sexta-feira, 17 de julho de 2015

A CRISE E OS DEUSES GREGOS


Queira Deus que a crise grega se estenda, após o vertiginoso acordo obtido por Tsipras em Bruxelas. O drama de Atenas teve esse “efeito colateral” muito agradável: limpou e reavivou todas as figuras da mitologia e da história gregas. 

Sobre os mármores crepusculares dos templos gregos, a disputa entre o Syriza e a zona do euro fez soprar os ventos e tufões que tiraram a poeira da Grécia de Péricles, de Aquiles ou de Vênus e lhes deram cores tão frescas como as da vila romana dos Mistérios, em Pompeia. 
Editorialistas, políticos, desenhistas, fotógrafos aproveitaram ao máximo, buscando inspiração em Homero e Ovídio, libertaram os bandos de deuses, as esfinges, Hércules, a nau Argo, as bacantes e os soldados da Maratona, muito espantados com o fato de se reencontrarem em pleno século 21. 

Algum dia um doutorando de Berkeley ou de Oxford elaborará uma tese para decidir qual foi a figura da mitologia mais citada pela imprensa para relatar as batalhas de julho de 2015. Hércules ou Ulisses; Aquiles de pés ligeiros e o tendão ferido, ou Édipo de pé torto; Tirésias às vezes homem, às vezes mulher; a Medusa ou a Górgona, que não são muito cordiais? Um outro estudante talvez se debruçará sobre enciclopédias ou tratados que os jornalistas do ano 2015 vasculharam para reativar um pouco, à luz do euro, a aridez das suas lembranças de faculdade. Uma figura emerge, a de Édipo. 

Alexis Tsipras, completamente nu, o pé sobre um rochedo, como no belo quadro de Ingres, responde às perguntas que lhe são feitas pela esfinge. E como ela é uma figura feminina, os caricaturistas lhe conferiram com prazer traços da chanceler Angela Merkel. 

Tsipras soube responder à esfinge? Na mitologia sim, porque à pergunta “quem tem quatro pernas pela manhã, duas no meio do dia e três à noite?”, ele responde que é o homem. Uma adivinhação banal, mas que confere, na mitologia, duas recompensas para Édipo: o trono de Tebas e, liberado da morte do pai Laio, poderá enfim se casar com sua mãe Jocasta. Recompensas que esvanecerão rapidamente, mas o pobre Édipo no fim da vida seguirá uma nova carreira, sob a forma do “complexo de Édipo”, concebido por Freud. 

Duas outras figuras da mitologia também foram úteis: Sísifo, que, como Tsipras, subiu suspirando muito o penhasco para chegar ao cume da montanha antes de vê-la desabar, ou Hércules e seus 12 trabalhos. 

Uma mulher conseguiu se sair bem de uma situação delicada. Ariadne, a bela Ariadne, que ajuda Teseu contra o Minotauro com seu novelo de linha. Infelizmente, o desafio de Tsipras era muito arriscado: mesmo Ariadne e seu novelo foram incapazes de abrir um caminho no Dédalo, as instituições europeias, no fundo da qual todo o mundo se equivoca, mesmo os guardiães do labirinto, ou seja, os pequenos “minotauros de bolso”, Juncker, Hollande, Merkel ou Renzi. 

À medida que escrevo, outras conexões entre Grécia, a mitologia, e a “ópera-bufa” de Bruxelas, me vêm ao espírito. Como não nos surpreendermos com as semelhanças entre Tsipras e Ulisses, esse homem corajoso, obstinado, mas tão incapaz da verdade que na Grécia tornou-se símbolo do mentiroso? E a mulher de Ulisses, a infeliz, astuta e resignada Penélope que, aguardando o retorno do marido, passa o tempo desfazendo a cada manhã o manto que tece durante a noite. Não é ela a imagem dos negociadores intermináveis de Bruxelas? 

E também, na tragédia de Bruxelas, falta o homem que compilou e transmitiu essas fabulosas mitologias que são a Ilíada e a Odisseia, o primeiro poeta do mundo, o poeta absoluto, o nosso caro Homero que existiu e além do mais, para cúmulo da desgraça, era cego. 

17 de julho de 2015
Gilles Lapouge
 TRADUÇÃO DE TEREZINHA MARTINO

A AMAZÔNIA SEM EXOTISMO

A viagem de Mário de Andrade à Amazônia (1927) foi fundamental para que ele terminasse de escrever Macunaíma, um dos grandes livros da nossa literatura, e talvez o mais melancólico. O romance rapsódia desse paulistano apaixonado pelo Brasil diz muito sobre o sofrimento, o abandono e, de algum modo, sobre o destino trágico dos povos do Norte.

Num belo poema meditativo (Acalanto do Seringueiro), Mário de Andrade evoca “Um homem pálido, magro, de cabelo escorrendo nos olhos.../ Esse homem é brasileiro que nem eu”.

Nesses versos ecoa a frase de Euclides da Cunha, escrita mais de duas décadas antes: “O seringueiro é um homem que trabalha para escravizar-se”.

É difícil desconstruir clichês; mas, aos poucos, os estereótipos da Amazônia perdem força. A grandiosidade e a exuberância dessa região ciclópica (“um infinito que deve ser dosado”, ainda conforme Euclides) já não escondem a miséria da maioria de seus habitantes. A violência contra os povos indígenas data de séculos, mas a destruição sistemática da biodiversidade é relativamente recente. 
A rodovia Transamazônica, as grandes queimadas, o uso de motosserras e de desfolhantes químicos datam do começo dos anos 70 e coincidem – sinal tenebroso daquele tempo – com o aumento da repressão e da censura. 
Desde então, a grilagem de terras indígenas e o assassinato de missionários, líderes de seringueiros e trabalhadores rurais aumentaram exponencialmente. E o mesmo se pode dizer sobre o tráfico de drogas nas cidades amazônicas, cujas periferias são tão violentas quanto as das metrópoles do Sudeste.

No melhor estilo das grandes reportagens investigativas e bem fundamentadas, o Estado publicou um caderno especial sobre a Região Norte: Favela Amazônia (5/7/2015).

Escrita por Leonencio Nossa (com fotos de Dida Sampaio), a reportagem faz uma radiografia de uma região que corresponde, grosso modo, à metade do território nacional.

O repórter e o fotógrafo percorreram uma vasta área, entrevistando líderes indígenas, presidentes de associação de moradores, músicos, militares, políticos, mafiosos...

Na construção da usina de Belo Monte (Altamira) já foram gastos R$ 28 bilhões, mas as cidades do Xingu continuam sem infraestrutura. Mais grave e muito mais fútil foi o gasto quase bilionário da construção da Arena Amazônia, em Manaus. Quais foram os benefícios sociais desse estádio monumental à população manauara?

O Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) em Manaus e Belém é baixíssimo. As duas maiores cidades da Amazônia disputam a liderança do pior IDH numa lista de 16 regiões metropolitanas do País. A assistência médica é precária em áreas indígenas e urbanas, e até mesmo o cartão do Bolsa Família é retido por mafiosos.

Durante o ciclo da borracha, índios e migrantes nordestinos trabalhavam para escravizar-se. Desde a implantação da Zona Franca (Decreto-lei de dezembro de 1967), a população de Manaus praticamente decuplicou. Mas a industrialização, além de ter esvaziado o interior do Amazonas, não diminuiu a desigualdade social e econômica em Manaus. A floresta ao redor da cidade foi invadida e tornou-se favela. É nesse quadro de miséria que vive uma parte significativa da população de Manaus.

No interior do Amazonas não é muito diferente. No documentário Aqui Deste Lugar (ainda inédito), o diretor Sérgio Machado filmou e entrevistou dezenas de famílias pobres, de Norte a Sul do Brasil. O cineasta pergunta aos mais jovens qual é o sonho deles. O grande sonho dos brasileiros do Sudeste, Sul, Centro-Oeste e Nordeste é estudar, ter uma profissão e um emprego. No entanto, os jovens entrevistados no Amazonas estão desiludidos. Sentem-se desamparados, isolados, sem perspectivas de futuro.

O que pode ser a vida de um jovem que não alimenta sonhos?


17 de julho de 2015
Milton Hatoum