros, considerou a visita respeitosa, um alento.

O governo israelense atribuiu a matança à falha de um componente eletrônico do sistema de lançamento de artilharia, e ordenou a abertura de (mais um) inquérito para apurar responsabilidades. Segundo o primeiro-ministro Ehud Olmert os ataques visavam um laranjal usado pelos palestinos para lançar foguetes caseiros Qassam contra civis do outro lado da fronteira.

Mas a engrenagem já retomou seu ritmo habitual. Na última semana de novembro, foguetes palestinos voltaram a freqüentar quintais israelenses. Uma mulher-bomba palestina foi explodida por uma granada antes de se estourar contra um pelotão de soldados israelenses. Ela tinha 57 anos, era mãe de nove filhos, avó de quarenta netos e estava revoltada com as mortes de Beit Hanun.

"Nossa castanheira está toda florida. Coberta de folhas está ainda mais bonita do que no ano passado. (Maio, 1944)."

Foi condenada à morte a castanheira de 150 anos que se tornou conhecida dos mais de 31 milhões de leitores, em 67 línguas, do Diário de Anne Frank. Vítima de um fungo agressivo, ela terá de ser abatida da frente do sobrado que escondeu a família Frank dos campos de extermínio nazistas por 25 meses. Em 1990, a prefeitura de Amsterdã já havia desembolsado o equivalente a R$440 mil para sanear um vazamento de óleo doméstico que ameaçava destruir as suas raízes. Mais recentemente, uma equipe de botânicos combateu por seis meses o asfixiamento da árvore por outros parasitas.

Prevendo a sua morte, foram feitos três enxertos, e uma nova árvore será plantada no mesmo local. Além disso, a castanheira tem direito a uma sobrevida virtual, através do sítio www.annefranktree. com. No Oriente Médio, poucas vidas recebem tantos cuidados.

20 de julho de 2015
Dorrit Harazim

O DILEMA DE SALTER


Um dos melhores escritores norte-americanos do século XX lidou até o fim com a frustração de não ser famoso

No começo dos anos 70, James Horowitz, um piloto da Força Aérea americana que deixara o emprego para virar escritor, recebeu uma mensagem encorajadora sobre um de seus manuscritos. Roger Angell, editor de ficção da revista The New Yorker, mandou-lhe um bilhete: “Venha ao meu escritório para a gente conversar.”

Alguns anos antes, Horowitz, um judeu nova-iorquino formado pela prestigiosa academia militar de West Point, trocara seu sobrenome para Salter. A reinvenção não era só estética. Ele havia atuado como piloto na Guerra da Coreia, tinha feito amigos no campo de batalha, gostava do que fazia. Não conhecia ninguém no meio literário. Já tinha 32 anos. Precisava do simbolismo de um novo nome. Um pouco como o marinheiro Joseph Conrad, que, aos 36 anos, abandonou os mares para escrever, Salter abandonara os céus.

Ele encontrou-se com Angell no Centro de Nova York, em uma salinha cinzenta. Angell elogiou o conto, disse que tinha gostado muito. “É muito bom mesmo”, disse o editor, “mas eu não posso publicar.” Salter ficou surpreso. Não estava entendendo nada. “Na New Yorker temos duas regras”, Angell explicou. “A primeira é que nunca publicamos contos com obscenidades. A segunda é que nunca publicamos contos sobre a escrita, ou sobre os próprios escritores.”

Salter ficou mal com a rejeição e alguns anos depois contou a história a seu amigo Saul Bellow. Bellow, escritor prestes a ganhar o Nobel – consagrado, rico, em seu quarto e penúltimo casamento –, lembrou-se então de um encontro que tivera com Angell no começo da carreira. Ele procurara o editor da revista para oferecer partes de seu segundo livro, A Vítima. Angell recusou o manuscrito. “Na New Yorker temos duas regras”, ele disse. “A primeira é que nunca publicamos contos com obscenidades. A segunda é que nunca publicamos contos sobre a morte ou sobre os que estão morrendo.”



Como ficcionista, Salter construiu, ao longo de décadas, uma reputação por ser um narrador conciso e lírico, pouco conhecido do grande público, mas admirado – cultuado – por outros escritores e críticos literários. Muitos o colocavam entre os melhores do século XX. O epitáfio que mais circulou depois de sua morte no dia 19 de junho, aos 90 anos, foi uma descrição do jornalista Nick Paumgarten, num perfil de 2013 da mesma revista que não aceitara seu conto décadas antes. No artigo, Paumgarten diz que Salter não é um “escritor de escritores”, mas um “escritor de escritor de escritores” (a writer’s writer’s writer).

Paradoxalmente, quanto mais esse epitáfio circula, mais falso ele se torna. Aindaassim, houve algum excesso de solenidade nas apreciações póstumas sobre Salter na imprensa americana, como se os obituaristas do New York Times e do Washington Post tivessem lido muitas reportagens sobre o escritor, mas não a sua ficção. Ou então leram e não gostaram. Seja como for, os elogios – ao mesmo tempo grandiloquentes e desapegados, como num buscador de sinônimos do Word – parecem mascarar uma verdade um pouco dolorida: Salter dificilmente será, algum dia, um escritor com muitos leitores. Seus interesses são repetitivos e particulares demais; seu manejo de unidades do tempo, que pode mudar de dias a anos no mesmo parágrafo, exige uma atenção obsessiva do leitor; não há ganchos em suas histórias. Como Angell reclamara há décadas, seus personagens frequentemente são escritores, ou artistas, com as ansiedades e preocupações próprias de escritores ou artistas. Salter escreve muito sobre si.

Mas acusar um escritor de ser narcisista é como acusar um pugilista de ser violento. E os supostos defeitos de Salter, no contexto certo, transformam-se em atributos. Sua arte é a de despir, de eliminar o que não é essencial. Suas histórias não possuem tramas elaboradas, às vezes sequer possuem tramas. A ausência não tem a função de abrir espaço para as elucubrações internas dos personagens, como nos modernistas célebres (Proust, Joyce, Mann), mas sim permitir um acúmulo de episódios. A tensão nas narrativas é construída de gestos e pequenos diálogos, fragmentos que parecem vagamente relacionados.

A experiência de ler Salter é mais sensorial do que intelectual. Uma frase ou sequência de frases pode ser lida e apreciada isoladamente, pela estética ou pela concentração de conteúdo, mesmo quando não se trata de aforismo. Ele tem o domínio da frase curta que expressa unidades complexas (um estado de espírito, uma fisionomia, uma época), e às vezes lhe bastam apenas uma ou duas linhas para definir um personagem.

Do seu conto “American express”: “Ela faria qualquer coisa que a mãe não tivesse feito, e viveria exatamente como a mãe viveu, no mesmo tipo de apartamento, nas mesmas cadeiras macias.” Em “Am Strande von Tanger”, descrevendo o protagonista: “Ele está se preparando para a chegada do grande artista que um dia espera ser, um artista no sentido verdadeiramente moderno da palavra, ou seja, sem grandes feitos mas com a convicção pura de sua genialidade.” Em seu livro de memórias, Burning the Days, Salter descreve uma tia: “Ela era calma e lúcida. Tinha a paciência vasta dos insanos.” E sobre os colegas militares, ele diz: “Havia garotos da roça com nomes do tipo Homero e Ulisses, garotos que não eram frívolos e cuidavam bem de seus carros.”

A preocupação com a linguagem é minuciosa, trabalhada. Em uma entrevista para a revista literária The Paris Review publicada em 1993, a mesma na qual ele descreve o encontro com Angell, Salter define-se como um frotteur: alguém que segura a palavra e a esfrega na mão, vira e desvira, testa-a várias vezes antes de colocá-la na página. Faz certo sentido, pois Salter sempre foi um escritor lento. Em seis décadas, publicou apenas seis romances, duas coleções de contos e um livro de memórias – além de alguns poucos roteiros de filmes e um livro de culinária em coautoria com a mulher.

Em “Am Strande von Tanger”, talvez seu melhor conto, um casal de expatriados americanos está em Barcelona, e uma amiga alemã vai visitá-los. O tempo não está firme; ninguém sabe se vai dar praia. Os três finalmente resolvem sair de carro, e depois vagam pela orla. Tomam vinho, conversam. Jantam. Tomam mais vinho. Conversam mais um pouco. O dia termina.

Se a descrição soa banal, é porque é quase impossível descrever um conto de Salter. Na história em questão, só se entende o que aconteceu nas últimas linhas. Não é raro que os contos se resolvam assim, na prorrogação. Mas o efeito é menos de um cubo que se fecha, dando um sentido final à história – como na forma clássica do conto – do que o de um ajuste no globo ocular, no qual os detalhes anteriores ganham densidade e contornos mais nítidos. Ao terminar um conto de Salter, o impulso é voltar ao começo para lê-lo outra vez, lê-lo melhor.



Cada autor que se torna conhecido tem uma resposta psicanalítica própria para lidar com as rejeições do passado. E a New Yorker, pelo que representa nas letras americanas, às vezes é alvo de comportamentos reativos. V. S. Naipaul disse certa vez ao seu biógrafo: “A New Yorkernão sabe nada de escrita. Nada. Escrever um artigo lá é como enviar uma carta pelo correio da Venezuela: ninguém vai ler.” Saul Bellow apontava seu livro As Aventuras de Augie March como a virada de sua carreira, o momento no qual ele parou de tentar provar para os outros e para si mesmo que conseguia escrever “como um colaborador da New Yorker”. Há certa ironia no esperneio. Bellow, Naipaul, Salter: no fim, todos foram pauta da revista ou tiveram seus perfis publicados.

Salter – sem dúvida o menos consagrado desses três – se entristecia por não conseguir deixar de ser um escritor de intelectuais, mas sempre encarou a indiferença do grande público com estoicismo marcial. E sempre pareceu mais digno do que outros no anonimato. Bellow, seu amigo, foi em certo sentido o seu oposto: talvez o mais celebrado escritor americano do pós-guerra, era sensível a críticas menores, enxergava conspirações por todos os lados; parecia achar que nunca era suficientemente admirado. A amizade entre os dois acabou aos poucos. “Não gosto de ser coadjuvante”, Salter disse, quando Paumgarten lhe perguntou sobre o assunto.

A rejeição tem o poder, quando infligida ao longo de uma vida, de cevar misantropia e reclusão. O autor rejeitado encara o reconhecimento tardio como uma chance de se vingar do público, o inimigo malévolo e amorfo. Mas Salter nunca se tornou agressivo ou recluso. Sempre deixou claro que queria ser amado. Aceitava dar entrevistas longas; aceitava fazer noite de autógrafos de seus livros. Em uma das poucas vezes em que foi chamado à tevê, no programa de entrevistas do jornalista americano Charlie Rose, em 2013, dividiu a mesa de debate com editores da Paris Review. Salter não buscava a publicidade, mas admitia que desejava a fama. Quando jovem, conheceu a glória como piloto – e sabia que não era algo menor: queria reproduzi-la na página.

Em uma das passagens de seu livro de memórias, Salter descreve um outono em Nova York, durante o mês em que Truman Capote lançou A Sangue Frio (um livro que ele admirava bastante). Capote havia oferecido uma grande festa na cidade. A lista de convidados não foi divulgada, mas soube-se que eram políticos ilustres, estrelas de cinema, magnatas. Salter acabara de terminar seu terceiro romance, Um Esporte e um Passatempo, e ao passar na frente do hotel com seu carrinho conversível, comprado durante uma temporada em Roma, ele observou as luzes, os holofotes, as mulheres “de ombros de fora, seus vestidos levemente erguidos para que subissem as escadas”. No livro ele descreve a cidade de madrugada, perto do amanhecer, quando as pessoas já estão indo embora da festa: “Na escuridão, o zumbido baixinho dos pneus na rua vazia era como uma fria mão que afaga. A cidade era só o céu que mal reluzia. Meu livro ainda não tinha sido publicado, mas seria. Ele não tinha dimensões, não havia limites para o que ele poderia ser. Estava bem guardado no meu bolso, como uma herança.”

Um Esporte e um Passatempo não se tornou o sucesso que Salter esperava, e vendeu apenas algumas mil cópias. Mas silenciosamente, sem alarde, ganhou leitores ao longo do tempo. Por muitos anos, Salter publicou quase toda a sua ficção em apenas três revistas – Paris Review, Esquire e a extinta Grand Street –, mas os editores dessas revistas tinham um fervor religioso por sua escrita.



Em 2002, já aos 77 anos, Salter teve seu primeiro conto publicado na New Yorker. O título, “Última Noite”, dá nome à coleção final de contos que o autor publicou, embora seu derradeiro trabalho de ficção tenha sido um romance, Tudo que É, lançado em 2013.

“Última Noite”conta a história de um tradutor beletrista, sua mulher e uma jovem amiga do casal. Aos poucos fica claro que a esposa está com uma doença terminal e não quer enfrentar a decadência do seu corpo. Pede ao marido que lhe aplique uma injeção. Os três saem para jantar num restaurante; a vontade da esposa é que sua última noite seja prazerosa, sem grandes percalços.

O conto não é o melhor de Salter. O uso atípico de uma trama é forçado; a reviravolta do final, melodramática; e a prosa, embora concisa como de costume, tem uma limpidez excessiva, como se as frases do autor tivessem sido diluídas com solvente – uma prosa New Yorker, por assim dizer. O parágrafo final vale-se de uma leve ironia e de um cinismo que, em quase qualquer outro escritor em atividade hoje, seria autêntico – menos em Salter. Justo nele, que nunca teve problemas em ser sincero na página, nem medo de soar sentimental, qualidades que escritores mais jovens fadados ao recurso irônico certamente desejam. O texto parece uma capitulação.

Mas há outro simbolismo no conto, que pode ser lido mais generosamente a favor de Salter. Afinal, é um texto sobre a morte, e sobre aqueles que estão morrendo – como no texto recusado de Bellow. O protagonista é um literato, como no manuscrito que Angell rejeitou no começo dos anos 70. E, se não há obscenidades, certamente há referências sexuais, e pelo menos uma menção a seios, algo que – embora já não pelo pudor, mas sim pelo provável medo do clichê – a revista não costuma publicar.

O conto pode refletir tanto o triunfo de um artista que se manteve fiel a seu ideal, como também a capitulação frente à ânsia por ganhar leitores. Esse dilema, que nunca foi trivial para Salter, no final das contas não tem resolução. Talvez as duas leituras do episódio façam sentido; talvez nenhuma. Talvez, como Naipaul sugeriu um pouco absurdamente a seu biógrafo, poucos tenham lido o conto. Talvez Bellow tenha inventado uma anedota só para agradar o amigo magoado. É um fim ambíguo, como os fins das histórias de Salter tendem a ser. Talvez seja melhor terminar assim.


20 de julho de 2015

ALEJANDRO CHACOF

AINDA ESTRANGEIRO



                                                   CARTA DA ARGÉLIA


Aprimeira vez que ouvi falar do escritor Kamel Daoud foi há poucos anos, quando uma amiga argelina o recomendou: para entender como o país havia mudado, era preciso lê-lo. “Se a Argélia é capaz de produzir um Kamel Daoud”, disse, “então ainda tenho esperança.” Ao ler as colunas dele em Le Quotidien d’Oran, um jornal em língua francesa, entendi o que ela quis dizer.
Dono de um estilo original e mordaz, Daoud foi acusado de racismo e até de odiar a si próprio. Depois do 11 de Setembro, por exemplo, escreveu que os árabes vinham “se destruindo” fazia séculos e que, enquanto fossem mais famosos por sequestrar aviões do que por fabricá-los, continuariam a se destruir. O comentário me pareceu uma provocação meio falastrona de um sujeito inteligente, mas que se deixara levar por suas metáforas.
Quanto mais eu lia Daoud, tanto mais o sentia compelido não pelo ódio a si próprio, e sim por um amor frustrado. Ali estava um jornalista de 40 e poucos anos, um homem da minha idade, que acreditava que as pessoas, tanto na Argélia como em todo o mundo muçulmano, mereciam coisa melhor que um governo militar ou o islamismo – o cardápio de apenas duas opções que lhes era oferecido desde o fim do colonialismo –, e que dizia isso com brio e veemência. Nada, porém, me preparou para a leitura de seu primeiro romance, Meursault: Contre-Enquête.
O romance, arrebatador, reconta O Estrangeiro, de Camus – lançado em 1942 –, e o faz do ponto de vista do irmão do árabe assassinado por Meursault, o anti-herói que é o narrador do romance original. A obra de Daoud, publicada na Argélia em 2013, não apenas dá nova vida ao clássico que o precede, como também expressa uma crítica vigorosa à Argélia pós-colonial – um país que Camus, um francês pobre nascido na Argélia, não viveu para ver.
Nos textos de Daoud, seja nos jornalísticos, seja nos literários, salta aos olhos o destemor com que ele defende as liberdades individuais – um destemor que me pareceu chegar às raias da irresponsabilidade num país em que são intensas as paixões coletivas despertadas pelo nacionalismo e pela religião. Fiquei me perguntando se sua experiência podia fornecer alguma pista da situação em que se encontra a liberdade intelectual na Argélia, um híbrido de democracia eleitoral e Estado policial. No fim do ano passado, tive uma resposta. Daoud já não era apenas um escritor: era um nome em relação ao qual se devia tomar uma posição, tanto na Argélia como na França.

Sua provação começou em 13 de dezembro, durante uma turnê de divulgação de Meursaultna França, onde foi recebido com resenhas entusiasmadas, vendeu mais de 100 mil exemplares e por dois votos não ganhou o Goncourt, o mais prestigioso prêmio literário francês.[1] Tarde da noite, ele estava na tevê, no popular programa de entrevistas On N’est Pas Couché~(Não Estamos Dormindo), e sentiu – ele me contou depois – “como se o peso de toda a Argélia estivesse sobre meus ombros”.
Daoud insistiu com a jornalista franco-libanesa Léa Salamé, uma das integrantes da bancada do programa, que se considerava argelino, e não árabe – uma postura nada incomum na Argélia, mas que sofre oposição dos nacionalistas árabes. Acrescentou que falava “argeliano”, e não o árabe. Disse que preferia encontrar Deus a pé, por conta própria, em vez de integrar uma “excursão organizada” a uma mesquita, e que a ortodoxia religiosa havia se tornado um obstáculo ao progresso no mundo muçulmano.
Na tevê, ele não disse nada que já não tivesse escrito em suas colunas ou no romance. Mas o fato de ter dito aquilo na França, país que governou a Argélia de 1830 a 1962, chamou a atenção de argelinos que tendem a ignorar a imprensa em língua francesa.
Um deles foi o obscuro imã Abdelfattah Hamadache, do qual se dizia ter sido informante dos serviços de segurança. Três dias depois do programa, Hamadache escreveu em sua página no Facebook que Daoud – um “apóstata” e “criminoso sionizado” – deveria ser julgado e executado em público pelo insulto ao Islã. Não estava exatamente conclamando seu assassinato, uma vez que apelava ao Estado, e não a jihadistas freelancers.
Mas a Argélia é um país onde setenta jornalistas foram mortos por rebeldes islamistas durante a guerra civil dos anos 90, a chamada Década Negra. Muitos desses assassinatos foram precedidos de ameaças anônimas por cartas, panfletos ou pichações nas paredes de mesquitas. A “fatwa via Facebook” de Hamadache, como ficou conhecida, era novidade de uma ousadia única, porque assinada. Provocou um clamor, e não apenas entre liberais.
Ali Belhadj, líder da proibida Frente Islâmica de Salvação (FIS), criticou duramente o imã, afirmando que ele não tinha autoridade para declarar Daoud um apóstata e que somente Deus tinha o direito de decidir quem era ou não muçulmano – um indício, disseram alguns, que a fis enxergava em Hamadache um instrumento do Estado. De fato, embora o ministro dos Assuntos Religiosos, Mohamed Aïssa, homem de modos amenos e inclinações sufistas, tivesse saído em defesa do escritor, o restante do governo manteve uma neutralidade inexplicável, recusando-se a reagir quando Daoud deu queixa de Hamadache por incitamento à violência.
Tal reação governista revela mais do que esperteza política. A principal lição que o Estado argelino aprendeu em sua guerra de uma década contra insurgentes islamistas foi que não havia como derrotar o islamismo no campo de batalha: em vez de esmagá-lo, era preciso cooptá-lo. Na verdade, a Argélia está uma década à frente de outros países em que, depois das revoltas árabes, as elites seculares batalham pela formatação de novos governos contra movimentos islamistas poderosos. Hoje próspero, o país tem uma confiança crescente de que seu modelo de compartilhamento de poder pode e deve ser exportado para vizinhos como Líbia e Tunísia. O caso Daoud, no entanto, está pondo à prova esse modelo.

Voei para Oran, a segunda maior cidade da Argélia, em 15 de janeiro, justo quando a guerra em torno da blasfêmia havia chegado à França, com o ataque à redação do Charlie Hebdopor jihadistas franceses de ascendência argelina. Em Oran, os apoiadores de Daoud diziam: “Somos todos Kamel Daoud”; em Paris, milhões de pessoas declaravam “Je suis Charlie”. Eu me perguntava como os acontecimentos na França afetariam a situação de Daoud. Na escala em Orly, abri o Le Monde e topei com uma entrevista do escritor sobre o Charlie, dizendo que temia novos “11 de Setembro em escala reduzida”.
Ser um escritor argelino é ser um estudioso da violência política. A Argélia conseguiu sua independência da França em 1962, depois de uma das mais longas e sangrentas lutas pela descolonização a que o mundo já assistiu. Seu sistema político, que as pessoas chamam simplesmente de pouvoir (poder), segue sob forte influência dos mujahedin, os “guerreiros sagrados” da Frente de Libertação Nacional (FLN) que lutaram contra a metrópole.
O atual presidente argelino, Abdelaziz Bouteflika, ingressou no Exército de Libertação Nacional em 1956. Hoje está em seu quarto mandato. Aos 78 anos, por causa de um derrame, ele despacha de uma cadeira de rodas equipada com microfone, já que sua voz está muito fraca. Morando, segundo se diz, numa villa nas proximidades de Argel, só consegue trabalhar poucas horas por dia. Quando, em novembro, ele foi hospitalizado na França, Daoud escreveu: “Até mesmo a questão do que vem depois se tornou secundária. Se já não há vida antes da morte, por que se preocupar com a vida após a morte?”
Bouteflika não é o único figurão do pouvoir cuja data de validade está prestes a expirar. Os chefes do Exército e do serviço de inteligência também estão a meio caminho dos 80. A Argélia está diante de uma potencial crise de sucessão tripla, e num momento em que os preços do petróleo estão caindo. Uma queda brusca poderia empurrar o país em direção a uma “ruptura violenta”, afirma Daoud.
Ninguém sabe se o pouvoir tem um plano de transição para a era pós-Bouteflika, suas maquinações são bastante obscuras. E o são deliberadamente. Corre que, quando o ex-presidente francês Nicolas Sarkozy perguntou a um ministro argelino por que seu governo era tão pouco transparente, ele teria respondido: “Porque essa é a nossa força.” O segredo é um dos muitos códigos gerados pela guerra pela independência. Necessário numa revolta anticolonial que lutava contra um dos exércitos mais poderosos do mundo, mesmo depois da independência o sigilo continuou sendo o modus operandi do pouvoir argelino.
A Argélia é governada como se a guerra jamais tivesse terminado. Cada nova crise – revoltas por comida, guerra civil, protestos berberes, a Primavera Árabe – contribuiu para justificar um estado de beligerância permanente, assim como todo momento crítico serviu para postergar a questão sobre “o que vai acontecer depois da libertação”. Nas palavras de Daoud: “A meta é comida e moradia para todos? Por que não incluir a felicidade?” É a pergunta de um jovem, mas a Argélia não é governada por jovens desde os primórdios da década de 60.
Hoje, os décideurs – os homens que efetivamente tomam as decisões, e não os políticos que brigam numa Assembleia Nacional pluralista mas impotente – baseiam sua legitimidade em dois fatores: emanciparam o país do domínio francês e derrotaram uma onda de terrorismo islâmico na década de 90. Na opinião de Daoud, nenhum desses feitos é suficiente. A Argélia só será livre de fato quando “se libertar de seus libertadores”. Não basta derrubar o
governo, para Daoud a grande ilusão da Primavera Árabe. A sociedade é que precisa mudar, caso a Argélia pretenda se ver livre do autoritarismo e da devoção islâmica.
As palavras de Kamel Daoud têm atraído leitores eminentes: membros do pouvoir lhe telefonam com frequência, o primeiro-ministro francês Manuel Valls recentemente ligou para dizer o quanto havia admirado Meursault. “Os homens do poder são fascinados por pessoas como eu”, diz ele. “Não disponho de um Estado nem de um Exército. Sou apenas um sujeito que tem um apartamento e um carro. Mas sou livre, e eles querem saber: Como assim?”

Cheguei à Argélia em 16 de janeiro, uma sexta-feira em que, após as preces, milhares de pessoas – Hamadache inclusive – marchavam rumo à Place de la Grande Poste, no Centro de Argel, desafiando a proibição imposta a manifestações na capital. O “Protesto em defesa do profeta Maomé” havia sido convocado em repúdio à caricatura de Maomé que a capa do Charlie Hebdo estampara após o massacre de Paris. Aïssa, o ministro dos Assuntos Religiosos, se opusera à mobilização, mas pregadores radicais não tiveram dificuldade em inflamar o ódio.
Je suis Muhammad” era um dos slogans mais comuns – uma frase curiosa para condenar a blasfêmia, já que alguns muçulmanos consideram um insulto grave alguém se anunciar como o Profeta. (O slogan havia sido proposto e divulgado pelo tabloide argelino Echorouk, publicado em língua árabe, uma plataforma para diatribes contra Daoud; depois, modificaram-no para “Je suis avec Muhammad” – Estou com Maomé.) Jovens agitavam a bandeira preta do Estado Islâmico e declaravam mártires os assassinos mortos na França. Como muitas manifestações na Argélia, essa também acabou em tumulto, com vitrines quebradas em nome do Profeta. Por sua atuação nos acontecimentos, Hamadache foi preso no bairro de Belcourt, berço de Camus, mas liberado logo em seguida.
Os protestos em Oran, onde o sentimento anti-islamista é intenso, foram bem mais discretos do que em Argel, mas veementes o bastante para travar o trânsito. Robert Parks, um acadêmico norte-americano muito próximo de Daoud, foi me pegar no aeroporto para me levar até o hotel.
Parks, que dirige um centro de pesquisa em Oran desde 2006, já me dissera que a Argélia vinha aos poucos, mas de forma segura, recuperando a própria confiança. Os argelinos estariam satisfeitos por terem evitado o tumulto das revoltas árabes e, graças a isso, haviam se permitido fazer uma avaliação mais sóbria, ponderada e favorável de sua própria situação. Quando um grupo de manifestantes marchou em nossa direção, porém, ele enveredou por uma rua secundária, temendo que nos confundissem com franceses.
A ousadia com que os islamistas tomaram as ruas era um lembrete do acordo que Bouteflika fizera com eles pouco depois de chegar ao poder, em 1999. Seu “projeto de reconciliação” ofereceu anistia àqueles que haviam lutado na guerra civil de 1992–2002, sob a condição de que depusessem as armas. O pouvoir nunca negociou com o braço político da FIS: questões com os rebeldes armados deveriam ser resolvidas a portas fechadas. Membros das forças de segurança responsáveis por mortes e desaparecimentos extrajudiciais jamais foram julgados. Combatentes islamistas se saíram ainda melhor: deixaram o maqui, a resistência nas montanhas, e retornaram à mesquita. Diz-se que muitos receberam empregos e casa própria.
O paradoxo da guerra civil recente é que, embora os islamistas não tenham conseguido derrubar o governo, o projeto de reconciliação de Bouteflika lhes permitiu ocupar mais espaço. Na prática, agora são uma ala do pouvoir, que não apenas os tolera como também admite que participem da Assembleia Nacional. E, para os generais (os décideurs mais influentes), essa presença possui o atrativo adicional de servir como advertência a outros argelinos – e aos aliados da Argélia em Washington e Paris – sobre o que pode acontecer se o Exército e os serviços de segurança afrouxarem as rédeas.

Não resta dúvida de que a Argélia fez grandes progressos desde a Década Negra. Bouteflika sofreu o derrame em 2013, e hoje mal aparece em público. Mesmo assim permanece relativamente popular, ainda que por falta de alternativa, e credita-se a ele a reconstrução do país depois da guerra civil. Fui trabalhar como correspondente do New York Review of Books na Argélia em 2003, um ano após o término oficial da guerra: era um país nervoso e traumatizado, o povo continuava com medo de carros-bomba e de postos de controle falsos, montados pelos rebeldes.
Embora radicais jihadistas sigam atuando no leste e no sul, hoje é um território em grande medida seguro, não apenas nas cidades, mas também nas estradas. A nova rodovia leste–oeste, construída com mão de obra chinesa, reduziu pela metade as dez horas outrora dispendidas entre Argel e Oran. A economia permanece fortemente dependente do gás natural e do petróleo (mais de 90% das exportações), mas as reservas hoje totalizam quase 200 bilhões em moeda estrangeira.
A Argélia conquistou a admiração das potências ocidentais, sobretudo dos Estados Unidos, por sua atuação no contraterrorismo regional, pela expertise e eficiência dos serviços de inteligência, além de seus hábeis esforços diplomáticos na Tunísia, na Líbia e no Mali. Nas palavras do ministro das Relações Exteriores, Ramtane Lamamra, o país é hoje “um exportador de segurança e estabilidade”.
pouvoir tem sido astuto na manutenção dessa estabilidade. Protestos antigovernamentais ocorridos no início de 2011, depois de Mohamed Bouazizi se autoimolar na Tunísia, foram rapidamente contidos pelos meios habituais: milhares de soldados espalhados pelas ruas da capital, cortes nos preços do açúcar, da farinha e da gasolina, e oferta de dinheiro vivo aos jovens desejosos (ou que assim se declararam) de iniciar um negócio próprio. “A Primavera Árabe é um mosquito para o qual fechamos a porta”, gabou-se num discurso o primeiro-ministro Abdelmalek Sellal, acrescentando uma referência a uma marca de inseticida: “Se algum dia ele tentar entrar, vamos combatê-lo com Fly-Tox.”

Opouvoir não é secular nem islamista: ele segue uma política de indecisão deliberada e tanto tolera radicais como Hamadache como faz vista grossa àquilo que Parks me descreveu como um “experimento frágil” de abertura cultural. O melhor lugar para se observar esse experimento é Oran, berço do raï, um pop argelino que mistura música árabe e espanhola a disco music e hip-hop.
Na minha primeira noite, algumas horas depois das manifestações anti-Charlie, saí com Parks e a poeta Amina Mekahli, outra grande amiga de Daoud. Fã de Philip Roth, ela citou de memória passagens de A Marca Humana – o romance de Roth sobre Coleman Silk, um professor universitário negro que se passa por branco –, que falaria diretamente à angústia da vida dupla argelina.
As casas noturnas em Oran são, por definição, clandestinas, mas com lábia conseguimos entrar. Um garçom nos trouxe uma garrafa de Johnnie Walker Red Label e uma travessa de frutas frescas. A maioria dos clientes, argelina, tinha entre 20 e 30 anos. Para onde quer que se olhasse, viam-se calças de oncinha, minissaias, bolsas Louis Vuitton e batom.
Amina Mekahli me apresentou a um amigo, a quem chamou Gigi, o “famoso homossexual”. Ela explicou que aquele homem doce e andrógino, de 40 e poucos anos, postava-se às portas dos banheiros e fazia as vezes de correio amoroso: se um rapaz gostasse de uma garota, ele dizia a Gigi; quando a garota saísse do banheiro, ela seria informada do interesse do tal rapaz. “O legal”, disse minha amiga, “é que Gigi vem de um bairro operário e é aceito, embora ninguém mencione a palavra gay.” Não achei tão legal quanto ela, mas aí me lembrei do comentário de Camus, segundo o qual Oran é uma cidade em que “aprendemos as virtudes – temporárias, é claro – de um certo tédio”.
Oran decerto não é mais a mesma de Camus. Sob a dominação francesa, era uma cidade. Depois da independência, os europeus debandaram em massa e suas casas foram ocupadas por migrantes das aldeias vizinhas. Outros encontraram acomodação, péssima mas gratuita, nos conjuntos habitacionais que o Estado construiu ao estilo daqueles dos países da Cortina de Ferro. A linha do horizonte ficou mais vertical em anos recentes: os hotéis Sheraton e Méridien parecem importados de Dubai.
Ainda assim, a cidade preservou seu caráter lânguido, mediterrâneo. Nos pequenos cafés, as pessoas se distraem com xícaras de café preto ou chá de hortelã; à beira-mar, os restaurantes oferecem peixe grelhado, paella e uma paisagem de tirar o fôlego; barracas vendem calentita, uma baguete recheada com pasta de grão-de-bico, trazida pelos espanhóis. Na rua, as mulheres em geral vestem o hijab. Tarde da noite, porém, em casas como a que visitamos, jovens dançam, bebem e, como escreveu Camus em 1939, “se encontram, se olham e se medem, felizes por estarem vivos e causarem boa impressão”.
À meia-noite, ao chegarmos, o público parecia meio morno, mas às duas da manhã, quando Cheba Dalila – uma cantora de raï com uma voz profunda como a de Nina Simone – subiu ao palco, a pista de dança ferveu. Dalila ia de mesa em mesa, coletando o dinheiro de quem paga para ter o nome mencionado nas canções. O som do baixo era tão alto que eu podia senti-lo na barriga.
Uma mulher num jeans apertado vestia uma camiseta que dizia “Detroit, 1983”; homens dançavam com mulheres, os pares claramente interessados apenas um no outro. Tirei uma foto, mas o filho de Mekahli me advertiu: “É a máfia quem toca isto aqui.” A “máfia” ganha dinheiro com bebida clandestina e prostitutas. Ao que parecia, algumas das moças eram profissionais. “Para mim”, disse a poeta, “clubes como este são uma forma de nos reapropriarmos da identidade argelina. Aqui, a França não existe. Estas pessoas estão completamente descolonizadas.”

Aprimeira vez que visitei Daoud em seu apartamento, num condomínio fechado nos arredores de Oran, ele estava de pijama e, entre outras coisas, assistia tevê com o filho de 12 anos. Com os olhos na tela do computador, me contava as novidades da sua vida, digitava e-mails, espiava o Facebook e atendia ao telefone. Achei que não conseguiríamos conversar, e ele então propôs que eu me hospedasse em sua casa.
Dois dias depois, ao sair do hotel, desencadeei um pequeno incidente diplomático. O recepcionista foi falar com Daoud, que me esperava em seu carro. Se eu fosse embora, disse o empregado, nervoso, não haveria como saber do paradeiro do étranger – o estrangeiro, eu. O funcionário não podia se dar ao luxo de deixar escapar outro Hervé Gourdel – o turista francês Gourdel havia sido sequestrado e decapitado por islamistas radicais em setembro, nas montanhas de Cabília.
Meu anfitrião brincou que talvez fosse o caso de ele notificar a polícia por hospedar um americano. Isso sem dúvida acabaria por lhe render outros dissabores, mais uma prova de que se vendera às forças do imperialismo. Ele sabia como pensavam seus críticos, em parte porque já havia pensado como eles. É um ex-islamista munido do arrebatamento de um desertor. Passados dois anos de seu casamento, contou, sua ex-mulher foi se tornando cada vez mais religiosa e começou a usar o hijab. Divorciaram-se em 2008, depois do nascimento da filha.
O grande tema dos escritos de Daoud é a condição argelina. Ser argelino é ser “esquizofrênico”, dividir-se entre a fé religiosa e o individualismo liberal. Os estabelecimentos que vendem bebida alcoólica em Oran são legais, mas atuam como se fossem clandestinos; se as mulheres entrarem num café para homens, elas serão vistas como pouco mais que prostitutas, ainda que seja crescente a aceitação do sexo fora do casamento. Os argelinos estão ficando modernos, mas meio que escondido, como se mal o admitissem para si mesmos. Embora a hipocrisia possa configurar um passo rumo a uma sociedade civil mais tolerante, Daoud se irrita com isso. “Os islamistas pelo menos fizeram uma escolha”, diz.
A campanha de Kamel Daoud contra o islamismo angariou-lhe fãs ardorosos, sobretudo entre argelinos liberais francófonos, que a despeito de compartilharem das bandeiras que ele levanta são muito tímidos para expressá-las em público. Contudo, ele também é amplamente criticado, não só por islamistas, mas por nacionalistas e esquerdistas que o veem como um elemento hostil à sociedade.
Às vezes, Daoud dá a impressão de estar sendo muito provocador, como se quisesse comprar briga. Durante a recente guerra em Gaza, publicou uma coluna intitulada “Por que não me ‘solidarizo’ com a Palestina”. Tampouco se solidarizava com Israel: incomodava-o a lógica de que, por ser muçulmano, ele tinha de se solidarizar com a Palestina. Opunha-se às bombas lançadas por Israel não por motivos religiosos ou étnicos, mas por razões anticoloniais e humanitárias. O subtexto da coluna era, claro, a Argélia. O clamor por solidariedade à Palestina o desagradava não pela causa em si, mas pela pressão por unidade – mais uma vez, sob a bandeira da identidade árabe e islâmica.

Apressão coerciva pela unidade sempre foi característica do nacionalismo argelino. Durante a luta pela independência, os líderes da FLN, muitos deles berberes, reprimiram uma política de identidade berbere em nome da unidade nacional contra a França. Desde então, segundo Daoud, os argelinos têm sido ensinados a se ver como pertencentes unicamente ao mundo árabe e islâmico e a negar o que aprenderam com a história e a experiência: que, na verdade, a maior parte deles é de ascendência berbere, e não árabe; que uma considerável minoria ainda fala ou berbere (apenas recentemente reconhecida como língua nacional) ou francês (que se tornou “língua estrangeira” após a independência); e que mesmo o árabe que boa parte dos argelinos fala em casa é um arremedo recheado de empréstimos de outras línguas. (Daí a insistência de Daoud em chamá-lo de “argeliano”.)
Longe de representar uma alternativa à ideologia da unidade árabe-islâmica, os islamistas argelinos pregam uma versão mais religiosa desse pensamento. Disso resultaria uma Argélia “sitiada entre o céu e a terra”. Segundo Daoud, “a terra pertence aos libertadores”, ao passo que “o céu foi colonizado por pessoas religiosas que se apropriaram dele em nome de Alá”. Os argelinos “foram persuadidos de que são impotentes. Não conseguem levantar um muro sem a ajuda dos chineses”.
Essa sensação de impotência encontra expressão física na infraestrutura decrépita do país. “As ruas de Oran estão condenadas à poeira, às pedras e ao calor”, Camus escreveu num ensaio de 1954. “Quando chove, é um dilúvio e um mar de lama.” Salvo nas principais artérias, a situação hoje não é muito diferente. Numa noite de chuva, íamos de carro a um jantar num bairro burguês retirado de Oran. As ruas eram um lamaçal e quase atolamos. “É o fim da picada!”, explodiu o escritor.
Obcecado por limpeza, Daoud considera a tolerância do país à sujeira um sintoma político, ou mesmo espiritual. Sob a dominação francesa, os argelinos foram privados à força de sua terra. Tudo o que possuíam era o espaço interior, doméstico, e assim o espaço público era algo que não lhes dizia respeito: propriedade francesa, não constituía um problema deles. E, depois da independência, passou a ser uma questão do Estado. A religião apenas reforçou a noção de que as mazelas cotidianas estavam nas mãos de uma autoridade superior. “Nossos problemas ecológicos também são metafísicos”, disse. “Quem está esperando pelo fim do mundo não vai se preocupar com o presente.”
O islamismo floresceria sobre esse mal-estar mais profundo. A mesma sensação de ineficácia e tédio impele alguns à fuga, com o risco de morrer no mar. O irmão caçula de Daoud é um dos milhares de jovens argelinos – os chamados harraga – que fugiram para a Europa de barco. Um navio britânico o resgatou, e agora ele mora, sem documentos, no Reino Unido.

Hoje Daoud não é mais um muçulmano praticante e se diz filosoficamente próximo do budismo. Perguntei-lhe se ainda admirava alguma coisa no islamismo. “Acho notável a primazia da justiça, mais que da fé”, respondeu. “Também gosto da ausência de intermediários entre o indivíduo e Deus. O único papel do imã é conduzir as orações. Na relação direta entre Deus e o crente, o Islã é bastante liberal.”
Daoud poderia estar descrevendo o Islã que conheceu quando criança, em Mesra, uma aldeia no noroeste da Argélia. Os Daoud, conta, “tinham certeza de sua fé e, por isso, não precisavam defendê-la, ao contrário dos islamistas de hoje, incrivelmente frágeis”. O mesmo se podia dizer do vínculo de seus familiares com a terra: eram patriotas que viveram a guerra pela independência, mas que não sentiam necessidade de negar “as complexidades da vida sob o colonialismo”.
Na escola, ele aprendeu “uma história única”, uma narrativa inequívoca sobre mujahedininfalíveis lutando contra colonos franceses. Em casa, no entanto, os avós lhe contavam de franceses empobrecidos que conheceram em Mesra; do padre católico que sustentou a família deles em tempos de escassez; dos soldados franceses que preferiram desertar a torturar e matar. Mais tarde, ficaria sabendo que o primeiro grande amor de seu pai não havia sido sua mãe, e sim uma francesa com quem ele se envolvera durante a guerra.
O mais velho de seis filhos, Kamel Daoud nasceu em 1970, quando muitos viam a Argélia como um sucesso pós-colonial. O presidente, coronel Houari Boumédiène, enigmático e taciturno, era um dominador autoritário que transformou o país numa força regional, líder do movimento dos não alinhados. Sob o governo de Boumédiène, que tomou o poder num golpe militar três anos após a independência, o Exército se transformou na instituição dominante.
Mohamed, o pai de Daoud, era gendarme. Apesar da pobreza, conseguiu, como “membro de uma geração ascendente”, se casar com uma mulher de família próspera, proprietária de terras nas cercanias de Mesra. Ele, que estudou em escolas francesas, era o único membro da família que sabia ler. Ensinou o alfabeto ao filho e compartilhou com ele sua estante de livros em francês. Na biblioteca em Mostaganem, cidade portuária onde frequentou a escola, Kamel Daoud leu Júlio Verne, a ficção científica Duna e obras de mitologia grega. Mas o livro que mais o encantou foi O Renascimento das Ciências Religiosas, de Abu Hamid al-Ghazali, teólogo persa do século XI, que após uma crise religiosa tentou purificar a alma pela via da experiência mística.
Daoud disse que, ao descobrir Al-Ghazali, aos 13 anos, “o Corão já não me bastava: era apenas a face visível de um texto oculto”. Com o intuito de decifrar aquele texto oculto e mais sagrado, Daoud se tornou cada vez mais ascético. Quando leu que o silêncio abria o coração para Deus, passou a andar com uma pedra na boca, para que ela o impedisse de falar. Queria ser escritor, mas também queria se tornar um imã. “Era uma contradição, mas eu não a sentia como tal”, ele disse. “Quando você ora, constrói um sentido, da mesma forma que quando escreve. Deus é seu único leitor, mas, em essência, é a mesma coisa.”

De início, o Corão venceu. Para um adolescente ambicioso do começo dos anos 80, a religião era uma carreira mais promissora que a literatura. Chadli Bendjedid – o presidente que subiu ao poder em 1979, dois meses após a morte de Boumédiène – recuou do projeto de reforma agrária socialista de seu predecessor e começou a abrir a economia. As lojas se encheram de produtos de consumo ocidentais, mas a “desboumedienização” deixou um vácuo ideológico. Bendjedid preencheu-o com o Islã e a identidade árabe. Não só reprimiu a “Primavera Berbere” de 1980 – um movimento não violento que pretendia o reconhecimento da cultura e da língua berbere –, como intensificou a arabização da educação e promoveu a edificação de inúmeras mesquitas.
Encorajado por essas mudanças, o movimento islamista, antes sob o controle rígido de Boumédiène, pôs-se a treinar uma geração de rapazes. Daoud, um jovem místico islâmico que vestia jelaba e turbante, foi recrutado por seu professor de geografia, membro de uma célula islamista. O professor lhe apresentou os escritos dos fundadores do moderno islamismo sunita e o convenceu de que a salvação individual que ele buscava só seria alcançada por intermédio da salvação coletiva, sob a forma de um Estado islâmico.
Daoud cultivou a barba, distribuiu panfletos e se tornou o imã de seu colégio. Num acampamento islamista de férias, “vivíamos como se fôssemos companheiros do Profeta”. Era em acampamentos e agremiações esportivas que se doutrinavam jovens militantes do nascente movimento islâmico argelino, e Daoud parecia a caminho de se tornar um líder. Ao completar 18 anos, porém, largou o movimento. “Tinha o direito de viver e me rebelar”, contou. “E estava cansado. Num determinado momento, já não sentia coisa nenhuma. Não sei se é isso que significa perder a fé. Mas para uma pessoa religiosa o perigo não é a tentação: é o cansaço.”
Em 5 de outubro de 1988, três meses após Daoud romper com o islamismo, a Argélia experimentou a primeira de uma série de violentas manifestações antigovernistas. Armado de uma corrente e com a esperança de “quebrar coisas”, ele foi para Mostaganem. Quando chegou, os militares haviam começado a atirar nas pessoas. Um velho tentou usá-lo como escudo humano. Foi salvo por uma mulher que o tomou pelo braço e, fingindo ser sua mãe, o conduziu a um lugar seguro.
“Aquela geração de homens capazes de se escorar atrás de um jovem me tirou do sério”, disse. “Vi naquilo o indício de algo muito significativo.” Várias centenas de argelinos morreram no Outubro Negro. No ano seguinte, uma nova Constituição foi adotada, legalizando outros partidos além da Frente de Libertação Nacional e pondo fim ao Estado de partido único. A Frente Islâmica de Salvação emergiu como a mais poderosa oposição do país.
Em janeiro de 1992, para impedir que a FIS conquistasse o poder, o Exército cancelou o segundo turno das eleições nacionais. Privados da vitória nas urnas, os islamistas pegaram em armas e uma guerra civil brutal eclodiu. Daoud, estudante de francês na Universidade de Oran, se opôs ao cancelamento das eleições. “Mas eu estava pouco me lixando. Era um individualista. Odiava todo mundo. Observei os acontecimentos de longe e pensei: os caras vão se devorar uns aos outros.”
Ele havia optado por uma forma bem mais pessoal de revolta, movida a literatura, música e cerveja – seu primeiro gole de vinho (bebida que o Corão proíbe expressamente) só ocorreu depois dos 30 anos. Leu Baudelaire, Borges e o poeta sírio Adonis, e começou a escrever poesia e ficção.

Quando terminou a faculdade, Daoud foi trabalhar como repórter policial no tabloide mensalDetective. (“O que fez de The Wire uma série fantástica”, ele disse, “é que foi uma colaboração entre um escritor e um policial, os vira-latas do mundo.”) Viajando para cidades pequenas e remotas, escrevendo sobre julgamentos de assassinatos e crimes sexuais, Daoud se deparou com “a Argélia real”. Em 1996 o Detective acabou e ele foi contratado pelo Le Quotidien d’Oran.
Enquanto outros jornalistas reclamavam do perigo ao enfrentar rebeldes islamistas, Daoud foi entrevistar os insurgentes. Relatou alguns dos piores massacres da guerra civil, incluindo a matança de 1998 na aldeia de Had Chekala, onde mais de 800 pessoas foram assassinadas. A atuação como repórter ensinou-o a suspeitar de “posições acirradas e análises grandiosas”, e essa sensibilidade inspirou a coluna que começou a assinar.
Daoud não representava ideologia nenhuma e não falava em nome de ninguém. Para seus novos admiradores, era algo digno de comemoração: enfim, um espírito livre genuinamente argelino. Para os adversários, ele se tornou o rosto de uma “geração do eu”: egoísta, vazio, não argelino.
Meursault: Contre-Enquête surgiu de uma de suas colunas. A premissa do romance é engenhosa:O Estrangeiro, de Camus – em que um árabe não nomeado é assassinado numa praia de Argel –, seria uma história real. E bem que poderia ter sido, do ponto de vista de muitos argelinos. Há tempos, críticos nacionalistas falam como se o assassinato ali descrito tivesse acontecido de fato, e como se Camus, cuja oposição à independência do país muitos escritores conterrâneos tiveram dificuldade em perdoar, o tivesse cometido. A inspirada ideia de Daoud foi dar o passo seguinte: atribuiu a autoria do romance de Camus (narrado em primeira pessoa) ao protagonista Meursault, o assassino fictício de O Estrangeiro. Assim como “o árabe” nunca é nomeado em O Estrangeiro, o nome de Camus jamais é mencionado em Meursault: Contre-Enquête.
O livro é um monólogo confessional ao estilo de A Queda, do mesmo Camus. No romance de Daoud, o argelino Harun se dirige, num bar em Oran, a um francês não identificado. Musa, irmão do narrador, fora morto em 1942 por um colono francês de nome Meursault, que ficaria famoso por descrever o assassinato em um romance intitulado O Outro. Já velho, Harun está disposto a dar ao irmão uma identidade e uma história, e a corrigir a versão dos acontecimentos registrada por Meursault. E é precisamente isso que ele faz na primeira metade do livro, acertando velhas diferenças que nacionalistas argelinos tinham com O Estrangeiro – e críticos pós-coloniais também. (Edward Said, por exemplo, zombou da “canhestra sensibilidade colonial” de Camus.)

Asegunda metade do romance, porém, mostra que essa crítica pouco tem a ver com a Argélia de hoje e nega ao leitor a satisfação fácil de uma justiça anticolonial. É a Argélia, e não Camus, que está em julgamento. Harun, percebemos, é também um estrangeiro num país dominado pelo fervor religioso. A mesquita da cidade lhe parece tão imponente que “impede que se veja Deus”; o sujeito recitando o Corão soa como se estivesse representando todos os papéis, de “torturador a vítima”. Homens perambulam de chinelos e pijamas amarfanhados, “como se a sexta-feira os isentasse das exigências da civilidade”. Sexta-feira “não é o dia em que Deus descansou: é o dia em que decidiu fugir e nunca mais voltar”.
Harun revela ser ele também um assassino. Sua vítima, escolhida ao acaso poucos dias depois da independência, é o francês Joseph Larquais – um roumi, ou estrangeiro. A própria mãe de Harun, desejosa de vingar o assassinato de seu filho Musa, é cúmplice e facilitadora do crime. As novas autoridades punem Harun não pelo crime em si, mas pelo momento em que foi cometido. Como ocorreu depois do 5 de julho de 1962, o dia da independência, o assassinato não foi um ato de libertação, e sim um estorvo para o regime.
À procura do irmão, Harun na verdade encontra seu próprio duplo: ele, Harun, é o irmão argelino de Meursault – como ele, um criminoso em circunstâncias igualmente absurdas, um estrangeiro numa terra dividida entre “Alá e o tédio”. Quando um imã o exorta a aceitar Deus antes que seja tarde demais, Harun rejeita o apelo com violência, quase com as mesmas palavras que o Meursault de Camus emprega em sua conversa com o padre que, antes da execução, lhe pede para aceitar Cristo. “Restava-me tão pouco tempo que eu não queria desperdiçá-lo com Deus”, diz. “Nenhuma de suas certezas valia um fio de cabelo da mulher que eu amava.” Essa é apenas uma de muitas frases surrupiadas de Camus. Meursault, menos que uma crítica a O Estrangeiro, é sua continuação pós-colonial.
O Estrangeiro é um romance filosófico, mas só conseguimos lê-lo como um romance colonial”, disse Daoud, quando lhe perguntei o que o atraíra na ficção de Camus. “A questão mais profunda em Camus é religiosa: o que fazer com Deus, se Deus não existe? A cena mais poderosa em O Estrangeiro é o confronto entre o padre e o condenado. Meursault é indiferente às mulheres, ao juiz, mas se enfurece diante do padre. E, em meu romance, temos alguém que se revolta contra Deus. Para mim, Harun é um herói numa sociedade conservadora.”

Meursault: Contre-Enquête foi publicado pela Éditions Barzakh em 2013, vendeu muito e recebeu resenhas bastante elogiosas na Argélia. Foi somente no ano seguinte, quando foi lançado pela prestigiosa editora francesa Actes Sud, e, mais ainda, ao ser nomeado para o Goncourt em setembro de 2014, que o romance provocou controvérsia no país de origem. Meio século depois da independência, a vida intelectual argelina segue existindo sob a sombra da antiga ocupação. Para muitos intelectuais, era inconcebível que Daoud pudesse ser bem-sucedido na França sem a ajuda da onipresente main étrangère, a “mão estrangeira” invisível, mas invariavelmente sinistra.
Em certo sentido, a “mão estrangeira” é o próprio idioma francês, que muitos escritores argelinos preferem ao árabe, mas que para os jovens é hoje uma língua estrangeira que eles só aprendem se for falada em casa ou se decidem estudá-la. Numa sexta-feira de manhã, tive um encontro com a romancista Maïssa Bey, uma das mais importantes escritoras argelinas em língua francesa. Fui a sua casa, em Sidi Bel Abbès, uma cidade colonial estranha e decadente. Era o dia das orações, as ruas estavam desertas. Eucaliptos lançavam delicadas sombras nas paredes das casas, pintadas com vivas tonalidades de azul, rosa e amarelo.
Maïssa Bey nasceu em 1950. Seu pai, um professor primário nacionalista, foi torturado e morto pelo Exército francês quando a filha tinha 6 anos. Como Daoud, ela escreve sobre os traumas de identidade do país e o pluralismo reprimido pela retórica da unidade nacional. Também como Daoud, prestou sua homenagem a Camus como um compatriota. “Muitos argelinos não conseguem conceber que ao escrever em francês você não esteja escrevendo para a França”, ela disse. “É como se, para eles, a guerra nunca tivesse terminado.”
A persistência desse complexo de colonizado explicaria a aguçada noção de tabu entre escritores na Argélia de hoje. “Há assuntos que você simplesmente não pode abordar, o Islã acima de tudo. É sagrado e, mesmo que você não critique a religião em si, mas apenas o modo como ela é praticada – como fez Daoud –, suas palavras serão distorcidas e manipuladas pelo pouvoir. E, caso você questione o discurso oficial sobre Israel ou a relação da França com a Argélia, estará procurando encrenca.”
O ataque mais surpreendente contra Daoud não veio de um jihadista, mas sim de um companheiro na derrubada de tabus: o romancista Rachid Boudjedra, que, sob ameaça semelhante dos islamistas, fugiu do país quatro décadas atrás. Boudjedra, publicado pela mesma editora de Daoud, ficou famoso em 1969 com La Répudiation (O Repúdio), romance escrito em francês sobre um jovem cujo pai larga a mulher e se casa com uma jovem bem mais nova. O filho transa com a madrasta para vingar a humilhação sofrida pela mãe; seu irmão, gay, se mata depois de ter um caso com um judeu. Encharcado de fluidos e excrementos corporais – sangue, fezes, sêmen –, e permeado de vívidas descrições de sexo e masturbação, La Répudiation foi um exemplo extremo de rebelião literária.
Logo que o livro saiu, Boudjedra partiu para um exílio voluntário que durou seis anos – primeiro em Paris, mais tarde no Marrocos. O escritor ainda mantém um apartamento em Paris e, depois de um breve período escrevendo em árabe, retornou ao francês. Se alguém poderia compreender a situação de Daoud, esse alguém seria Boudjedra. No entanto, ele ridicularizou Meursault, julgando-o um romance “medíocre”, e o fez no Ennahar, o canal árabe por satélite que, naquele mesmo dia, serviu de plataforma a Hamadache. Mais tarde, referiu-se a Daoud como “um daqueles escritores que estão atrás de uma chancela literária e vão lamber as botas dos franceses”.
Boudjedra é famoso por ser um homem difícil. Mas seu desdém não é um caso isolado e reflete um preconceito de classe mais difundido. Tendo lutado na guerra pela independência quando jovem, ele provém de uma importante família do campo, ao passo que Daoud se fez sozinho numa aldeia empoeirada. Tenho um amigo do ramo editorial argelino que compara Daoud a Rastignac, o alpinista social de A Comédia Humana de Balzac. Para os intelectuais de esquerda de Argel, basta essa imagem para fazer dele um aproveitador provinciano.

No dia seguinte a meu encontro com Maïssa Bey, peguei o trem das oito da manhã de Oran para Argel, a fim de visitar velhos amigos, entre eles o historiador Daho Djerbal, que conheci em 2003. Argel parecia bastante mudada. Caminhando pela Didouche Mourad, a principal rua de comércio, encontrei uma cidade renascida, pelo menos do ponto de vista comercial. Passei por uma loja da Swatch, por joalherias, agências de viagens e butiques da moda. Os cafés com mesinhas na calçada estavam apinhados.
Na Place de la Grande Poste, centenas de pessoas, na maioria homens, assistiam ao campeonato africano num telão ao ar livre. Folheei alguns volumes numa livraria adorável, instalada no endereço de outra que pertencera a Joaquim Grau, um pied-noir morto em 1994 por islamistas radicais. A feira livre no bairro operário de Bab el Oued, outrora um reduto islamista, se mostrava muito animada, com suas bancas repletas de aparelhos eletrônicos chineses, roupas, CDS, DVDS, além de frutas, legumes e verduras frescas.
Na redação da revista de história que edita, Djerbal tentou me convencer de que essa normalidade não passava de ilusão de ótica, produto efêmero de um florescimento do consumo alimentado pelos altos preços do petróleo. Não iria durar, e o acerto de contas com a realidade não seria agradável. O historiador esboçou um panorama da devastação promovida pela abertura econômica argelina – indústrias estatais de suma importância sendo apropriadas por amigos do regime, que depois as venderam; vastas fortunas particulares sendo acumuladas; a emergência de uma classe média parasita, que não gera nenhuma riqueza.
Eram essas pessoas que eu vira nas lojas da rua Didouche Mourad, que ele descreveu como uma aldeia de Potemkin que não sobreviveria à queda dos preços do petróleo ou ao fracasso do Estado na diversificação da economia. Talvez o desastre fosse iminente. Lembrei então que esse mesmo amigo me fizera um relato semelhante, doze anos atrás, sobre um desastre anunciado.
Mudei de assunto e comecei a falar de Kamel Daoud. Notei que Djerbal foi ficando cada vez mais impaciente, o que não era de seu feitio. Era como se eu lhe perguntasse sobre alguém de um escalão inferior ao seu. Daoud, disse ele, era parte do problema que ele acabara de descrever, um filho mimado do próprio Estado que atacava. No entanto, não havia como negar que era muito bom escritor, argumentei. Djerbal sorriu. “Não bom o bastante para o Goncourt. Além disso, a França jamais dará o prêmio a um argelino.” Ele parecia estar saboreando a derrota de Daoud, que, prosseguiu, “representa um estrato sem legitimidade histórica”.
Na Argélia, a expressão “legitimidade histórica” tem um significado muito específico. Quando a guerra pela independência irrompeu, em 1954, a fln proclamou sua própria “legitimidade histórica” como representante única da nação. Ter legitimidade significava representar uma força social coletiva e, portanto, ter o direito de ser ouvido. Boa parte dos intelectuais argelinos atribuía grande valor à legitimidade e à reivindicação implícita de falar em nome de uma causa maior: em nome da nação, do povo, da classe trabalhadora, dos berberes. O fato de Daoud falar apenas por si próprio talvez seja o que seus críticos julgam mais inquietante nele.

Num princípio de noite em Argel, provoquei uma briga de quatro horas graças à simples menção do nome “Daoud”. Estava num jantar oferecido por Samir Toumi, um escritor que mora num apartamento espaçoso e elegante, defronte do Teatro Nacional. A facção pró-Daoud era liderada por Sofiane Hadjadj, que dirige a Éditions Barzakh juntamente com sua mulher, Selma Hellal. (Ambos editaram juntos Meursault.) A facção anti-Daoud tinha à frente Ghania Mouffok, uma jornalista radical que admira a ficção do escritor, mas não gosta de sua coluna.
A jornalista, que conheci em Argel em 2003, tinha acabado de cobrir os protestos contra a extração de gás de xisto no sul do país, uma região historicamente marginalizada que é também a fonte das riquezas da Argélia (gás e petróleo). O movimento fizera renascer sua fé no espírito argelino de resistência. “Quando você pensa em tudo que passamos – mais de um século de colonização, décadas de ditadura, uma guerra civil brutal –, é um espanto que a gente ainda consiga erguer a cabeça”, disse. “É isso que Kamel Daoud não vê.”
Com um copo de vinho numa das mãos e um cigarro na outra, ela expôs os argumentos da promotoria. Daoud “escreve como se imperialismo e capitalismo não existissem”. Teria “ódio de si mesmo”. Não era surpresa que “o narrador de Kamel se sentisse mais próximo do homem que matou o árabe. Basta ler as colunas dele”. O romance era excelente, mas havia algo de “suspeito” no sucesso do livro na França. “Acho que ele oferece um conforto para leitores brancos”, concluiu.
“Adivinhe qual foi o primeiro país a querer traduzir o romance de Kamel?”, Hadjadj interrompeu. “Foi o Vietnã.”
“Pouco me importa se o romance vai ser traduzido no Vietnã”, retorquiu a jornalista. “O que me preocupa é o que os leitores franceses veem nele.”
Ela deu uma tragada no cigarro e fez uma pausa. “Escute, eu adoro Kamel. Ele foi brilhante no On N’est Pas Couché. Bonito, bem-falante, sexy. Alguns dias depois, eu o vi na tevê do Echorouk, e o sujeito que o entrevistava falava com ele como se ele fosse um inseto. Eu disse a Kamel: ‘Não vá a esses programas e não se comporte como se você fosse culpado. Reaja. A Argélia é um país que está fracassando, onde não se admite o sucesso. Se você tiver sucesso, as pessoas vão torcer para que fracasse. É um país difícil e pode ser brutal.’”

Como Ghania Mouffok podia criticar a Argélia de forma tão severa, se condenava Daoud por fazer mais ou menos o mesmo? Ela disse que reservava suas críticas aos poderosos, ao passo que Daoud atacava o povo. “Isso é infantil”, observou Daoud, quando lhe relatei as críticas. “Eu não critico o povo: critico pessoas. Está vendo aquele sujeito avançando o sinal vermelho?” – estávamos no trânsito. “Ele é responsável pelo que está fazendo. Se alguém joga lixo na rua, também é responsável por isso. Pessoas como Ghania pensam a mesma coisa, mas não escrevem o que pensam. E me acusam de odiar a Argélia, o que é absurdo. É claro que o capitalismo existe, e, se alguém tem um império, o imperialismo existe também. Só que o imperialismo não explica tudo. Nem nos isenta de resolver nossos problemas.”
Na visão da jornalista, a crença de Daoud na responsabilidade individual apenas “reproduz o desprezo do pouvoir pelo povo”. Na Argélia, acusar alguém de concordar com o pouvoir, ou mesmo de ser solidário a ele, é a cartada última e definitiva.
Se Daoud compartilha da opinião sombria que o pouvoir tem do povo, o pouvoir não parece ter grande simpatia por ele. Quando conheci Hamid Grine, o ministro da Comunicação, ele fez pouco das preocupações de Daoud com a fatwa. “Kamel não está mais ameaçado do que qualquer outro como ele”, disse o ministro. Hamadache, que no passado fora dançarino profissional, era um excêntrico sem seguidores, e o melhor era ignorá-lo. “O caso atraiu atenção porque vende jornais, mas a Argélia está de fato falando do preço das batatas, e não de Daoud.”
Na verdade, o ministro havia telefonado ao escritor na véspera. Não gostara de uma coluna recém-publicada, “O outro Je suis Mohamed”, que elogiava Mohamed Aïssa, o ministro dos Assuntos Religiosos, por sua campanha contra o incitamento islamista à violência em canais de tevê por satélite de língua árabe e de propriedade de argelinos. (“Hamid teria preferido uma coluna intitulada ‘Je suis Hamid’”, comentou Daoud.) Grine alegou ter sido o primeiro a defender Daoud. Suas declarações, porém, não foram lá muito enfáticas. Ele falara em particular com executivos dos canais por satélite que davam destaque a Hamadache, mas, ao contrário de Aïssa, evitou criticá-los publicamente, porque “na Argélia temos uma tradição de discrição”. (Um mês depois de nossa conversa, Grine fez declarações nos moldes das críticas de Aïssa.)
Hamid Grine tem 61 anos e também é um romancista que, como Daoud, escreve em francês. Disse-lhe que havia apreciado seu romance Camus dans le Narguilé, sobre um homem que ouve o boato de que Camus seria seu pai biológico. Grine queixou-se de que seu livro não havia contado com o “gigantesco esquema promocional” que catapultara Daoud ao sucesso na França e, além disso, sugeriu que sua visão de Camus talvez não fosse bem-vinda em Paris. Seu herói percebe que Camus não é seu pai e que os argelinos precisam abandonar a fantasia de reclamar Camus para si, como propunham escritores como Kamel Daoud e Maïssa Bey.
“Camus não foi um escritor argelino, e sim francês”, disse Grine. “Foi um colonizador dotado de boa vontade, um pied-noir. Fez gestos simpáticos aos argelinos, mas se opôs à independência.”
Grine não havia lido Meursault. “Tenho certeza de que é excelente. Meu filho leu e gostou. Eu só leio o que você está vendo aqui”, completou, apontando para a pilha de documentos oficiais sobre a mesa.
20 de julho de 2015
ADAM SHATZ


[1]Em 5 de maio deste ano, o júri do Goncourt conferiu à obra o prêmio de romance de estreia.