sábado, 7 de abril de 2012

O ESCRITOR E A LOUCURA

Para quem só conhece Rubem Fonseca no Brasil, é difícil imaginar a cena ocorrida na semana passada em Póvoa de Varzim, cidade de Eça de Queirós, ao Norte de Portugal, quando o escritor que não dá entrevistas, não se deixa fotografar e não faz palestra, a nossa Greta Garbo, de microfone em punho, rodando em volta da mesa onde deveria estar sentado ao lado de meia dúzia de importantes colegas portugueses, iniciou sua fala: "Aqui nessa mesa todos somos loucos." Dizia e punha a mão no ombro de cada um, inclusive do quase nonagenário filósofo Eduardo Lourenço. "A literatura é uma forma socialmente aceita de loucura", justificava. Na plateia, mais de 200 pessoas assistiam meio incrédulas, misturando espanto e muitos risos, à palestra-show do autor de "Bufo & Spallanzani", que foi premiado no 13 Correntes d'Escrita, o encontro anual que reúne escritores de expressão ibérica.

Citando em dez minutos doze autores de variadas nacionalidades (é o único a fazer isso com naturalidade, sem ser pedante), Rubem apontava as condições necessárias para alguém se dedicar ao ofício da escrita. A primeira, indispensável, seria então a loucura. Recorrendo a um exemplo do inglês W. H. Auden, ele garantiu que a maneira de formar um poeta é torná-lo, quando criança, bem neurótico. Basta isso? Perguntou, para responder que não, que o candidato devia ser alfabetizado, "mas não muito". E não precisa ser inteligente? Nem sempre. Segundo ele, Somerset Maughan confessou ter conhecido centenas de colegas, mas poucos, inteligentes. "Concordo com isso", acrescentou Rubem, para delírio da plateia.

As outras condições seriam ser motivado ("sem motivação você não descasca nem uma banana"), imaginativo (e, virando-se para os que compunham a respeitável mesa, disse: "O escritor tem que ter imaginação, ouviram, meninos") e, finalmente, ser paciente. Para ilustrar, citou o caso do romancista francês Gustave Flaubert, que levou cinco anos para escrever "aquele livrequinho de 200 páginas, 'Madame Bovary', porque ficou à procura da palavra certa, o 'mot juste'". "Não existe sinônimo, estão ouvindo? Cada palavra tem um significado diferente", ensinou, provocando mais risos: "Essa coisa de sinônimo é conversa mole para boi dormir dos gramáticos."

No final, sobrou também para o público: "Vocês aí, não pensem que, por não serem escritores, não são loucos também." Foi aplaudido de pé.

Em 1995, assisti a um show parecido em Havana, onde ele e eu fomos jurados do Prêmio Casa das Américas. Quando descrevi na volta o que tinha visto, um Rubem Fonseca solto, desinibido, fazendo graça e arrancando gargalhadas ao ler dois contos, um violentíssimo e outro quase obsceno, muitos aqui duvidaram.

Agora tem o YouTube para comprovar. Podem conferir:http://youtu.be/QqjLOOs8h5k
 
07 de abril de 2012
zuenir ventura

ACASO E NECESSIDADE

Sintomas, como problemas, não se resolvem, mas se dissolvem: na marra


Se houvesse uma eleição da melhor abertura de romance de todos os tempos, eu votaria nessa, de “O amanuense Belmiro”, de Cyro dos Anjos: “Ali pelo oitavo chope chegamos à conclusão de que todos os problemas eram insolúveis. Florêncio propôs, então, um nono, argumentando que outro copo talvez trouxesse uma solução geral.” Com efeito, se não todos os problemas, o problema do todo certamente não pode ser resolvido. O que fazer, então? Esquecê-lo, agir como se ele não existisse. Os problemas que não podem ser solucionados podem contudo deixar de existir. Essa é a função do nono chope na filosófica abertura transcrita acima: não resolver, mas dissolver o problema. Chamo essa abertura de filosófica porque a questão do acaso e da necessidade, à qual ela remete, é uma das mais tradicionais da filosofia. É ela que quero abordar aqui, por meio de um grande filme.

Refiro-me a “Um conto chinês”, do diretor argentino Sebastian Borensztein. É um desses filmes que conseguem tratar de enormes questões filosóficas sem qualquer grandiloquência. “Um conto chinês” tem como prólogo uma situação absurda. Dois jovens chineses estão num barquinho, num cenário idílico da China rural. Ritualizam ali seu noivado. O jovem vai buscar as alianças para colocar no dedo de sua plácida amada — quando, de repente, uma vaca cai do céu, destroça o barco e mata a noiva.

Corta para Buenos Aires. Um homem de meia-idade, Roberto (o sempre brilhante Ricardo Darín), trabalha numa pequena loja de ferragens, herdada de seu pai. Roberto é rabugento, metódico e obstinadamente solitário. No ano anterior conhecera Ana, irmã de seu único amigo (ou o mais próximo disso que ele consegue se permitir). Eles transaram numa noite, ela desde então quis se juntar a ele, que por sua vez mantevese aferrado a sua solidão. Um dia, Roberto vê um chinês ser assaltado na rua. O chinês é pobre, não fala espanhol e veio de seu país procurar um tio. Roberto o ajuda, mas o tio vendeu sua loja e não deixou rastro. Roberto se vê então obrigado a abrigar o chinês em sua casa. Para a exasperação de seus sintomas, os diaspassam e nada de o tio do chinês ser localizado.

Em meio a essa narrativa, conhecemos melhor Roberto. Ele é honesto e corajoso. Revolta-se com a fábrica de parafusos, que lhe vende caixas com menos peças do que o indicado na embalagem. Revolta-se também com fregueses que duvidam de sua honestidade. Revolta-se com um policial que abusa de seu poder.
Roberto tem por hábito colecionar notícias absurdas, golpes quase inverossímeis do acaso, que colhe de jornais de diversas proveniências. Enquanto isso, Ana continua a procurá-lo e tentar demovê-lo de sua solidão fechada, opaca para o amor ou qualquer relação com o outro.

Após inúmeros atritos com o pobre chinês, que apenas por estar ali atingia em cheio o sintoma de Roberto, finalmente a embaixada chinesa localiza o tal tio. Nessa noite, por estar aliviado pela iminente partida de seu hóspede indesejado, Roberto se permite conversar com ele pela primeira vez. Tendo como tradutor um entregador de comida chinesa, fazem perguntas um ao outro. O chinês quer saber o que são aqueles recortes de jornal que ele coleciona. Roberto conta que seu pai era um italiano que imigrou fugindo da guerra. Mas, ao chegar na Argentina, acabou por ter que ceder seu filho como combatente à guerra das Malvinas. O pai de Roberto morre por desgosto com esse acaso. O filho passa então a colecionar notícias absurdas, como o pai que foge de uma guerra e cai em outra.

Pausa para interpretar. Roberto é paralisado pelo acaso, que é a causa mortis filosófica de seu pai. Sua vida se mantém atrelada a isso, condenando-o a uma posição melancólica, de inação. Ora, a melancolia tem uma forte relação com o acaso: se a vida é gratuita, se existir não faz sentido, para que agir? A honestidade rigorosa de Roberto parece ser uma tentativa de dar algum sentido às coisas; e sua revolta volta-se contra os que não colaboram com os pactos, com a ordem, instaurando um caos que remete ao acaso que o melancoliza.

Roberto está narrando algumas das notícias absurdas dos jornais para o chinês, quando lhe
conta aquela , mais absurda entre todas, de um chinês que tinha sido atingido por uma vaca que veio do céu. Os olhos do chinês se enchem de lágrimas, e o tradutor traduz: “Era ele quem estava naquele barco.” No dia seguinte, após ter deixado o chinês no aeroporto, Roberto retorna à sua casa e encontra uma imensa vaca pintada, pelo chinês, na sua parede. Ele pega o carro e parte para a província onde mora Ana. Liberou-se, e o filme acaba.

O acaso de o chinês da notícia ter vindo parar, por uma trama improvável, em sua vida, não precisa ser compreendido como um “sinal” (de uma lei oculta, metafísica) de que há necessidade “por trás” dos eventos aleatórios. Mas sim que o acaso podeformar acontecimentos cheios de sentido, com estrutura de sentido. Um chinês perde a noiva num golpe infeliz do acaso, e acaba, por outra volta do acaso, cumprindo o papel de enfrentar o sintoma — uma doença da gratuidade — de um melancólico solitário. Sintomas, como problemas, não se resolvem, mas se dissolvem: na marra, por meio de um encontro inesperado. O mesmo acaso que originou a melancolia de Roberto também lhe impôs um término. Não há necessidade, há finalidades sem fim. Não há necessidade, mas é preciso agir como se houvesse. Antes que uma vaca caia do céu e cumpra o único evento necessário.

 
07 de abril de 2012
francisco bosco

O CÁRCERE DE BLAU

A vida “natural”, que Blau persegue, não precisa de expressão. Ela apenas é


Entre os aforismos de Elias Canetti, existe um, que se refere ao escritor austríaco Robert Musil (1880-1942), que me interessa em particular. Anota Canetti: “Musil me fascina por um tipo de uniforme. Teria que defini-lo como o uniforme da claridade?” Autor do monumental “O homem sem qualidades”, romance em que o pensamento — a claridade — se sobrepõe à ficção, Musil, evocado por Canetti — vejam que caminho tortuoso! — me ajuda a ler “A vida obscena de Anton Blau”, o dilacerante romance de Maria Cecília Gomes dos Reis (Editora 34). Por que Canetti? Por que Musil?

Por que os dois me levam aos nervos de Blau? Tento explicar. Nunca lemos só o que um livro nos diz. As palavras são faróis: elas iluminam também nossos próprios pensamentos, reverberam e se deformam em nossa mente. Vamos a Anton Blau. Ele vive retido no eterno presente. A condenação reflete — ou é efeito? — da escrita de Maria Cecília, que trabalha seu romance sem se apegar às ilusões dos vínculos e da perspectiva. Ilusões? É talvez isso, um tanto de sonho, o que falta a Blau. O que o aprisiona.

Romance estranho — aviso logo. Que se lê com dificuldades. Ou, se não são dificuldades, são incômodos, como se algo muito fino nos espetasse. Na aparência, Anton Blau é um homem dominado pelo desleixo, pela preguiça, pela autoindulgência. Um homem comum; um homem sem qualidades, exatamente como o célebre personagem de Robert Musil. Mas insisto: tudo na aparência. Na verdade, Maria Cecília nos oferece uma visão fatiada de Blau. Ela o pega em momentos distintos de sua vida, na perspectiva de observadores e encarnações diferentes. Se não é isso o que faz, simula isso. Falta-lhe aquilo que define, por excelência, a claridade de que fala Canetti: o foco. Já na abertura do livro, o leitor recebe a seguinte advertência: “A verdadeira experiência consiste em restringir o contato com a realidade e aumentar a análise desse contato”. Em outras palavras: quanto mais limitamos nosso olhar, mais a claridade aumenta. Ao contrário: quanto mais o alargamos, como a autora faz, mais opaca se torna a existência.

Blau, contudo, é um homem das miudezas. Procura “as impressões que ninguém está interessado em descrever”. Procura o desprezível. As sobras, dejetos: o lixo. É na direção dos restos que Blau se vira. Quando se tira tudo de um homem, quando nada mais lhe resta, o que ainda assim lhe resta: ele está aqui. Ele “é” o presente. Clarice Lispector viajou na mesma direção: arrastou seus personagens rumo à Coisa — aquilo que ela, às vezes, chamou de “it”. Claro: o instante. A claridade do instante, tão breve, tão frágil, que logo no instante seguinte já não é mais. Blau busca o que está aqui e mais nada. Não se interessa por antecedentes, tampouco por consequências. Não quer saber da história, ou do futuro. Ele é. Ele é a Coisa de que nos fala Clarice.

Todos nós somos, só que nos agasalhamos na ilusão — lonas protetoras do passado, coletes
imaginários do futuro. Blau está emparedado. O romance fala de sua imobilidade. Ele nem chega a ser um personagem: ele é o amigo imaginário da menina Marta. Prisioneiro do disperso, resta-lhe atuar. Não precisa do pensamento — que um escritor como Musil desdobrou em centenas e centenas de páginas. Nele, a claridade está em não pensar, em não ver, em não refletir. Deseja livrar a vida dos invólucros que a adornam. “A vida prejudica a expressão da vida”. Dizendo de outra maneira: a vida “natural”, que Blau persegue, não precisa de expressão (literatura). Ela apenas é.

Cruel traição: tudo isso se passa, contudo, em um romance, que de natural nada tem. Sim, a vida precisa de expressão, ainda que seja para falhar no inexpressivo. A cada manhã, Anton Blau desperta para sua vida comum, que se caracteriza não pela dor, ou pelo terror, mas pelo “desconforto difuso”. Viveu a infância “entre a neblina e cumes de recordação”. A adolescência, entre “sombras e pequenas dissimulações”. Teatro fracassado, a vida humana é só um disfarce. O presente não se interessa por encenações. Tampouco se importa com o disfarce. O presente grita. Clarice dizia que o presente era um grito.

Mas logo não se trata de Anton, e sim de Jamil, o terceiro filho de uma mulher chamada Lia. As presenças se desdobram, mas ainda é sempre o presente. O meu presente, o seu presente, o presente alheio: todos comprimidos no mesmo instante e, ainda assim, tão distantes uns dos outros. Também não se trata, agora é Jamil quem nos adverte, da aposta no “mundo interior”. Observa o mundo e conclui: “Sou algo ínfimo diante disto tudo, um indivíduo qualquer plantado no planeta, um móvel em trajetórias grudado à superfície do globo”. Maria Cecília, a autora, usa sua imaginação para destruir qualquer possibilidade de imaginação. Ao escolher o presente perpétuo, é como se ela dissesse a seu leitor: “Suporta, aguenta firme, isso basta”.

Não basta, e o próprio livro é um desmentido das teses que Anton Blau encarna. De repente ele é Klaus, e sua única esperança é não ser processado por uma ofensa. Ou seja: é permanecer (preso) onde já está. É Klaus quem nos diz: “O homem experimenta uma forma complexa de ser: ‘estar’ e ‘não estar’ ao mesmo tempo”. Uma forma contrária, portanto, ao princípio de não contradição. Somos contradição pura, Klaus e seu séquito de nomes nos mostram. Vivemos estagnados no que somos, mas é exatamente essa estagnação que nos fornece um ponto de partida e que nos permite enfim nos desdobrar. Prossegue Klaus (ou será Blau?): “A identidade de cada pessoa é dada por seu veio circunstancial — único e mesmo”. Ao mesmo tempo, afirma: “A pessoa é variação sob variação. E também variação (sujeito) ante variação (objeto)”. Chega-se aqui ao horror: até a variação é um efeito da repetição.

Maria Cecília nos oferece um romance que se parece com um charco. Sob as águas mórbidas, contudo, alguma coisa se mexe. Esse mexer-se — amar, gerar filhos, escrever livros — pode ser repetição pura. Ainda assim, e seu livro nos mostra isso, só ele é capaz de produzir as coisas que em nós mesmos nos espantam.
07 de abril de 2012
josé castello

NUDEZ

O comportamento compulsivo incide muitas vezes sobre atividades reprimidas, censuradas e passíveis de punição legal, como o jogo, o sexo, o uso de drogas. Por esse motivo, os que incorrem em tais práticas tão proibidas podem ser vistos como detentores de invejáveis ousadia e liberdade pela maioria cumpridora de deveres e submetida às sanções socialmente estabelecidas. E está aí o paradoxo da compulsão, pois aquelas pessoas são tudo, menos livres e ousadas. Estão acorrentadas à repetição incessante do mesmo desempenho que jamais lhe proporciona a tão buscada satisfação.

Não se pode esquecer que a droga, o sexo e o jogo são negócios geradores de uma forte economia paralela negada pelo mercado oficial. Se isso ocorre é por atenderem a uma realidade humana cuja complexidade não é reconhecida adequadamente, motivo do fracasso das medidas tomadas em relação a eles, como mostra o suposto combate internacional ao tráfico de drogas.

Não se trata de substituir a hipocrisia moralista por um diagnóstico médico ou psicológico, e sim de não negar o sofrimento dos praticantes de tais atividades e as consequências danosas que elas têm sobre suas vidas, como bem mostra o filme Shame, de Steve McQueen, com Michael Fassbender no papel de um compulsivo que vive em Nova York. Como era de se esperar, para ele o sexo nunca é a via para o prazer e sim o aguilhão que o conduz à procura de um gozo mortífero. As razões do desespero que inutilmente procura esconder atrás de sucessivos orgasmos são evocadas pela irmã frágil e suicida, que insinua um passado familiar traumático.

O filme teve nos Estados Unidos um inesperado efeito colateral decorrente dos momentos do nu frontal de Fassbender, gerador de muitos gracejos. George Clooney deu o tom da gozação ao mencionar, num programa de televisão de grande audiência, que Fassbender poderia jogar golfe sem taco, bastando mover o corpo de um lado para outro. Outros colunistas disseram que Fassbender não fora indicado para o Oscar por "inveja do pênis" por parte dos membros da academia...

Aproveitando a deixa, James Wolcott, colunista da revista Vanity Fair escreveu um divertido artigo, The Hung and the Restless, uma espécie de história do pênis no cinema americano. Nele lista os filmes em que o tabu do nu frontal masculino foi derrubado, entendendo a diferença no trato da nudez de cada um dos sexos como decorrente do fato de vivermos numa sociedade machista, na qual o corpo da mulher é objeto de desejo fetichisado e a nudez masculina suscita pânico homossexual, leitmotiv de infindáveis piadas entre os homens.

A meu ver, a crescente tolerância com a nudez nos filmes de Hollywood não pode ser dissociada da liberação da pornografia proporcionada pela internet. O número impressionante de acessos aos sites pornográficos evidencia o apelo que esse material tem frente ao público, especialmente o masculino, fazendo com que os cineastas se sintam mais seguros de acrescentar em seus filmes ingredientes dali provenientes. É o que ocorre com Shame. A roupagem mainstream - grande produção, bons atores, roteiro sofisticado e "sério" - mal esconde a realidade de um soft porn caça-níqueis.

Mas essa não é uma questão simples. A linha divisória entre pornografia e criação artística é difícil de traçar, sujeita que é a sutis determinações socioculturais. É o que mostra o uso da nudez na arte. Exaltada por gregos e romanos, a nudez entrou em relativo ostracismo com a implantação do cristianismo, voltando à cena com estardalhaço na Renascença. Michelangelo foi acusado de obscenidade e imoralidade ao expor o afresco O Julgamento Final na Capela Sistina, desencadeando um movimento de censura que exigia a remoção ou dissimulação das partes pudendas das figuras nuas ali pintadas.

O que teve início com Michelangelo cristalizou-se no Concílio de Trento, quando, entre tantas outras deliberações, ficou estabelecido que nada que pudesse estimular a concupiscência e a luxúria poderia ser exposto na arte patrocinada pela Igreja. Em outras palavras, a nudez estava definitivamente banida e condenada. Na bula papal de 1557, Paulo IV tornou obrigatório o uso de folhas de figueira para esconder os genitais das imagens pintadas ou esculpidas antes da proibição. A medida foi aplicada com empenho pelos papas Inocêncio X (1574-1655) e Clemente XIII (1693-1769).

Essa zelosa atitude foi retomada por Pio IX (1792-1878). Sob seu comando, todos os mármores da antiguidade clássica existentes no Vaticano tiveram seus falos destruídos e por cima das mutilações foram colocadas as folhas de figueira. Episódio semelhante ocorreu em 1897, quando a rainha Vitória foi presenteada pelo grão-duque da Toscana com uma réplica idêntica do David de Michelangelo. A estátua deixou a rainha escandalizada, motivo de sua imediata remoção para o museu de Kensington Gardens, onde foi providenciada uma folha de figueira que deveria ser colocada em defesa do pudor das damas que eventualmente aparecessem por ali em visita.

Se tudo isso nos parece lamentável e risível é por não atentarmos para o fato de que, de certa forma, resquícios dessa atitude persistem na atualidade, como estamos vendo nas repercussões em torno do nu frontal de Fassbender.

Em nossa cultura, a nudez feminina é corrente, chega a ser banalizada, o que não ocorre com a masculina, que continua sendo objeto de uma repressão maior. Isso se deve aos aspectos machistas apontados por Wollcott. O próprio machismo é um dos incontáveis efeitos imaginários da diferença anatômica existente entre os sexos, tal como Freud mostrou. As consequências psíquicas inconscientes dessa diferença não podem ser menosprezadas. Ter ou não ter o falo assume um papel de extraordinária importância no mundo mental de homens e mulheres. Símbolo de força e potência vital criadora, invejado e atacado, ameaçado permanentemente com possibilidade da castração, o falo ora se confunde com o pênis e se exibe orgulhosamente, ora se oculta misterioso atrás de folhas de figueira, panos e véus, afirmando uma mística e transcendente inacessibilidade, recusando-se a ser equiparado a um mero e vulgar órgão sexual masculino. Será por causa da forte carga significante do falo que a nudez masculina é mais censurada que a feminina?

O Ministério da Justiça acaba de lançar um Guia Prático da Classificação Indicativa estabelecendo o que crianças e adolescentes podem ver na televisão e no cinema. Fica ali liberada a nudez, desde que ela seja "sem conotação sexual". Entende-se a intenção do Ministério em proteger crianças e menores, mas será possível dissociar o nu do sexual, do erótico? Não é a nudez que expõe a animalidade do corpo, as vergonhas da carne, a diferença dos sexos? Poderá ela algum dia ser vista com naturalidade? Estaria o Concílio de Trento totalmente equivocado ao atribuir à nudez o estímulo à luxúria e a concupiscência?
 
07 de abril de 2012
sérgio telles

DESCONSTRUIR E DESCONVERSAR


Isso é que é planejamento. Menos de três anos depois de inaugurada solenemente com a presença do então presidente Lula, do governador Sergio Cabral e do prefeito Eduardo Paes, a estação de metrô Ipanema/General Osório vai ser fechada (e a do Cantagalo também) por pelo menos oito meses para a abertura de uma nova e discutível boca de saída que, não se sabe por quê, não foi prevista. Mas tem mais. Esse genial projeto de desconstrução pretende também destombar a Praça Nossa Senhora da Paz, desmanchando o lazer e o prazer de velhinhos e crianças, desmatar o parque, desplantando 113 árvores, e inutilizar o espaço por no mínimo onze meses para abrir uma estação que, conforme pesquisa, a grande maioria da população do bairro dispensa por desnecessária. Mas, se o plano é transformar o trânsito num caos durante esse tempo, isso com certeza vai-se conseguir.
O pior é que, pra variar, não se fornece ao respeitável público uma razão, sequer um argumento convincente, para todo esse surto de bota-abaixo. O projeto parece ser desconstruir e desconversar.
XXX
Vamos ficar devendo muito à operadora Sprint Nextel (a Nextel Brasil diz que não tem nada a ver com isso), que acabou enganando os que achavam que, eles sim, estavam enganando. Pois foi graças à propaganda enganosa que o bicheiro CarlinhosCachoeira e sua máfia foram desmascarados.
Acreditando que os aparelhos habilitados nos EUA eram à prova de grampos, eles se abriam sem medo e sem vergonha. Se não fossem as escutas nos rádios importados, não se ficaria sabendo que Demóstenes Torres recebeu de Cachoeira não só a mixaria de R$ 3 mil para o táxi-aéreo, como muitos milhões em propina.
Não se saberia também de diálogos incríveis como o havido entre um sócio do bicheiro e o chefe da Divisão de Combate ao Crime Organizado da PF de Goiás, Deuslino Valadares, um delegado acima de qualquer suspeita:
— Bem-vindo ao Nextel Clube — disse o delegado.
O sócio informa que estava saindo de uma reunião “maravilhosa” em Brasília.
— Beleza! Tava roubando aí ou tava fazendo o quê?

XXX
Vendo a genialidade de jogadores como Messi e Neymar, que transformam cada drible, cada jogada numa obra de arte, não dá para aceitar que se coloque na mesma categoria de esporte uma luta na qual vence quem der o soco, o pontapé ou a cotovelada mais violenta na cara do outro, de preferência desfigurando-a. É como diz o ex-boxeador Maguila sobre o MMA: “Não é luta, é briga de rua. Você joga o sujeito no chão e fica batendo.”

XXXSinal dos tempos. Outro dia, ao buscar Alice na creche, flagrei-a beijando na boca Davi, seu namorado. Os dois têm pouco mais de dois anos. Avô moderno, não disse nada, mas ainda não me refiz do choque, principalmente porque não sei quais são as intenções do rapaz.
07 de abril de 2012
zuenir ventura

MEMÓRIA RESGATADA

 

BECKETT AOS SOBRESSALTOS

O belo em Beckett é que o vazio se torna um bordado

Um homem se ergue e parte. A princípio, uma luz externa o ilumina. Logo ela se apaga e se instala a escuridão. O homem se entrega. “Talvez soubesse muito bem o que ficava embaixo e não desejava vê-lo de novo”. Ver o quê? Ver a si mesmo, nivelado ao chão. O homem se ergue para se movimentar, mas o movimento é também repetição. É imobilidade. Eis a solidão maior: mesmo movendo-se, ele não pode se mover. Mesmo lutando para chegar ao outro, retorna sempre a si.

Falo de “Sobressaltos”, talvez o mais agudo relato de “Companhia e outros textos”, de Samuel Beckett (Editora Globo). O texto que empresta seu título ao livro, “Companhia”, é uma conhecida viagem através da solidão. Um homem, deitado no escuro, ouve uma voz cuja origem desconhece A voz o perfura, derramando uma mistura gosmenta de sonho e memória. Aos sobressaltos, lutando para ignorar a voz, mas por ela arrastado, o homem se apega a fios que pendem, frágeis — últimos sinais de uma cabeleira —, de sua mente. Mas em “Sobressaltos” não há nem mesmo essa voz que, mal ou bem, ainda é uma esperança de companhia. O homem leva sustos consigo mesmo e com sua incapacidade de se mover. Não é que não se mova; move-se, mas isso é inútil e não o leva a lugar algum.

Nesse sacolejar, defronta-se com seus próprios sentimentos, que são incompreensíveis e não o levam a lugar algum também. Por exemplo: tem vontade, mas ao mesmo tempo tem medo de sumir. Antagônicas, as duas ideias se anulam. Resta o ruído estridente de um atrito.

Como viver com sentimentos que se esmurram em nosso interior? Como conferir sentido a uma vida que
se desenrola, ao mesmo tempo, em dois sentidos opostos, de modo que um sentido anula o outro? Esse impasse deixa o homem “meramente esperando”. Não que não se mexa, mas dá no mesmo. Caminha por estradas ermas, arrasta-se em uma paisagem escura. Habita um cenário (uma Natureza?) que de nada lhe serve. “Nada a mostrar que não o mesmo”, ele diz. Se a paisagem se repete, tudo se anula. É como se viajássemos em um carro que fizesse voltas intermináveis em torno da mesma praça. Na repetição que se acumula, a paisagem afunda em um buraco. Uma boca que nos engole.

Beckett — como todo escritor — está falando da literatura. A literatura não tem “solução”. Não há direção, ou destino. Na frente do ônibus pode estar a placa: “Destino”. Mas isso nada nos assegura. Esse girar em torno da mesma praça — do mesmo poço — transforma a escrita de Samuel Beckett em um gaguejar. Sua escrita evoca a sílaba que os gagos repetem, em aflição, buscando a sílaba seguinte que nunca lhes chega. Há uma dor — mesmo que se aceite a dor. Há um silêncio (uma pausa) — mesmo que, ao fim, algo se expresse. Escrita rota, aos farrapos, aos frangalhos. Aos sobressaltos.

Por vezes o homem (o e s c r i t o r ) e m e rg e d o mundo exterior e volta a si. Reencontra-se. Reencontra-se? Há um sentimento de reencontro e nada mais. Nada mais. Beckett poderia, quem sabe, repetir as palavras de Nietzsche em “Ecce Homo”: “Naquela época meu instinto decidiu-se de maneira inexorável contra a continuação da condescendência, do seguir-aos-outros, do enganar-a-mim-mesmo”. Há uma (tentativa de) ruptura. Há uma volta a si — como alguém que, de repente, se levanta de um desmaio. Mas, se em Nietzsche esse erguer-se, mesmo tosco, e ainda que aterrorizante,
se converte em potência, em Beckett ele é só um desdobramento da imobilidade. Uma espera ainda.

O homem, então, se vê em um campo de relva. Mas até o campo acolhedor se converte, l o g o , e m o b s t á c u l o .

“Pois ele não conseguia se lembrar de nenhum campo de relva no coração mesmo do qual nenhum limite de nenhum tipo pudesse ser descoberto”. Também os campos de relva estão delimitados (encarcerados) por grades, canteiros, cercas, muros. Mesmo a mais romântica liberdade é uma prisão. Precisa fazer algo disso, mas o problema está aí: faz e, no entanto, nada se altera. O que não impede de fazer (de escrever). É o ato — fazer, escrever — que lhe salva.

Resta-lhe, por fim, apenas a memória, em cuja barriga escura vasculha o homem restos, resíduos, sobras que construam algum sentido — que lhe sirvam de bengala! Nada encontra. Inclina a cabeça, então, em posição de meditação, que é a desistência de pensar para entregar-se ao vazio.

Constata que está vazio de desejos e sabe que, ainda que os tivesse, de nada lhe serviriam. É um escritor: planeja, organiza, deseja, mas a escrita é sempre outra coisa. Sai de si para entregar- se a esse outro e sua luz efêmera; mas isso também não o salva e, por fim, (fechado o livro), está, mais uma vez, sozinho. As palavras (as luzes) tagarelam. A elas, ainda assim, se apega.

O belo em Beckett é que o vazio se torna um bordado. Costurado com uma linha inexistente, ainda assim ele traça uma forma. Somos, nós leitores, arrastados por essa ilusão de cura pela beleza que em nenhum momento elimina nosso mal. Chegamos então — o personagem de Beckett chega — ao “tanto faz”. Mas atenção: é desse “tanto faz”, que apesar de tudo é tanto, que algo fazemos. Alguma coisa que nos console, como nos diz o homem, “do horror de tudo ter fim”. Ele ainda exclama: “Oh tudo ter fim”. Nem essa frase, que se parece com um fecho, dá conta do que ele sente.

A literatura, para muitos, é só um deserto. Algo inútil, porque vazio e sem sentido — sem senso de direção. A literatura: uma embriaguez? Algo em que algo (o principal) sempre falta.

É como recordar Vladimir e Estragon à espera infinita de Godot. Seu amado Godot não chega e tudo o que o lhes resta é a espera. Beckett: autor da espera. Como se estivesse em uma gravidez que jamais conduzisse a um parto e que, por fim, fosse apenas peso e angústia.

Algo deslocado de seu centro: de repente, olhando com mais cuidado, vemos nossa espinha que, à distância, nos acompanha. O homem de Beckett está deslocado de si. Vagueia, insiste, “até nada sobrar do fundo desse dentro!” As frases se enroscam, são gatos preguiçosos, que só querem o silêncio. Ainda assim, nos acariciam.Ainda assim, nos consolam.
Ainda assim estão ali.
 
07 de abril de 2012
José Castello