"O Araketu/O Araketu/Quando toca/Deixa
todo mundo/Pulando que nem pipoca.” Lá vou eu, dançando axé atrás de um carro de
som. Equilibrada em cima de uma sandália de salto alto e com um vestido curto de
linho, requebro em meio à multidão.
Ao sair de casa, meu destino não era bem esse, mas a música me envolve e
minha mente já alterada se rende àquele clima. Quando o êxtase passa, retomo meu
verdadeiro rumo: sigo para um retiro espiritual numa igreja evangélica. Percorro
várias quadras e sou bem recebida. Pelo menos é o que registra minha percepção
de psicótica em pleno surto.
Os jovens ficariam alojados no salão da igreja durante todo o feriado de
Carnaval. Chego sem mala, com uma indumentária nada condizente com a situação,
mas desconsidero tais evidências. Acabam me arranjando trajes mais decentes. Na
minha vertigem, permaneço alheia naquele ambiente, que acabaria por se mostrar
um tanto quanto hostil.
Lembro de acompanhar os cânticos com mais entusiasmo do que o protocolo
recomenda. Talvez por isso, e outras coisas mais, o pastor tenha me indicado a
porta de saída, como se escorraçasse um cão sarnento prestes a contaminar suas
ovelhas. Posta na rua em plena madrugada e sem um tostão, vago noite afora.
Então surge um homem, um filho da besta. Consciente da minha demência, ele me
conduz a seu barraco e me tranca num quarto minúsculo repleto de imagens baratas
de santos. Posso ouvi-lo conversar no cubículo vizinho com uma mulher mais
velha, cuja presença não o impede de tentar abusar da minha fraqueza. Ele me
leva para debaixo do mosquiteiro que cobre sua cama e tira minha calcinha. Tenta
me penetrar, mas contraio com tanta força a região entre as pernas que suas
estocadas são infrutíferas. Irritado, o homem me guia por entre os barracos e,
pela segunda vez numa mesma noite, alguém me aponta o caminho frio e deserto da
madrugada.
Entregue novamente à sorte, procuro por abrigo. Vejo um posto de gasolina
aberto e fico por lá até o dia clarear. Lembro de dar voltas e voltas em torno
de uma mesa, correndo atrás do frentista. O rapaz sorri, mas não permite que eu
o toque. Estou com frio, ele me empresta sua camisa de flanela. Depois de tantos
demônios na longa madrugada, tenho a sorte de encontrar um anjo bom.
Amanhece. Num lapso de consciência, lembro o número do telefone de casa. Ligo
de um orelhão próximo, a voz da minha mãe é um bálsamo. Vou de táxi ao encontro
dos meus pais e seguimos para o hospital psiquiátrico.
Na sala de espera, subo num dos bancos duros e gelados e me ponho a cantar,
julgando-me um anjo encurralado. Mesmo em surto, sei que a liberdade termina
ali. Mais um período de internação pela frente. Sem qualquer direito à defesa,
sou trancafiada numa cela onde só há uma cama de ferro e um colchão.
Desesperada, grito até perder a voz e, exausta, defeco no chão. De joelhos,
procuro por comprimidos nas frestas entre o chão e a parede, e acabo por
encontrar vestígios da passagem de outra alienada. Mas não consigo engolir os
comprimidos... E se ainda houver uma chance para mim?
O pastor que me expulsou liga para saber o que havia ocorrido, mas não ousa
fazer uma visita para me abençoar. Desde aquele retiro, nunca mais voltei a
frequentar uma igreja.
Quando soube que era
bipolar, experimentei mais fascínio do que apreensão ou qualquer outro
sentimento. Nem mesmo uma bombástica crise em Florianópolis, com direito a
humilhação e cadeia, conseguiu atenuar minha admiração por um cérebro tão
poderoso. O rito praticamente anual de refazer a vida após as internações só
alimentava o encantamento por me sentir especial. Ignorando as perdas ao longo
do caminho, eu me aferrava à sensação de eterna juventude.
Na verdade, essas impressões geravam sentimentos contraditórios: se me
julgava única, também experimentava o preconceito e a exclusão. Era uma
predestinada, mas uma predestinada solitária, cujo único desejo era construir um
mundo melhor.
Oscilando entre a alta e a baixa autoestima, em constante acompanhamento
psiquiátrico, vivo minha bipolaridade de forma espontânea e sonhadora, numa
opção que me poupa do medo e da vergonha, mas também afunila as perspectivas de
futuro. A cada situação constrangedora gerada pelas crises, é preciso retomar do
zero. Foi assim por dez internações.
Nunca precisei de
drogas para me entregar ao deslumbramento ilimitado. Minha química explosiva
possibilitava vivências que variavam do éden aos mais negros abismos. Até hoje
não consigo discernir o momento em que tudo isso veio à luz, mas acredito já ter
nascido com essa sina.
Lembro, ainda pequena, do prazer ao sentir-me sufocada pela fumaça da grama
cortada que meu pai costumava queimar. Perder-me em meio àquela nuvem
cinza-clara me proporcionava uma sensação de mistério e risco, e eu me deixava
conduzir para onde minha mente me transportava.
Em momentos de hipomania, acordava para dançar na sala enquanto todos
dormiam. Rodopiava ao som de uma música imaginária, o corpo vibrava com força e
energia, numa aceleração desconcertante. Sempre quis ser bailarina. E dançava na
madrugada, sentindo o universo ressoar em meus músculos. Quando percebia que
estava sozinha, num cômodo vazio, sem música, sem plateia, acordava do delírio e
voltava para a cama, com o sentimento de missão cumprida. De manhã eu me
levantava sem que ninguém tivesse se dado conta do meu desvario.
Desde as primeiras crises na adolescência até agora, o que perfaz um período
de mais de trinta anos, ingeri cerca de 40 mil comprimidos. Quando eu tinha 14
anos, meus pais se separaram -– à tristeza que experimentei, seguiram-se crises
sérias de depressão, intercaladas por momentos de hipomania. Consulto um
psiquiatra que me receita remédios controlados. Não lembro dos resultados da
medicação, mas não esqueço a abordagem sensual do doutor durante a consulta.
Dizem que um livro pode mudar uma existência, e comigo não foi diferente. Aos
19 anos, leio Do Jardim do Éden à Era de Aquarius, título sugestivo e
pretensioso, que me leva a imaginar ter encontrado uma solução, quando na
verdade virá a se mostrar uma cilada. O estrago foi tão descomunal e fora de
controle que resultou na minha primeira internação, aos 21 anos.
Verão de 1988. Uma amiga me convida para acampar em Florianópolis. Meus pais
consentem e embarco de mala e cuia. Não posso acreditar, é muita beleza: a
vegetação me arrebata, o mar
me inunda com sua água transparente. Estamos num
ônibus lotado subindo e descendo morros e mais morros. Todo mundo apertado mas
feliz, afinal de contas estávamos trafegando pelo paraíso.
Desembarcamos em Garopaba. Até aí, tudo bem, minha mente ainda funcionava –
em termos. Porém, ao chegar à praia Retiro dos Padres, em Bombinhas, o processo
de mania começa a se desencadear. Minha amiga não percebeu a alteração, mas o
frenesi evolui e não durmo mais, não como, como se estivesse drogada. Havia
várias praias onde eu poderia alucinar, e foi exatamente o que fiz. Minha
preferida era a Quatro Ilhas. Mar aberto, ondas fortes e o Submarino
Amarelo.
Era um bar apinhado de jovens bronzeados e bem vestidos, música o tempo todo.
Paisagem maravilhosa, gente bonita, clima agradável – este é o tripé que, somado
às ideias do livro, me faz acreditar estar na era de Aquarius. Quase todas as
noites vamos lá, e não demora para que eu me sinta em casa. À medida que a crise
avança, passo a frequentar o local sozinha e minha amiga já não tem noção do meu
paradeiro.
Fico interessada em dois rapazes, acho que os proprietários do lugar, um
loiro e o outro moreno. Um olhar daqui, outro dali, e o moreno me leva a um
trecho da praia um pouco afastado. Nós nos deitamos na areia, ele me acaricia,
percebe que não visto nada sob a roupa – por farra, minha amiga e eu havíamos
combinado não usar calcinha – e tenta ir até o fim. O medo de engravidar me
trava. A mesma cautela faria com que eu escapasse ilesa de situações semelhantes
no futuro e evitasse ter um filho de um estranho que nunca mais veria. O rapaz
goza ao meu lado e vai embora, me deixando na areia gelada.
Começa a roleta-russa. Já não tenho o menor senso de autoproteção; pelo
contrário, quanto maior a escuridão da noite, mais intensa e mágica a sensação
de risco.
A última vez que saio acompanhada se transforma numa emboscada. A caminho do
Submarino, uma garota do camping e eu encontramos um sujeito tão bêbado e
trôpego que havia estacionado o carro num barranco. Decidimos acompanhá-lo à
cabana em que se hospedava. Ele tenta abrir a porta, não consegue. Pego a chave
e entramos. O lugar era espaçoso e estava vazio, mas havia sinais de outros
hóspedes. Saímos em direção a Bombinhas para caminhar um pouco, no intuito de
aliviar o porre do sujeito. Tranco a porta e guardo a chave.
Chegando à praia, arrastamos para a água um pedalinho e, empoleirados,
seguimos os três pedalando sem destino. De repente, o cara tenta me agarrar. Em
vez de reagir, prefiro me atirar na água. O jeans encharcado exige um esforço
redobrado de minhas pernas e braços, tenho a sensação de me arrastar. Nesse meio
tempo, o bêbado me persegue com o pedalinho, parece querer me atropelar.
Finalmente meus pés tocam o chão. Sem olhar para trás, abandono a praia, o homem
e a amiga. Naquele momento, ainda não havia percebido que a chave tinha ficado
comigo.
A partir daí, meu delírio se agrava. Acredito ser uma mulher linda em luta
constante contra o Mal. O processo se inicia de forma sutil. Estou na praia, em
frente ao Submarino, um cão caminha em minha direção. Minha mente envia sinais
de que a crise está vindo e não é coisa pouca. Tenho certeza de que aquele
animal é a encarnação do demônio. Começo a entabular uma conversa silenciosa. Em
muitas outras ocasiões ocorreria o mesmo: as pessoas não percebem minha
insanidade, meus diálogos são internos.
A praia estava deserta, era muito cedo. O cão se aproxima, passa por mim e se
afasta. Eu o metralho com olhares e pensamentos, acuso-o de ser uma entidade
maligna. Faço-o saber que tenho conhecimento da sua essência, ignorada pelos
demais. Tudo isso em poucos minutos. O animal segue, indiferente, mas para mim a
batalha está vencida. Mal sabia que a guerra se avizinhava, bem mais ousada e
exaustiva.
As chuveiradas do
camping próximo ao Submarino me revigoram, a água e o sabonete me reabastecem de
energia, a compensar as noites em claro e as longas caminhadas. Em crises
futuras também seria assim: estar limpa, cheirosa e com os cabelos molhados era
o que me dava forças para continuar nas lutas contra o Mal – que inevitavelmente
me conduziam a um abismo.
Perto dos chuveiros ficam as barracas e ali acabo conhecendo um rapaz que se
envolve comigo. Entre sucos e banhos de mar, um dia eu o convido para ir à
cabana da qual eu tinha a chave. Ele topa, certo de que aquele era meu
alojamento.
Vamos para a cabana. No andar superior encontro uma mala com dólares. Passo
umas notas para ele, para que compre algumas roupas. Escolho uma sandália, uma
pulseira, calça e blusa brancas. Por coincidência, o tamanho das peças é o
meu.
Tudo parece funcionar como num passe de mágica.
Saímos, pegamos uma carona e seguimos para uma festa. Me lembro de um homem,
um mendigo, que pedia uns trocados para quem entrava. Era alto, magro, o cabelo
castanho-escuro, a pele clara. Eu o encaro. Ele percebe a insistência do meu
olhar. Minha mente viaja alto e mais uma vez se inicia o processo de luta contra
o Mal.
Sim, aquele homem era a encarnação do Maligno. A cada instante meu olhar é
mais mortífero, mas desta vez a vítima reage. Quando menos espero, ele me dá uma
bofetada. Meu acompanhante não percebe nada, aceito a agressão de forma
silenciosa. O mendigo me olha como se dissesse: “Toma, vadia!” Entro na festa,
mas não me sinto vencida.
Não lembro do que aconteceu naquele lugar, devo ter dançado alucinadamente.
Só recordo a volta: era de dia, eu e o rapaz, mortos de cansaço, sacolejávamos
dentro de um ônibus. Cochilamos e perdemos o ponto, tivemos de descer em
Mariscal, uma praia depois de Quatro Ilhas. O cara se zanga por eu ter dormido,
me culpa por precisarmos enfrentar um trajeto longo. Fica ainda mais furioso
quando me oferece cocaína e eu recuso. Ele havia comprado um tanto e pretendia
revender. Apesar de toda a raiva, não se afasta de mim e voltamos a Quatro
Ilhas.
O cansaço da noite anterior é agravado pela fome e pelo sol. Andamos sem
conversar, rumo à cabana. Tudo parece tranquilo, como um dia qualquer – muito
calor, horário de almoço, pouca gente na rua. Enfio a chave na fechadura e a
realidade dá uma guinada.
De repente surge polícia de tudo que é lado. Na cabana, os legítimos
ocupantes. A dona das roupas que eu vestia me chama de vagabunda, um homem que
parecia ser seu marido me pega pelo pescoço e me levanta no ar. Tenho a sensação
de que pretende me estrangular, mas ele me solta.
A mulher arrebenta a pulseira e exige que eu tire suas roupas. Obedeço e
coloco a parte de baixo do meu biquíni preto e uma blusa decotada também preta
que eu tinha deixado na cabana. Era assim que costumava me vestir, os pés
descalços. Os policiais me retiram dali. Somos algemados e conduzidos a uma
viatura. O rapaz cospe em mim.
O pior é que a polícia havia encontrado o restante da cocaína que ficara na
cabana. A essa altura, minha ilusão de ser onipotente já estava um pouco
abalada, mas não inteiramente. Quando chego à delegacia, sou trancafiada numa
cela pequena. Faminta, exijo um x-salada. Trazem um x-bacon e, na minha
alucinação, chego a imaginar que o bacon era o Mal. Devoro o sanduíche, mas
cuspo o bacon no chão.
Pergunta se mais perguntas. De onde vocês vieram? Onde conseguiram o pó?
Minha cabeça gira, penso que vai se separar do corpo no momento em que o
policial começa a roçar uma faca no meu pescoço. Choro desesperada. O homem
insiste, inquirindo e me ameaçando. Declaro que a única coisa de que tinha
conhecimento era que o rapaz havia comprado a droga, para uso próprio e talvez
revenda. Era tudo o que eu sabia.
Sou fotografada de frente e de perfil, e então liberada. Não sei o que é
feito do rapaz. Minha amiga vai me buscar na delegacia. Desconheço como soube de
toda a história e até mesmo da minha prisão. Voltamos para o camping como se
tudo continuasse normal. Ela parece não registrar o que acontece comigo.
Volto a frequentar o
Submarino Amarelo, praticamente não saio de lá, até que uma noite me ponho a
esbravejar com uma cliente, na qual vislumbro uma entidade maligna. Dessa vez o
dono se irrita e me bota para fora. Estatelada no chão, imóvel, não digo nada,
não reajo. As pessoas ao redor me olham. Peço que chamem a polícia.
Quando os policiais chegam, me encontram ainda por terra. Eles me reconhecem
e me levam para o camping. Minha amiga está lá, mais surpresa do que nunca. Os
policiais me deitam na barraca e dizem que só preciso descansar, como se isso
fosse possível para uma bipolar em plena mania. Por instantes fico quieta. A
amiga se afasta e aproveito para sair.
Ando sem cessar nas sombras da noite, nos becos mais escuros, sem noção de
risco. Ando até o amanhecer. Minha amiga me encontra num morro, os pés cheios de
cortes e espinhos. Ela me diz para voltar e em resposta eu quebro seus óculos,
com o intuito de destruir o Mal.
Meu pai vem me buscar. Seis horas de viagem. Volto para Canoas, minha cidade.
Mas fico pouco tempo em casa, minha alteração de humor é gritante. Sou levada ao
hospital psiquiátrico e pela primeira vez tenho a experiência de ser amarrada a
uma cama. É o terror, o começo de um calvário que parece interminável.
Por mais que tentasse, não conseguia entender como tinha ido parar lá.
Mulheres ensandecidas, aos gritos. A histeria é tanta que não dá margem para
consolo ou solidariedade: cada uma digere o cárcere com um nó de medo e solidão
na garganta. Por vezes tenho a impressão de que estou diante de um prenúncio do
inferno. Lembro do enfermeiro que baixa minhas calças, aplica uma injeção
dolorosa e me empurra até o quarto das loucas. Que direito ele tem de me medicar
sem ao menos me dizer o que está adicionando à minha corrente sanguínea?
A droga faz efeito e acabo me deitando na beirada de uma cama sem colchão.
Antes urino no piso, não tem banheiro no quarto. Fico deitada, encolhida como
uma concha, ouvindo os gritos das mulheres. O sono, ou a anestesia, vem aos
poucos, e não sei por quanto tempo eu durmo. Alguém chega e me retira daquele
lugar. Foi com certeza um alívio, mas ainda não era a liberdade. O período de
hospitalizações e privações mal começara e, com ele, iniciava-se meu aprendizado
forçado.
É difícil explicar a sensação de sair de um hospício após longos meses de
internação. Posso dizer que várias vezes me senti como se tivesse nascido de
novo. Depois de dias e mais dias enclausurada e ingerindo toneladas de
medicamentos, voltar ao mundo exterior provoca uma sensação ambígua, por vezes,
assustadora. No momento da alta, os médicos diminuem a dose de remédios, e então
o organismo se ressente. Tremores, suor frio, insônia. A rotina do hospital
também fica impregnada no corpo, que passa a estranhar a própria casa. Mas com o
tempo esses sentimentos se dissipam e sinto um prazer imenso por poder circular
pelas ruas, pelos restaurantes, pela universidade.
No pescoço, ostento um
colar negro composto de vários anéis, confeccionado por índios do Mato Grosso.
Empréstimo do meu amigo Zé. Na mente, acalento o desejo de curtir a vida junto
aos amigos da oceanologia na extensa praia do Cassino. Pego a estrada com o
pressentimento de que algo grandioso está por acontecer.
Sou guiada por uma bússola mística. Meio que por instinto, deparo com uma
festa de aniversário onde encontro alguns conhecidos. Não ter sido convidada era
um detalhe irrelevante: me entroso no ambiente, pareço da casa. Na cozinha,
encontro um grupo cheirando pó. Aspiro duas carreiras de uma vez só, como se
estivesse acostumada. Mais natural ainda foi presentear a aniversariante com o
colar predileto do meu amigo.
Com o ânimo redobrado pela cocaína, saio sozinha até achar um bar aberto.
Dentro, três homens. Um deles me atrai por sua força e algo mais que não posso
explicar, mas que me magnetiza. Entro e já vou sentando em seu colo. Por mais
que o script pareça vulgar, minha mente entende aquele momento como um encontro
puro e sincero. Ele não me repele, ao contrário, permite que me enrosque em seu
pescoço. Ignoro os outros dois e fico encantada, entregue àquele ritual
imaginário de pureza e sedução.
De repente, os três me botam num jipe. Sem noção do perigo, continuo a me
aninhar nos braços do estranho, que em meu delírio era uma espécie de príncipe
encantado. Chegamos a um sobrado e entro na casa com naturalidade. Pergunto onde
é o banheiro e subo as escadas. Mesmo percebendo mãos ansiosas que me tocam por
trás, continuo alheia. Fecho a porta e, sentada no vaso, me dou conta de que
aqueles homens estão sendo inconvenientes.
Desço e então realmente compreendo o quanto eles seriam capazes de me
molestar. Aos gritos, me mandam tirar a roupa. Fico em pânico. Sem muita escolha
e temendo uma violência maior, me desnudo aos poucos, desejando que tudo aquilo
retroceda. Fico só de calcinha diante de três homens desconhecidos e alucinados.
Obrigam-me a deitar sobre uma grande mesa e aos berros exigem que me dispa de
vez. Choro compulsivamente, na esperança de que a graça divina me liberte
daquele martírio.
Minha estratégia desesperada surte efeito e sou escorraçada porta afora na
noite escura. Mal atravesso o portão, a bússola metafísica reaparece para guiar
meus passos. Como se nada tivesse acontecido, prossigo até o nascer do sol, que
me libertaria dos seres noturnos e seus desejos profanos.
Certo dia corto o cabelo,
que estava longo e ondulado. Empunho a tesoura com decisão, deixo apenas uma
mecha sobre o olho esquerdo. Quase me arrependo ao ver os cachos no chão do meu
pequeno apartamento, mas a loucura já detonara e não tinha mais volta. Vestida
de preto, circulo pela rua noite e dia. A cada supermercado abasteço minha fúria
com uma garrafa de vinho tinto. Desafio semáforos, carros e pessoas apenas com o
olhar.
Meu primeiro destino é uma festa no cais do porto. Lá encontro uma colega do
grupo das rádios comunitárias, que não disfarça seu espanto diante da minha
aparência. Meu comportamento também havia mudado, eu me sentia poderosa, mais
determinada. Na minha loucura, aquela roupa dark simbolizava segurança
e energia.
No dia seguinte pego um ônibus e vou a Vila Cruzeiro, onde ministrava o curso
de comunicação popular para um grupo de jovens em situação de risco. Minha
visita foi rápida. Eu, dama de negro, cabelos curtos e óculos escuros; eles,
surpresos com meu visual e atitudes, não fazem perguntas. Era minha despedida do
projeto após três meses de envolvimento e paixão.
Dispenso as vestes fúnebres e inicio outra viagem. Meu novo adorno é um sutiã
meia-taça branco, uma saia verde-clara muito leve, desfiada em vários bicos
irregulares, e sapatos pretos de saltos relativamente altos e grossos, como os
de bailarinas de flamenco. Envolta numa paradoxal atmosfera de pureza e louca
sensualidade, invado o prédio do Gasômetro, centro cultural de Porto Alegre. O
som do salto pisando nas lajotas me arrebata para outra dimensão, me transfiguro
em uma mulher linda e desejada.
Entro numa sala, vejo um grupo de pessoas reunidas em círculo. Sem pedir
licença nem cumprimentar ninguém, miro um dos homens e começo a dançar ao redor
dele. Ele não reage e vou me aproximando cada vez mais. Coloco minhas pernas
entreabertas ao redor das dele, movo meu corpo de forma provocadora e levanto as
mãos sobre a cabeça, num gesto de entrega. “O que é isto?”, grita uma mulher. Um
guarda me retira dali.
Retorno ao apartamento para incorporar a última personagem daquele teatro.
Vestida de vermelho e negro, me transformo numa entidade, mais especificamente a
Pombagira. A roleta-russa começa a girar outra vez e estou completamente à mercê
da sorte. Anoitece e saio. Não preciso ir muito longe. Numa lanchonete embaixo
do meu prédio, três homens bebem. Eu me junto a eles como se fôssemos íntimos. A
conversa flui, o tempo passa, o estabelecimento fecha as portas. Eu ainda a mil,
querendo sempre mais, convido os três para subir. Lembro deles entrando, abrindo
gavetas e armários, talvez procurassem drogas. Lembro de mim dançando, da luz do
abajur, dos beijos de um deles. Imaginava que fossem anjos, embora não visse
suas asas.
A maior manifestação da misericórdia divina foi permitir que tudo se apagasse
de minha memória. Poupada dos detalhes sórdidos, acordo pela manhã como se nada
tivesse acontecido. Ainda vislumbro o último sujeito vestindo a calça e indo
embora. Levanto para trancar a porta, a chave estava do lado de fora. Deixo ela
lá, minha vida já tinha sido arrombada, agora era tarde demais. Avisados por um
amigo, meus tios vêm me acudir logo em seguida. Sou internada mais uma vez.
No hospício, observo
aterrorizada uma ferida no pulso direito. Aids! As atitudes tresloucadas, a
lembrança daqueles homens no apartamento e a perda de memória transformam minha
mente num redemoinho de medos e sensações aterradoras. Encolhida num canto do
salão, cercada por alienados e dependentes de álcool e drogas, rumino a
evidência de estar sendo fulminada por uma punição atroz.
De repente um homem senta ao meu lado e pergunta se está tudo bem. Digo que
não. Pergunto qual seria sua atitude se estivesse com Aids. Ele fala que
seguiria sua vida normalmente. Seu olhar tão doce e sereno me acalma aos poucos.
Graças à companhia dele consigo suportar o confinamento mais sofrido de minha
vida. O resultado do exame HIV dá negativo. Minha ferida desaparece, nós dois
nos aproximamos a cada dia.
Ele era casado, tinha filhos, mas estava disposto a deixar tudo por mim.
Dizia que nunca havia encontrado mulher como eu, com quem podia conversar e ser
ele mesmo. Sua presença me confortava, mas eu sabia que meus sentimentos em
relação a ele não eram tão intensos. Eu simplesmente me deixava levar.
Nossos encontros ocorriam no pátio ou no salão, espaços compartilhados pelos
internos. Ele sempre trazia um aparelho de som embaixo do braço. Suas músicas
prediletas eram os pagodes românticos que pareciam dedicados a nós dois.
Ficávamos um ao lado do outro, conversando e trocando olhares intensos. A cada
distração dos enfermeiros, eu acariciava sua pele morena.
Ele era pedreiro e morava num dos bairros mais pobres da cidade. Eu nunca
soube o que causou sua internação, mas ele dizia que iria mudar, que faria
qualquer coisa para ficar junto de mim. Aquele sentimento me erguia
gradativamente do fundo do poço. Nossa história repercutiu em todo o hospital,
na ala dos homens já havia quem torcesse por nossa união.
Mas ela não aconteceu. Ele teve alta antes de mim e aguardou a minha saída.
Chegamos a nos encontrar algumas vezes. Ele, sempre respeitador, carinhoso e
siderado por mim. Nunca um homem me olhara com tamanho amor, respeito e
admiração. Mesmo assim não correspondi a seu sentimento e um dia ele se afastou.
Ele iluminou as trevas no meu sofrimento e lhe serei eternamente grata, esteja
onde estiver.
Certo dia resolvo cortar o
cabelo mais uma vez, agora bem curtinho, tipo Sinéad O’Connor. Mudar a aparência
tinha um significado, prenunciava grandes acontecimentos. Toso até os fios
ficarem rentes ao couro cabeludo. Vou para Rio Grande, encontrar meus amigos da
oceanologia. Apesar de já estar cursando jornalismo, os constantes retornos à
minha praia são uma forma de reabastecer as energias. Todos comentam meu visual.
A química de meu cérebro recebe a aprovação como um sinal verde.
Minha via-crúcis, cujo destino final é mais uma internação, começa por uma
breve escala na casa do Gil, que arrastava um caminhão por mim. Mas ele estava
de namorada e não foi tão bom anfitrião como nas outras vezes. Anoitece e estou
a esmo, sem dinheiro para o ônibus. Surge um Fusca na rua de areia pouco
movimentada. Peço carona, ou melhor, me atiro na frente do carro.
A porta se abre, revelando o interior escuro e a silhueta de um homem jovem.
Entro, já imaginando que aquele era o Fusquinha de uns amigos, mas não.
Totalmente perdida, sigo junto àquele desconhecido. Ele pensa que eu quero o que
ele quer, no entanto está equivocado. A sensualidade que o surto psicótico eleva
a mil não significa para mim, necessariamente, sexo. Eu me deixo levar e
estacionamos à beira de uma praia.
Total escuridão, absoluto isolamento. Só então percebo sua excitação e o
desespero me domina. Tento me esquivar, mas ele é forte. Resisto e consigo abrir
a porta. Saio, peço socorro e, por uma força do destino, uma viatura da polícia
se aproxima. Na verdade, os policiais nos seguiam, pois haviam suspeitado do
carro. Levam-me dali e depois me liberam. O homem, assim como surgiu do nada, se
foi para não sei onde.
Prossigo no meu delírio, numa vertigem que parece não ter fim. Passo dias e
noites andando pelas ruas do balneário, varo as madrugadas, perco a noção de
tempo. A imaginação completamente alterada faz com que me perceba como morta.
Era como se eu tivesse
saído do corpo e o observasse de fora. De certa forma,
já me tornara um zumbi, não comia nem dormia. Por um momento, com a sensação de
não estar viva, me atiro ao chão, na expectativa de que alguém venha resgatar
meu suposto cadáver. Permaneço imóvel e espero.
De repente, mãos me apalpam a cintura, os seios, como querendo decifrar se
sou homem ou mulher. O físico magro e os cabelos tipo Sinéad O’Connor confundem,
ainda mais à noite. Carregam meu corpo inerte para uma barraca e ali me deixam
por um tempo. Imagino que seja meu túmulo. Enfim encontro um descanso. No
entanto, mais uma vez sou levada à delegacia,
e mais uma vez liberada.
Desisto da ideia de ser um defunto. Varada de fome, procuro um posto de
saúde, onde me oferecem um prato feito que devoro em minutos: ovo frito, arroz,
feijão e bife. Energias abastecidas, sigo jornada, a imaginação se superando a
cada passo. Chego a uma região pouco habitada, com pradarias e animais pastando.
Vejo uma cerca e penso que, se ultrapassá-la, poderei assumir a forma de um
cavalo. Observo minha futura família no pasto e reflito. Prevalece o bom senso e
desisto.
Em busca de alguém que me resgate daquele pesadelo, me atiro no acostamento.
Os carros passam e eu espero imóvel, a poucos centímetros da pista, como se
estivesse desacordada, mas no fundo rezo, rezo muito. Um carro para, alguém se
aproxima e vai embora. Continuo rezando. Um tempo depois chega outro carro e
estaciona. A polícia, de novo. O guarda me toma em seus braços.
Finalmente alguém me liberta daquele ciclo de insensatez. Não conseguiria
sair sozinha. Outra vez estou no posto de saúde, onde alguns parentes já
procuravam por mim. Vou de ambulância para um hospital geral. Passo por um raio
X para detectar algum traumatismo no crânio.
Nada. Minha fratura é na alma.
Pode parecer impossível que
um bipolar tenha um discernimento mais elaborado da realidade, mas isso às vezes
acontece. Depois de anos de análise, sei que fui uma espécie de antena
parabólica que captou toda a crise familiar ocasionada pela separação de corpos
dos meus pais. Se durante um tempo eu os culpei da minha condição, hoje eu os
compreendo e posso perdoá-los pelo mal-estar que o fim de seu relacionamento me
causou. Assumo a responsabilidade pela tristeza e pela alegria em minha
vida.
Aprendi muito com os vários psiquiatras que frequentei. Um deles me fez
entender que nem todas as famílias estão preparadas para lidar com alguém com um
transtorno da intensidade do meu. Consigo perdoar minhas irmãs, que quase sempre
se mantiveram distantes. Certa vez um médico chamou-as para uma reunião. Quando
perguntou a elas se entendiam o que acontecia comigo, manifestaram total
desconhecimento. E assim confirmei que minha jornada seria solitária.
Conciliar um distúrbio bipolar diagnosticado como severo com uma carreira
profissional não foi tarefa fácil. Visitei orfanatos na adolescência, participei
da Anistia Internacional, do movimento ambientalista, de iniciativas de
comunicação comunitária e de educação junto a jovens em situação de risco –
minha história foi marcada pelo voluntariado, uma vez que acreditava poder mudar
o mundo e tinha a garantia do meu pai, sempre presente para ajudar a filha
“doente”.
Depois de cursar um semestre de oceanologia, abandono a faculdade e presto
jornalismo. Termino a graduação aos 29 anos, após catorze semestres, prolongados
por internações praticamente anuais. Decido viver no interior, onde trabalho num
jornal pequeno, mas a aventura não dura mais que uma edição. Ao tentar vender
anúncios num restaurante para o mesmo tabloide, consigo emprego como garçonete.
Nunca imaginei que fosse gostar tanto de servir mesas, atender pessoas e lavar
pratos. Sigo quatro meses numa rotina que me dá prazer, quando tenho um surto.
Depois da internação, tento voltar, mas encontro as portas fechadas.
Retomo o voluntariado e durante um ano participo de quatro entidades ao mesmo
tempo, e assim mergulho no universo das questões sociais e da esquerda, sem, no
entanto, me envolver com a política partidária. Mesmo assim acabo assumindo um
cargo de confiança em Porto Alegre, na Secretaria de Educação do Estado, no qual
permaneço por cinco meses.
Participo do Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua e da causa das
rádios comunitárias. Com o objetivo de prestar um exame de mestrado e talvez
algum concurso público, ingresso num grupo da Faculdade de Educação da
Universidade Federal do Rio Grande do Sul que desenvolve projetos em galpões de
reciclagem. Mas a essa altura, com 38 anos, começo a me apavorar diante da
perspectiva de não ser capaz de me sustentar. Falo disso num grupo de saúde
mental do qual participava e uma psicóloga incompetente diz que preciso
recomeçar de baixo. Não bastasse, a empresa de meu pai quebra.
Não entro no mestrado. Decido trabalhar como faxineira no meu bairro, tarefa
que enfrento com certa resignação e alegria. Cada peça de roupa esfregada num
dia frio à beira de um tanque é uma lição de humildade e perseverança. Com o
dinheiro contado, pago um cursinho preparatório para concursos públicos. Acabo
conseguindo uma vaga gratuita num curso de massagem e retorno ao mundo do
trabalho “digno”.
Desisti de me comparar aos outros, de tentar ser normal, de ser o que
esperavam que eu fosse. Busquei a simplicidade e a autenticidade sem me levar
por padrões. Eu já estava mesmo fora do padrão.
Não sei em que exato momento cruzei a ponte que me tirou da loucura, mas sei
o que me trouxe à sanidade. Uma filosofia oriental me fez refletir sobre mim e
sobre como interagir com as pessoas. Passaram-se dez anos desde minha última
internação. Mais uma vez, um livro transformou minha vida. Foi ao ler A Arte
de Lidar com a Raiva, do Dalai Lama, que aprendi que, se nem sempre podia
interferir nas coisas que chegavam até mim, ao menos poderia controlar minha
reação frente a elas. Depois de me libertar da raiva, vislumbro a possibilidade
de enfrentar as adversidades pela disciplina da mente.
A partir daí sigo uma vida simples, sem projetos mirabolantes ou grandes
expectativas. O melhor lugar é aqui e agora. É neste instante que posso viver,
amar e ser eu mesma. Já não busco um mundo ideal, mas um mundo real e melhor a
cada dia. Deixei para trás meus tempos de Joana d’Arc e encaro a vida com toda a
sua simplicidade e beleza.
Na cama, confesso num
sussurro que passei por crises e internações. Ele sorri e diz que está tudo bem:
sua história também foi marcada por uma infância de traumas e uma adolescência
rebelde. Já não estou mais só. Encontrei meu companheiro, meu anjo da guarda,
que me aceitou como eu sou.
Andamos à noite pelas ruas de areia da praia do Laranjal ouvindo David Bowie
e Prince no mesmo headphone. De repente, toca uma música dos anos 80.
Penso como seria fácil surtar com aquelas estrelas, as árvores e a imensidão do
mar. Mas meu marido me segura pela cintura, é a minha âncora. Ninguém nunca me
quis tão perto assim, nunca desejei tanto ficar.
18 de dezembro de 2014