sexta-feira, 16 de outubro de 2015

CÁRIE E PUM VAGINAL

As aflições sexuais dos adolescentes



“Eu tenho aqui uma dúvida!”, gritava o rapaz, balançando as mãos no ar. Tentava se destacar entre os muitos jovens que também queriam fazer perguntas. Não devia ter mais do que 15 anos de idade. Tinha os cabelos raspados nas laterais da cabeça, um topete volumoso, aparelho nos dentes. Já com um microfone nas mãos, encarou a plateia de mais de 300 pessoas e, sem hesitar, perguntou seriamente: “É verdade que sexo oral pode dar alguma doença bucal?”
Sob a chuva de risadas da plateia, o menino seguiu, com firmeza. “É! Tipo cárie!”, completou, contraindo o rosto. Parecia se tratar de uma preocupação real. “Vamos lá, gente”, dizia animadamente uma voz feminina que se sobrepunha ao falatório do auditório. Lançando um olhar compreensivo ao garoto, Laura Muller o tranquilizou: desconhecia na literatura médica qualquer relato de malefícios à saúde dos dentes provocados pelo sexo oral.
Aos 45 anos, a sexóloga Laura Muller é um fenômeno na televisão, onde há quase uma década desempenha funções pedagógicas. No final de 2006, ela foi chamada a fazer um teste para um quadro do programa Altas Horas, de Serginho Groisman, na tv Globo. Seria sabatinada sobre assuntos sexuais pelos adolescentes que vão em caravana assistir às gravações do programa. A desenvoltura de Muller impressionou o apresentador. Em frente às câmeras, ela não hesitava diante de questões constrangedoras (“Por que o gosto do esperma demora a sair da boca?”) e respondia sorridente como se explicasse uma receita de bolo (“É normal o esperma deixar gosto na boca, é característico do sabor dele mesmo”).
 Desde que foi contratada, todo sábado Muller bate ponto no programa, e circula descontraidamente pelos corredores da sede paulista da Rede Globo. Vai da sala de figurino ao seu camarim falando alto e marcando o ritmo apressado com o plec-plec do salto. A visibilidade na televisão ajudou a transformá-la na mais profícua sexóloga brasileira.
Em suas palestras, de São Paulo ao interior do Acre, atrai plateias de mais de 3 mil pessoas; lançou cinco livros em que conta “tudo sobre sexo”; mantém uma coluna mensal sobre comportamento num site de uma empresa farmacêutica; publica diariamente “pílulas de sexo” em um aplicativo para celular. E é ovacionada como uma banda de rock ou uma dupla sertaneja quando entra no auditório do Altas Horas.

Naquela tarde de setembro, Laura Muller responderia a questões de seis adolescentes da plateia. Ela conta que a maior parte das perguntas se restringe a alguns poucos assuntos: dor na primeira relação, gravidez fora de hora e orientação sexual. Mas às vezes os adolescentes surpreendem. “Por que durante o sexo algumas mulheres soltam gás ‘por lá’?”, perguntou um rapaz do alto da arquibancada, relatando a sinfonia que às vezes acontecia com a parceira, conforme o encaixe dos corpos.
Muller é uma mulher grande; tem pernas e braços longos, tronco atlético e 1,77 metro de altura. Os sapatos de salto alto que costuma usar a deixam ainda mais alta. Ela recebeu piauí em seu camarim, pouco tempo antes de entrar no palco doAltas Horas. Com cabelo, roupa e maquiagem prontos, preferiu conversar em pé, em pose de miss – repousando as mãos na cintura e com as pernas cruzadas em xis –, para não amarrotar o figurino.
Ela iniciou a vida profissional como repórter daFolha de S.Paulo, na qual cobria assuntos de cidade e polícia. “Fiquei seis anos trabalhando em jornal e aí me cansei um pouco. Queria poder ser mais mulherzinha”, disse. Era meados dos anos 90, e as revistas femininas começavam a falar sobre sexo mais abertamente, pauta antes restrita a uma ou outra publicação. Muller, então com 26 anos, ficou sabendo de uma vaga na revistaClaudia que ninguém topava pegar – e não hesitou em se candidatar.
A sexóloga contou que algumas redações, naquela época, não estavam preparadas para falar sobre sexo. O tema era tabu entre repórteres, e não havia muitos especialistas dispostos a discorrer sobre o assunto. Ela mesma, casada desde os 19 anos, encarara até ali a vida sexual sem preparo algum. Para dar cabo das dezenas de páginas que editava mensalmente, foi fazer pós-graduação na Sociedade Brasileira de Estudos em Sexualidade Humana. Acabou emendando um curso de psicologia. Largou o jornalismo e abraçou apaixonadamente a nova profissão. “Só é chato que tem quem ache que eu sou a rainha do sexo na cama, dou pirueta, transo com a perna no lustre. Sou um ser humano normal, altos e baixos, erros e acertos”, contou.

Laura! Laura! Aqui! É verdade que se o pênis do boy for muito grande ele pode cutucar e machucar o útero?” Muller começa suas respostas sempre com uma inevitável risadinha, logo emendando um “vamos lá, gente!” para entrar em um surpreendente estado de atenção e tranquilidade. É uma médica em um consultório com milhões de pacientes e espectadores.
Ela descobriu nos últimos anos que a abordagem do público não tem limites, principalmente com uma celebridade sexóloga. Se está conversando com um grupo de amigos em uma ópera, pode acontecer de uma estranha brotar no meio da roda e reclamar que não consegue atingir o gozo. Certa vez, no aeroporto, a segurança a deteve por alguns minutos na esteira de raio X e ali, como se conversasse com uma amiga próxima, tirou dúvidas sobre sua vida sexual. Por pouco a sexóloga não perdeu o voo.
“Vamos lá, gente!”, disse Muller, voltando-se para a menina que perguntara sobre os perigos de um pênis grande. “Pode machucar o fundo da vagina, sim, tem que mudar de posição. Mas têm tantas outras coisas boas que se pode fazer além da penetração”, engrenou com firmeza, enquanto Serginho Groisman se adiantava para encerrar o quadro da sexóloga, antes que ela pudesse terminar o raciocínio. Ecoou pela plateia de adolescentes um lamúrio de tristeza. Naquela tarde eles não iriam saber que tantas outras coisas eram aquelas que poderiam fazer.
16 de outubro de 2015
 LUIZA MIGUEZ

JUIZO FINAL





Uma paciente de Alzheimer decide pôr fim à própria vida


A psicóloga Sandy Bem, professora da Universidade Cornell, estava sozinha em seu quarto enquanto assistia ao documentário O Projeto Alzheimer, da HBO. 
Era uma noite de maio de 2009, e dali a um mês ela completaria 65 anos. Nos dois últimos anos vinha experimentando o que chamava de “esquisitices cognitivas”: esquecia-se do nome das coisas ou confundia palavras parecidas. 
Certa vez, reclamou de uma blizzard (tempestade de neve) no seu pé, quando queria dizer que tinha uma bubble (bolha); em outra ocasião, chegou em casa com um pacote de ameixas, apanhou uma delas e, parada no meio da cozinha, perguntou a uma amiga: “Isto aqui é uma ameixa? Não consigo saber ao certo.”

Sandy era uma mulher baixinha, tinha apenas 1,45 metro de altura, pesava 43 quilos e possuía a aparência andrógina de um elfo: cabelos curtos, óculos e um guarda-roupa em que predominavam as calças jeans e os suéteres confortáveis que ela mesma tricotara ao longo dos anos 90. À medida que o documentário avançava, aceleravam-se as batidas de seu coração – na tela, uma mulher se submetia a um teste de memória. Sandy resolveu participar do experimento. 
O examinador anunciou que diria três palavras. E a prova consistia em, depois de ter ouvido as palavras, escrever uma frase qualquer, sem conexão com os termos enunciados, e em seguida repetir o que ele havia dito. Sandy ouviu as três palavras: maçã, mesa e tostão. Escreveu, então, uma frase curta: “Eu nasci em Pittsburgh.” Depois, disse em voz alta as palavras de que se lembrava: maçã, tostão... Era um teste de memória dos mais simples, e ela tinha fracassado.

No mês seguinte, o marido dela, Daryl, de quem se separara amigavelmente quinze anos antes, levou-a de carro de Ithaca, onde a psicóloga morava, até o Centro Médico da Universidade de Rochester – a cerca de uma hora e meia de distância –, no qual ela se submeteria a testes cognitivos aplicados pelo neuropsicólogo Mark Mapstone. Mapstone mostrou a Sandy um desenho, pediu que ela o copiasse e, dez minutos mais tarde, que tornasse a desenhá-lo de memória. Leu também uma lista de palavras, depois ela deveria repetir as que lembrava. Por fim, disse-lhe dois números e duas letras, que ela deveria rearranjar numa certa ordem: letra do começo do alfabeto, do fim, número baixo, número alto. Graças a Deus que aquele último teste não era cronometrado, ela pensou, enquanto se concentrava na resolução do problema. Ficou feliz como uma criança que tira a nota mais alta quando Mapstone lhe disse: “Isso mesmo, você acertou.”

Passadas três horas, o neuropsicólogo emitiu um diagnóstico preliminar: comprometimento cognitivo leve amnéstico. De início, ela sentiu alívio – o médico havia dito que o comprometimento era leve, certo? –, mas então notou a expressão grave no semblante de Mapstone. Aquela não era uma notícia boa, ele lhe disse de modo gentil: num prazo de dez anos, a maioria dos casos de comprometimento cognitivo leve amnéstico evoluía para um quadro completo de Alzheimer.

Quando reencontrou Daryl na sala de espera, Sandy chorava copiosamente. Soluçando, revelou-lhe o diagnóstico e o inevitável declínio que se desenhava no horizonte. Aterrorizava-a a perspectiva de se tornar uma pessoa oca, sem memória, sem controle sobre a própria mente e sem identidade, tanto quanto a irritava a impotência, o fato de não lhe restar outra coisa a não ser suportar aquilo. No Alzheimer, ela escreveria, é “extremamente difícil que a morte do corpo acompanhe o passo em que se desfaz a consciência”. Naquele dia, no consultório de Mapstone, Sandy jurou a si mesma que encontraria um modo de pôr fim à vida antes que a doença a roubasse dela.



Dias depois, Sandy estava em seu escritório, no andar de cima – as paredes cor de vinho, como de resto toda a casa, conferiam certo aconchego ao espaço –, e olhava para a tela do computador. Sentia-se um pouco aflita em relação a seu plano de escrever um diário da própria deterioração. Ainda assim, abriu um documento novo, deu nome ao arquivo – Memoir – e começou a digitar. Tentou descrever a enlouquecedora arbitrariedade de “uma mente capaz de tanta vivacidade num momento, com pensamentos e sentimentos encadeados, até que, no momento seguinte, vem alguém e apaga tudo, e não consigo me lembrar nem sequer em que estava pensando. Foi-se. E eu fico ali sentada, no escuro, no vazio”.

A perspectiva do declínio mental era especialmente dolorosa para Sandy, dona de uma autoimagem atrelada a sua capacidade de pensar em profundidade e de forma original. Pioneira no campo dos estudos de gênero, em 1974 criou o Bem Sex-Role Inventory, um teste que situa as características de uma pessoa dentro de um espectro contínuo entre os dois polos tradicionais de gênero. Além disso, entre 1978 e 1985 liderou o então recém-criado programa de estudos da mulher na Universidade Cornell; em 1993 escreveu uma obra inovadora, The Lenses of Gender (As Lentes do Gênero); em 1998 publicou um livro de memórias, An Unconventional Family (Uma Família Incomum); e em 2000 obteve a licença para a prática da psicoterapia. No ano seguinte, assumiria um segundo mandato em Cornell como diretora do renomado programa de estudos feministas, de gênero e da sexualidade.

Amigos e colegas se referiam a ela como uma pessoa extremamente perspicaz, que dizia o que pensava com uma franqueza por vezes desconcertante. Sua melhor amiga, a psicoterapeuta Karen Gilovich, contou que era comum ela começar uma conversa com a frase: “Eu estava aqui, pensando...” – e que nunca se sabia o que viria a seguir. Certa ocasião, por exemplo, ela conjecturou em voz alta sobre a linha divisória entre comportamentos aceitáveis e inaceitáveis na relação entre pais e filhos. Seria indiscutivelmente errado que uma garçonete, ao voltar para casa depois de um estafante dia de trabalho, pedisse ao filho jovem que lhe massageasse os pés? Ou as costas? Que lhe fizesse um carinho? “Ela era a pessoa de pensamento mais claro que já conheci”, disse Karen, “capaz de ir direto ao cerne de qualquer questão complicada.”



No dia 22 de junho de 2009, data de seu 65º aniversário, Sandy retornou à Universidade de Rochester para uma nova consulta de três horas, dessa vez com um graduado neurologista, Charles Duffy. O objetivo era avaliar não apenas suas capacidades cognitivas, mas também sua condição em termos de humor e funcionalidade. Em determinado momento, contou a Duffy que não pretendia levar até o fim uma vida marcada pela demência. “Só quero continuar vivendo enquanto puder ser eu mesma”, anunciou.

Para surpresa dela, o neurologista pôs-se a falar de si. A mãe dele também havia tido Alzheimer e o tempo que ele passara cuidando dela, ao longo de todo o processo de declínio, o marcara profundamente, como médico, pesquisador e homem. E acrescentou que Sandy – que em seu trabalho examinara e descrevera a própria vida com sinceridade e clareza absolutas – ainda poderia dar uma considerável contribuição ao mundo: bastaria viver sua enfermidade e contar aos outros como era ter Alzheimer.

A empatia manifestada por Duffy ao lhe revelar detalhes de sua vida pessoal sensibilizou Sandy. Havia outras histórias como a dele, de pessoas que viam seus entes queridos partindo aos poucos ou que experimentavam em si próprias aquele afastamento progressivo e, perplexas, encontravam algum tipo de virtude naquilo: uma espécie de existência zen num presente eterno, que glorificava os prazeres simples da vida. Mas Sandy sabia que aquilo não era para ela. Nem por um momento cogitou aceitar os argumentos do neurologista.

No transcorrer das semanas seguintes, revelou aos mais próximos o diagnóstico e seu plano de se suicidar antes que perdesse a capacidade de decidir. Contou aos dois filhos adultos, Emily e Jeremy, ambos com mais de 30 anos, e a um punhado de outras pessoas: a Karen, à irmã de Daryl, Robyn Bem, e à própria irmã, Bev Lipsitz, que morava em Oregon. Ninguém desse círculo mais íntimo tentou dissuadi-la da ideia do suicídio; conheciam de longe sua obstinação feroz quando resolvia alguma coisa. Fizeram-na apenas prometer que não escolheria um método demasiado chocante – não usaria arma de fogo nem pularia de uma ponte sobre os desfiladeiros de Ithaca, famosos pela beleza. Sandy já havia pensado nessas duas possibilidades, mas tampouco ela desejava aquele tipo de morte. “O que eu quero”, escreveu em seu diário num negrito enfático, “é morrer de acordo com meu próprio cronograma e do meu modo não violento.”

Mas quando seria isso? Sandy sabia que o declínio provocado pelo Alzheimer é previsível: ele em geral se manifesta de forma branda (guardar coisas nos lugares errados, repetir as mesmas perguntas), que, depois, se torna moderada (ser incapaz de aprender coisas novas, se perder, não reconhecer entes queridos) e, por fim, grave (incapacidade de falar ou engolir, incontinência, necessidade de ajuda para desempenhar toda e qualquer função do dia a dia). Contudo, ainda recém-diagnosticada com comprometimento cognitivo leve amnéstico, ela não tinha como prever a duração de cada estágio. Antes de morrer queria desfrutar de todas as alegrias intelectuais e emocionais possíveis, mas queria também ter certeza de que não esperaria demais para agir. Precisava estar suficientemente envolvida com a própria vida para poder pôr fim a ela.



No começo de julho, Daryl tornou a acompanhar Sandy ao consultório do dr. Duffy, em Rochester. O neurologista sugeriu que ela começasse a tomar Namenda, uma das poucas drogas que o FDA americano aprovara para o tratamento da doença. O Namenda regula o nível de glutamato no cérebro e, desse modo, acredita-se que ele retarde a morte dos neurônios. O cérebro de uma pessoa que apresenta um comprometimento cognitivo leve já vem se deteriorando há anos; ainda que as drogas possam postergar o declínio, a atuação delas é limitada e tardia. Médicos e pacientes, por outro lado, nutrem a esperança de que a administração da droga logo após o diagnóstico possa fazer alguma diferença, pequena, mas tangível – desacelerando a perda de memória o suficiente para evitar a dependência completa. Para surpresa de Daryl, Sandy concordou de cara com a sugestão do neurologista – ela em geral não tomava remédios, só uma dose baixa de Prozac com que vinha se tratando da depressão havia muitos anos.

Naquele verão, Daryl foi com ela à maioria das consultas. Embora apta a dirigir, Sandy preferia tê-lo a seu lado, assim no caminho de volta ele poderia repetir todos os detalhes da consulta, que ela anotava minuciosamente. Além disso, estava gostando de desfrutar da companhia dele. Algo no diagnóstico dela abrira no marido um veio emotivo.

“Quem é esse Daryl maravilhoso?”, ela escreveu em seu diário naquele mês, depois de, no carro, ele ter falado com inesperada empatia sobre os anos que Sandy vivera ao lado da mãe rude e temperamental. Ela adorou aquele marido terno e atencioso que parecia ter emergido das ruínas de seu diagnóstico. “Se algum demônio tivesse me perguntado se eu estaria disposta a comprar aquela alma mais profunda de Daryl e a pagar por ela com minha progressiva demência”, ela escreveu, “eu teria dito não sem hesitar. Mas se agora posso desfrutar dela de graça, juntamente com meu declínio inescapável, sou grata pela dádiva.”

Era um pouco como no início do relacionamento dos dois, em 1965, quando se conheceram na Carnegie Tech de Pittsburgh. Ela era estudante de psicologia; ele, o novo professor-assistente. Casaram-se quatro meses depois de terem sido apresentados pela colega de quarto de Sandy.

Juraram que dividiriam tudo: tarefas domésticas, criação dos filhos, compromissos relativos às respectivas carreiras. Por um tempo, funcionou muito bem. Tão bem que, em 1972, figuravam no número inicial da revista Ms., no artigo “Um casamento entre iguais”.



Os Bem eram, ambos, professores de psicologia, primeiro em Stanford, depois na Cornell. Viajavam pelo país dando palestras conjuntas sobre os papéis sexuais estereotipados criados pela sociedade. Formavam um casal um tanto bizarro. Ela era pequenininha e não estava nem aí para a moda. Ele, mais alto e seis anos mais velho, vestia-se com apuro, tinha a palidez típica dos acadêmicos, um rosto doce e as maneiras elegantes que cultivara nos anos em que trabalhara como mágico.

O casal aplicou suas ideias políticas à vida em comum, criando os dois filhos – Emily, nascida em 1974, e Jeremy, dois anos depois – de um modo que, do ponto de vista do gênero, ambos caracterizavam como neutro. “Inúmeros casais feministas fizeram experiências com relacionamentos igualitários e uma criação feminista dos filhos”, Sandy escreveu em An Unconventional Family. Poucos, porém, “compartilharam, com tanta profusão, detalhes de sua vida cotidiana”. Ela falava sobre tudo, tanto por escrito como no circuito de palestras: sobre permitir que, durante o jardim da infância, Jeremy usasse presilhas cor-de-rosa nos cabelos; sobre passar diariamente com Emily diante de um mesmo canteiro de obras porque entre os peões havia uma mulher; sobre um lembrete pendurado na cozinha, avisando às crianças quem estava “de serviço” a cada semana, se o pai ou a mãe.

Todavia, e a despeito das boas intenções de ambos, o casamento foi se desgastando. Durante a adolescência dos filhos, Sandy reclamava de estar criando os dois sozinha, uma vez que Daryl não se dedicava por completo às necessidades familiares. Perceberam o paradoxo daquele relacionamento supostamente igualitário que, no entanto, naufragava de maneira tão típica, do ponto de vista dos gêneros. Em 1994, quando Emily e Jeremy tinham 19 e 17 anos, os Bem se separaram.

Depois disso, Daryl daria vazão à atração que sentia por homens, traço de sua sexualidade que nunca escondera da mulher. Ele gostava de contar que, na primeira vez em que saíram, teria anunciado três coisas que ela precisava saber sobre ele: “Atuo em shows como mágico, venho do Colorado e sou essencialmente homoerótico.” Ao que ela, tranquila, replicou que nunca havia conhecido alguém do Colorado.

Um ano depois da separação, Daryl começou um relacionamento duradouro com um professor de comunicações do Ithaca College. O casal nunca se divorciou, e Daryl seguiu frequentando o casarão em Cornell Heights onde haviam criado os filhos. Jantava lá algumas vezes por semana, participando da vida de Emily e Jeremy – de certo modo, ainda mais presente do que quando morava com eles. Além disso, continuou sendo um dos melhores amigos de Sandy, bem como um de seus poucos confidentes. (Depois de se separar do marido, ela manteve um breve relacionamento com uma mulher, mas permaneceu solteira desde então.) No epílogo de An Unconventional Family, publicado quatro anos depois da separação, Daryl escreveu: “Sandy e eu ainda somos uma família.”



Numa calma manhã de sexta-feira, em novembro de 2010, Sandy preparou uma xícara de chá de gengibre com mel e sentou para ler dois livros que Daryl havia lhe trazido. Por essa época, um ano e meio após o diagnóstico inicial, seu quadro havia evoluído para o que Duffy caracterizava como doença de Alzheimer. Ela se aposentara da universidade, mas estava bem. Ainda podia viajar sozinha para os lugares de sempre, inclusive para Austin, onde Emily morava. Jeremy voltara temporariamente para casa, queria ficar com a mãe. Sandy podia ler romances, mesmo os mais difíceis, como A Estrada, de Cormac McCarthy. Jogava tênis, cuidava do jardim e fazia caminhadas por Ithaca com um grupo de amigos, na maioria ex-colegas da universidade. Ainda atendia alguns pacientes como psicoterapeuta. Um deles mais tarde diria que, embora ela tivesse dificuldade em se lembrar de certas palavras, “isso não tinha muita importância. Num relacionamento terapêutico, as pessoas falam mais sobre emoções e, nesse campo, ela não deixava passar nada”.

Naquela manhã, um dos livros que a esperavam era A Solução Final, de Derek Humphry. Ela o havia lido no começo da década de 90, quando do lançamento – já naquela época, intrigara-a a argumentação do autor em favor da “morte com dignidade” para pessoas com doenças terminais. O outro volume era mais recente, The Peaceful Pill Handbook [Manual do Comprimido da Paz], de autoria de Philip Nitschke, um advogado australiano que defendia o direito à morte. O comprimido do título (embora não seja literalmente um comprimido, mas sim um líquido) era Nembutal, nome comercial do pentobarbital, um barbitúrico utilizado por veterinários para sacrificar animais e que é empregado também em suicídios autorizados pelo Estado e assistidos por médicos. Depois de ler a respeito da substância, Sandy concluiu que encontrara o que procurava. O pentobarbital era confiável, de ação rápida e – o mais importante para ela – proporcionava um jeito suave de morrer. A substância induzia uma perda de consciência rápida, mas não súbita, e, depois, uma desaceleração gradual do coração.

Podiam ocorrer complicações, é claro, como o vômito. Para minimizar o risco, Nitschke e a coautora do livro, Fiona Stewart, recomendavam a ingestão de um comprimido antináusea poucas horas antes da dose letal. Advertiam também para o fato de que a substância poderia ser detectada no corpo após a morte, mas Sandy não se preocupava com isso. Na verdade, ela preferia que as pessoas soubessem que havia morrido por vontade própria.

Certa manhã, num de seus costumeiros telefonemas à irmã, em Oregon, ela lhe falou do pentobarbital. Sandy tinha uma relação especial com Bev, seis anos mais nova. Um ano antes de seu diagnóstico de Alzheimer, Bev descobrira ter um câncer de ovário em estágio avançado. As irmãs haviam conversado sobre o fato de a lei, no estado de Oregon, permitir o suicídio a pacientes com doenças terminais. Agora, Sandy invejava o domicílio da irmã.

Contudo, mesmo que vivesse no estado de Oregon, ela não teria conseguido ajuda para dar término à vida. Os estados norte-americanos que permitem o suicídio assistido exigem que dois médicos atestem que o enfermo tem menos de seis meses de vida, um prognóstico que não se aplica à maioria dos pacientes de Alzheimer. Além disso, o requerente deve ser declarado “mentalmente são”, obstáculo quase intransponível para alguém cujo cérebro está se deteriorando.

Naquela manhã, Sandy contou a Bev que o pentobarbital se enquadrava na categoria das substâncias de venda controlada nos Estados Unidos. Ela então teria de escrever a um fornecedor estrangeiro e torcer para dar certo. Bev sugeriu uma alternativa: quando chegasse a hora, ela própria solicitaria a substância a seus médicos em Oregon – e depois ela a entregaria à irmã. Bev não acreditava que fosse precisar de pentobarbital, pois seu câncer parecia estar regredindo. Como para todas as pessoas mais próximas de Sandy, também para ela era devastadora a perspectiva do declínio e da morte da irmã, mas procurava não antecipar a dor, a fim de poder se concentrar em ajudá-la a morrer como quisesse.



No dia 9 de dezembro de 2012, Emily – a filha dos Bem – e seu companheiro, Julius Viksne, tiveram um menino, ao qual deram o nome de Felix. Sandy foi até Austin, ainda capaz de fazer a viagem por conta própria. Ao longo dos dois anos anteriores, sua vida fora se tornando cada vez mais limitada, mas ela seguia tendo prazer em viver. Passava o tempo trabalhando no jardim do quintal de casa, sozinha ou em companhia da amiga Karen ou de Robyn, irmã de Daryl. Não escrevia mais em seu diário, mas podia ler romances no iPad, embora já não conseguisse acompanhar os mais difíceis, como A Estrada.

Dava conta das necessidades do dia a dia em parte porque seus hábitos eram sistemáticos. Comia quase sempre a mesma coisa: um bagelno café da manhã, um sanduíche no almoço, um pouco de salmão no jantar, e bebia xícaras e mais xícaras de chá ao longo do dia. Seu freezer sempre estava cheio de pacotes de amêndoas, que ela tostava e, à noite, salpicava sobre o frozen yogurt de chocolate. Por essa época, já tomava um segundo remédio aprovado pelo FDA, Aricept, um inibidor das substâncias químicas que degradam a acetilcolina – um neurotransmissor vinculado à memória de curto prazo. O cérebro de portadores de Alzheimer muitas vezes exibe concentração mais baixa de acetilcolina. Daryl não sabia ao certo até que ponto os remédios estavam atuando – como ela estaria sem eles?

Sandy, que nunca dera grande importância à ideia de ser avó, ficou entusiasmada com o nascimento de Felix. Quando chegou a Austin, o bebê estava na UTI neonatal – os médicos haviam detectado uma infecção bacteriana na urina e lhe prescreveram antibióticos. Sandy sentou-se numa cadeira de balanço ao lado do berço, e Emily passou-lhe o recém-nascido, de fralda e com um cateter intravenoso na mãozinha minúscula. Ela olhou para o neto, plácido e perfeito, e pôs-se a conversar com ele, balbuciando e brincando. Durante semanas falou daqueles primeiros momentos com Felix em seu colo. “Eu não sabia o que ele estava dizendo ou fazendo”, contava, “mas ele me olhava bem nos olhos.”

Emily ficou surpresa ao ver a mãe tão à vontade no papel tradicional de bubba (a palavra iídiche para “avó”). Como mãe, na década de 70, Sandy transformava toda e qualquer interação com os filhos num ato político. Quando contava histórias, folheava os livros ilustrados tendo à mão um vidrinho de líquido corretor e uma caneta, com os quais alterava o nome do herói, transformando-o em heroína, revisava enredos e acrescentava cabelos compridos ou seios a algumas das personagens. No caso de Felix, a experiência de contar histórias era diferente. Sandy acariciava o bebê e ia virando as páginas. Se não lembrava a palavra “zebra” ou “leão”, não se irritava. “Ah, é um animal qualquer”, dizia.

Comentou com Emily que seu “novo cérebro” talvez a tornasse uma avó mais apropriada, diferente do “cérebro velho”, focado e hiperanalítico. A filha gostou da mãe daquele jeito. Nem sempre fora fácil ser criada por Sandy. Quando menina, ela queria ter cabelo comprido e fazer balé, mas a mãe, sempre vigilante no tocante a estereótipos de gênero, obrigava a filha a usar cabelo curto e jogar futebol. Agora, porém, Sandy não parecia se importar muito com essas coisas. Gozava a vida de um modo que a antiga Sandy jamais teria imaginado – isso ensejou na filha a esperança de que a alegria que Felix propiciava à avó pudesse levá-la a reconsiderar sua intenção de se matar.

Outras pessoas de seu círculo mais íntimo observavam aquela relação dela com Felix e se perguntavam que efeito teria sobre o plano original. A Sandy de outrora, que valorizava a racionalidade e o ativismo, havia deixado claro que não queria seguir vivendo quando já não pudesse articular pensamentos com coerência. Mas a nova Sandy não parecia infeliz com aquela sua vida, ainda que prejudicada. Quem tomaria, afinal, a decisão definitiva: a antiga ou a nova Sandy?



Em Domínio da Vida – Aborto, Eutanásia e Liberdades Individuais, Ronald Dworkin, influente filósofo e jurista norte-americano, discute a hierarquia das necessidades de pessoas na situação de Sandy, que querem ver respeitada sua autonomia, ainda que a doença modifique a essência do que são e o significado dessa autonomia. Dworkin distingue “interesses críticos” (objetivos e desejos pessoais que fazem com que a vida valha a pena) de “interesses experienciais” (gostar de ouvir música, por exemplo, ou de sorvete de chocolate). Sandy estava saboreando seus interesses experienciais – brincar com Felix e trabalhar no jardim –, mas seus interesses críticos, bem mais sofisticados, estavam fugindo de seu alcance. Segundo Dworkin, os interesses críticos devem ter prioridade quando se trata de decidir o fim da vida em nome de alguém que, por seu estado alterado, tem menos capacidade de tomar essa decisão, e isso porque são os interesses críticos que refletem a verdadeira identidade de uma pessoa. A nova Sandy parecia estar adorando ser avó, mas era importante levar em conta o que a antiga Sandy teria querido.

Privilegiar os interesses críticos é difícil, mesmo numa sociedade que tenta fazê-lo. Na Holanda, o decreto que regulamenta a solicitação de encerrar a própria vida e o suicídio assistido possibilita a um médico pôr fim à vida de uma pessoa caso ela já não tenha a capacidade de fazê-lo por si. É necessário, no entanto, que a pessoa tenha explicitado essa intenção quando ainda tinha a capacidade para tanto. De acordo com a lei de 2002, se o doente com Alzheimer faz um testamento em vida declarando seu desejo de morrer quando a demência atingir um ponto considerado intolerável – quando precisar ser alimentado com colher, por exemplo, ou tiver de usar fraldas –, esse documento basta como autorização para a prática da eutanásia por um médico.

No entanto, na Holanda é raro que um médico efetivamente pratique a eutanásia num paciente que sofre de demência. Na verdade, uma pesquisa recente aponta que, de 110 médicos holandeses tratando pacientes com demência e signatários de testamentos solicitando a prática da eutanásia, nem um único atendeu ao pedido. E, das 4 829 pessoas que morreram em 2013 em consonância com a lei holandesa da eutanásia, apenas 97 – isto é, 2% – apresentavam demência.



Você sabe que eu pretendo me matar”, Sandy dizia ao longo de 2013, toda vez que o pensamento lhe ocorria. Ela parecia dizê-lo em parte pelos outros, a fim de que, uma vez chegada a hora, se acostumassem à ideia e se preparassem para enfrentar a dor e o pesar. Mas parecia dizê-lo também a si mesma, para manter vivo aquele plano na mente que se desintegrava. À época, Emily e Felix estavam morando com ela, para que Sandy ajudasse a cuidar do bebê enquanto Julius fazia um curso de enfermagem no Colorado. (Jeremy saíra de casa recentemente. Atravessava um período difícil e não se comunicava com a família, embora apoiasse o projeto da mãe.) Ouvir a mãe falar continuamente em suicídio enlouquecia Emily. “Pare de dizer isso!”, pedia.

Numa noite de agosto de 2013, quando Sandy estava sozinha em casa, ela apanhou um bloco de notas e se sentou à mesa de tampo ladrilhado de sua imensa cozinha, onde já fizera milhares de refeições. Tinha acabado de tomar conhecimento de dois tratamentos experimentais que, associados aos dois remédios que já ingeria, talvez – assim ela esperava – pudessem mantê-la ativa para ajudar a cuidar de Felix até agosto de 2014, data prevista para o término do curso de enfermagem de Julius. O custo das novas drogas experimentais, todavia, era proibitivo, e ela teria de pagar a despesa do próprio bolso, uma vez que o seguro de saúde não cobriria.

Sandy começou a fazer as contas. O tratamento – uma combinação de IVIG (imunoglobulina intravenosa), uma droga aprovada para outras doenças neurodegenerativas, e estimulação magnética transcraniana (EMTr/TMS), em geral indicada para depressão – custava 6 mil dólares por quinzena no New York Memory and Healthy Aging Services. E se ela conseguisse convencê-los a cobrar menos, porque, considerando-se seu tamanho, precisaria de uma dose menor? E se espaçasse as sessões, uma vez a cada três semanas, por exemplo? Continuava sendo um dinheirão, mas ela nunca havia mexido em um centavo de seu plano de previdência privada e, aos 69 anos, era evidente que não viveria muito mais.

Sandy calculou que suas economias lhe permitiriam gastar cerca de 4 mil dólares a cada três semanas por um ano, o tempo que faltava para Julius se formar. Ao pé da página cheia de números, ela escreveu uma observação para lembrar a si mesma de não reclamar da considerável soma em dólares. “É caro, mas dinheiro não é o problema agora (por causa de imily).” A acadêmica antes tão meticulosa grafara errado o nome da filha.

Nos meses que se seguiram, Sandy e Daryl pegavam um ônibus bem cedo umas poucas vezes por mês e iam a Nova York para o tratamento. “Ainda me sinto eu mesma”, ela disse ao marido numa dessas viagens. “Você não acha?” Ele concordava, ao menos em parte. Na verdade, estava surpreso em ver o quanto ela era capaz de ser ela mesma, embora fosse cada vez menos a pensadora formidável que sempre havia sido. Ficou surpreso também ao descobrir que pouco se importava com aquilo. “Percebi como era pequeno o papel que desempenhava em meus sentimentos o fato de ela ser uma intelectual”, disse. “Meus sentimentos tinham a ver com ela, e não com sua inteligência. E seguiam existindo.”

Daryl se mostrou firme e, à medida que os amigos menos próximos foram se afastando – ou porque Sandy os excluiu ou porque não queriam testemunhar seu declínio –, ele se tornou figura ainda mais central na vida dela. Daryl e Karen, sua melhor amiga, eram as duas pessoas que a viam com frequência, e era com eles que Sandy controlava seu estado clínico, para se certificar de que a janela do suicídio não estava prestes a se fechar.



Em outubro, Sandy escreveu a um endereço no México listado em The Peaceful Pill Handbook. Semanas se passaram, e ela se queixava de que sua encomenda só podia ter sido confiscada na fronteira. Mas seu pedido enfim chegou: uma caixinha de papelão pouco maior que uma bola de beisebol, embrulhada em papel pardo. Ansiosa, ela abriu a embalagem com uma tesoura e apanhou dois frascos de 100 mililitros de pentobarbital – por segurança, tinha comprado um a mais. Como a droga precisava ser mantida em ambiente fresco, ela armazenou os dois frascos no porão. Por enquanto, podia deixá-los numa prateleira; saber que estavam ali significava um conforto.

Agora que o “como” estava resolvido, os Bem voltaram à esquiva questão do “quando”. Em geral, os dois ainda concordavam que Sandy provavelmente viveria até o fim de 2014. A despeito do tratamento em Nova York, suas deficiências cognitivas se acentuavam. Quando Bev veio de Oregon para visitá-la, Sandy não conseguia compreender como era que Bev e ela podiam ser filhas dos mesmos pais. Ela não reconheceu o nome de Robyn, citado numa conversa, e quando Emily tentou explicar que ela era “irmã do papai”, Sandy perguntou quem era, afinal, o “papai”.

Daryl percebeu outro sinal desanimador. Ele vinha observando os progressos de Sandy ao piano, que ela voltara a tocar. Os Bem sempre haviam tido piano em casa, para que Daryl pudesse acompanhar Emily, cuja voz límpida lhe propiciara de produções estudantis a uma carreira em musicais de teatro. Sandy avançava devagar, mas com segurança, de uma lição a outra, indo de melodias simples como a infantil Brilha, Brilha Estrelinha a estudos um pouco mais complexos.

Mais para o final de 2013, Daryl começou a notar que a mulher conseguia aprender músicas novas, mas só até certo ponto; quando retomava o assento ao piano, precisava voltar várias páginas na partitura e refazer parte do caminho, antes de avançar para canções mais difíceis. Poucos meses mais tarde, sempre que se sentava ao piano e folheava para trás o livro de partituras, só conseguia prosseguir até um ponto aquém daquele em que havia parado. E, poucos meses depois disso, Sandy se sentava ao instrumento, voltava para a primeira página do livro e não conseguia tocar nem mesmo Brilha, Brilha.

Tampouco isso era ruim, Daryl pensou. Ela parecia gostar de tocar o que quer que fosse. Um dia, porém, não lhe restava nem isso. Até mesmo as peças mais fáceis haviam se tornado demasiado difíceis. Quase à mesma época, ela não conseguia mais ler romances no iPad ou acompanhar filmes com flashbacks complicados. Por fim, eram só duas as fitas que ela gostava de ver: Mary Poppins e Fanny Girl – A Garota Genial.



Por volta do Natal, Julius abandonou o curso de enfermagem e se reuniu à família. Sandy não via mais sentido em gastar milhares de dólares na esperança de, por Felix, permanecer ainda minimamente ativa por mais algum tempo. Ela disse a Daryl que queria interromper o tratamento. Pouco depois, quando jantavam na cozinha, disse-lhe algo mais: queria conversar sobre a data para morrer.

Tudo bem, Daryl respondeu-lhe com serenidade, tentando manter a concentração no assunto em pauta e, preventivamente, fechando-se a pensamentos sobre como seria de fato perdê-la. Que tal junho? Ele sabia o quanto ela gostaria de voltar a trabalhar no jardim, tão logo terminado o inverno rigoroso de Ithaca. Esperava assim persuadi-la a seguir vivendo por mais alguns meses, meses felizes. Ela concordou que junho seria uma boa data.

Por essa época, Emily, que dividia seu tempo entre o lar da mãe e o seu, estava em Austin. Ela e Julius planejavam comprar uma casa a alguns quilômetros da cidade, e Emily estava se organizando para poder dar esse passo. Em abril, retornou a Ithaca. Voltava do banco com o pai, que a estava ajudando a obter uma hipoteca. O carro era o de Sandy, e Emily estava ao volante.

Daryl perguntou-lhe se não era melhor passarem o carro da mãe para o nome dela. Emily respondeu que preferia esperar até o fim do verão, quando já estaria morando na casa nova – assim, alteraria uma única vez o endereço na documentação. Talvez em julho ela pediria a Sandy a transferência do veículo.

“Sim, mas até lá ela já estará morta”, disse Daryl. Emily precisou se esforçar para manter o carro na pista. “O que foi que você disse?”

Daryl olhou para ela, surpreso com a surpresa da filha. Imaginava que Sandy houvesse falado com ela. Mas não. Emily achava que junho estava perto demais. Ansiava por passar o verão ao lado da mãe e do filho. Pensava em Felix brincando no quintal à luz do entardecer, enquanto sua bubbatrabalhava no jardim.

Emily zangou-se com o pai, por ele tratar da morte de Sandy de forma tão pragmática. Estava zangada também com a mãe, por ela ter escolhido uma data tão próxima, e também com todo o círculo de amigos íntimos de Sandy, por permitir que aquilo acontecesse. Naquela noite, discutiu a situação com os pais e com Robyn. Emily se sentia defendendo a vida da mãe contra todos aqueles que desejavam que ela a encerrasse.

“Você só está fazendo contas”, disse ao pai. “É como se calculasse: a uma velocidade de declínio x, pode-se prever que o dia certo será y. Mas não é possível!” Daryl, que passara a vida evitando conflitos, recuou. “Está bem, que não seja junho”, respondeu. “A gente só achou que, como sua mãe vai fazer 70 anos em 22 de junho, esse poderia ser um bom momento.” “Pois isso é loucura”, prosseguiu Emily. “Como é que você pode simplesmente escolher um mês?”

“Que mês era mesmo?”, Sandy perguntou. “Junho”, disse Daryl. “Agosto, junho... Não é questão de montar uma equação”, Emily insistiu. “Que mês era mesmo?”, Sandy tornou a perguntar. Emily se voltou para a mãe. “O inverno foi pesado”, disse. “Lá pelo final de maio, o tempo por aqui vai estar uma beleza de novo.”

Ela queria que a mãe aguentasse por mais um verão. Queria que ela se dispusesse a resistir. “Tenho certeza de que seria bom”, Sandy concordou, mas sua voz era neutra. A perspectiva de mais um verão, mesmo que com Emily, Felix e até com seu jardim, já não lhe parecia o bastante



Numa noite de abril em que Daryl foi jantar com Sandy, ela lhe disse de repente, do nada: “Você é tão inteligente.”

“É isso mesmo, ou é só que, conforme você vai emburrecendo, eu pareço mais inteligente?”, ele perguntou com um sorriso que ainda apostava em Sandy e na preservação de seu senso de humor. “É, acho que é isso”, ela respondeu, rindo. Mas logo em seguida lhe disse que já se sentia distanciada de si própria, e que o dia de sua morte precisaria ser “antecipado, e não adiado”. Daryl apanhou um calendário de 2014 da parede da cozinha. Escolheu uma data. Que tal terça-feira, 20 de maio?

Sandy concordou e anotou a data. Depois, contou a Karen, Bev e Robyn o que havia decidido. Pretendia contar a Emily também, mas queria fazê-lo pessoalmente, quando a filha voltasse de Austin. Emily e Felix chegaram a Ithaca em 13 de maio, e os pais disseram a ela que Sandy morreria na terça-feira seguinte. Emily entrou em pânico. Dali a uma semana? Tinha certeza de que era cedo demais.

Naquela mesma noite, sentou-se com os pais no sofá branco da ampla sala de estar em L, local de tantas conversas familiares sérias ao longo dos anos. Bev, Karen e Robyn também estavam lá. Emily, furiosa, disse que não tinha nada contra a ideia de Sandy pôr fim a sua vida em breve, mas precisava ser agora? Agora? Karen e Robyn tentaram explicar-lhe como Sandy havia mudado profundamente: quase nunca ria e parecia sentir pouco prazer em suas atividades e nas pessoas.

Emily discordou: aquela era uma maneira muito estreita de ver as coisas. Estavam todos supondo que a falta de alegria da mãe decorria do avanço da enfermidade. Para ela, contudo, tratava-se de depressão. O neurologista havia interrompido o Prozac havia pouco tempo, receitando-lhe Zyprexa, um antipsicótico. Talvez fosse apenas uma questão de ajustar a dose. Ou então trocar o remédio. Era questão de tempo entender o que estava provocando aquela alteração do humor de Sandy.

Mais perto do fim de semana, outra discussão teve lugar no sofá branco. Karen e Robyn queriam que Emily entendesse o quanto Sandy havia piorado durante o mês em que a filha estivera ausente. “Você não presenciou a cena”, disse Robyn. “Sua mãe, de pé na cozinha, parecendo meio perdida, virou para mim e disse: ‘Estou com fome. O que eu faço quando estou com fome?’”

E, ainda outro dia, Robyn prosseguiu, Emily estava na cozinha, conversando com a mãe e com Bev. Quando Emily saiu, Sandy se voltou para Bev e perguntou: “Quem é a mãe dessa pessoa?” Tentando não chorar, Bev respondeu: “É você.”

“Foi o que eu pensei”, disse Sandy. “Achei que talvez fosse eu.”



Emily agora compreendia que o estado de Sandy se deteriorava rapidamente. Karen organizou uma pequena reunião no domingo, 18 de maio, para celebrar a vida de Sandy. Era um encontro bastante íntimo: apenas Sandy, Daryl, Emily, Karen, Bev e Robyn. (Jeremy se mudara para o Oeste e continuava sem contatar a família, embora Sandy e Daryl tivessem lhe enviado uma mensagem de voz, a fim de avisá-lo da data da morte da mãe.)

O dia seguinte amanheceu quente e ensolarado, motivando o pequeno grupo familiar a fazer um passeio em Stewart Park, à beira do lago Cayuga. Era, todos sabiam, o último passeio conjunto. Julius empurrava o carrinho com Felix, Bev e seu companheiro seguiam logo ao lado; Emily vinha um pouco atrás, de mãos dadas com a mãe – coisa que não fazia desde a infância.

Quando pararam no playground para Felix brincar um pouco, Emily sentou-se com Sandy num banco próximo. Disse que compreendia por que a mãe sentia necessidade de pôr fim a sua vida agora. Falou com admiração da capacidade dela de encontrar o momento exato – nem muito cedo, nem muito tarde. “Acho que você acertou”, disse. Sandy havia permanecido em silêncio enquanto Emily falava, olhando a filha nos olhos. Seu alívio era profundo e evidente, mas tudo que disse antes de se abraçarem foi: “Fico muito feliz.”



Em seu último dia, cinco anos depois da primeira consulta com Mapstone, Sandy tratou de organizar os papéis que garantiriam que ninguém seria responsabilizado por sua morte. Encontrou uma cópia impressa de um e-mail cujo assunto era “FIM”, enviado a Daryl nove meses antes. O e-mail explicava por que ela queria morrer e dizia que ninguém – nem o médico, nem o advogado, nem ninguém mais – lhe oferecera auxílio ou conselho nesse sentido. Escrevera que, chegada a hora, acrescentaria a data da morte e “talvez mais algumas considerações”. Era outro modo de deixar claro que a morte havia sido decisão exclusivamente dela.

Chegada, pois, a hora, ela não tinha outras considerações a fazer. Todas as ideias que talvez tivesse querido expressar por escrito – as reflexões sofisticadas, os argumentos perspicazes, a base do pensamento convencional – já estavam fora do seu alcance. Pegou o e-mail impresso cujo assunto era “FIM” e nele escreveu: 20 de maio de 2014 – a data que vinha repetindo para si mesma desde o dia em que Daryl a anotara no calendário. Em seguida, acrescentou uma declaração simples: “Chegou a hora de pôr fim a minha vida. Eu te amo, Daryl.” Assinou formalmente: Sandra L. Bem. Depois, ela e Daryl foram caminhar pelo desfiladeiro de Fall Creek, um lugar de uma beleza áspera, 110 degraus de pedra abaixo do ruído da avenida Stewart.

Ao voltarem, Sandy e Daryl viram Mary Poppins. Emily, Bev e seus respectivos companheiros estavam reunidos na casa de Karen, que queria que Sandy se sentisse “rodeada por uma rede de amor” enquanto se preparava para morrer – ainda que tivesse de ser amor à distância, porque Sandy não queria ninguém com ela, a não ser Daryl.

Por volta das cinco e meia da tarde, ela tomou o remédio antináusea e serviu-se de um copo de vinho. Tinha lido que ingerir bebida alcoólica em seguida ao pentobarbital mascarava o gosto amargo e acelerava o efeito da substância. Em companhia de Daryl, subiu para o quarto com o copo de vinho, que depositou sobre o criado-mudo. Abriu o lacre de segurança do frasco de 100 ml de pentobarbital com uma tesourinha de unha e removeu a tampinha de borracha. Daryl a observava com a respiração suspensa, duvidando que fosse capaz de realizar sozinha todas aquelas tarefas. Mas ela conseguiu. Verteu o pentobarbital num copo, que dispôs ao lado do outro, com vinho.



“Eagora?”, ela perguntou. Daryl não sabia o que dizer. Calcularam que os preparativos levariam cerca de uma hora, mas haviam se passado meros quinze minutos. “Você já decidiu o que vai vestir?”, ele perguntou.

Sandy respondeu que estava satisfeita com a roupa que estava usando. Deitou-se e olhou para os dois copos no criado-mudo. Perguntou qual continha o quê. “A droga é clara, o vinho é vermelho”, Daryl respondeu.

Ela assentiu, olhou o quarto a sua volta e tornou a contemplar os dois copos. De novo, perguntou qual era a droga e qual o vinho. Daryl tornou a lhe dizer. “Posso tomar um gole da droga e, depois, um pouco de vinho?”, Sandy perguntou. “Não é uma boa ideia”, ele disse. “Você pode acabar adormecendo antes de beber tudo.”

“Está bem. Então vou virar tudo de uma vez”, ela disse, e foi o que fez. Daryl perguntou se o gosto era muito ruim. “Não”, ela disse. “É forte, mas não é amargo. Tudo bem.” Sandy depôs o copo e perguntou: “Quanto vinho preciso beber?” Daryl respondeu que ela podia beber quanto quisesse. Sandy tomou um gole.

“Preciso fazer xixi”, ela disse.

“Você não pode ir fazer xixi”, ele advertiu. “Tenho medo de que você pegue no sono.”

“Vem comigo?”, ela pediu.

E assim caminharam em direção ao banheiro. Daryl esperou do lado de fora enquanto sua mulher, à beira da morte, sentava no vaso.

Ajudou-a a voltar para a cama, e em cinco minutos ela estava inconsciente. Daryl observou-a por algum tempo, sem sentir nada em especial. E depois viriam as ligações para os bombeiros, para as autoridades que atestariam a morte, para a funerária, e ainda era preciso escrever a nota de falecimento, ressaltando as razões que a haviam levado a tomar aquela decisão. E só então ele se daria conta da realidade brutal de viver sem Sandy a seu lado. “Que presença poderosa a da sua ausência”, ele diria na cerimônia fúnebre naquele verão, citando um poema de Fred Chappell. “Os cômodos eram serenos quando ela morava aqui. Agora silenciam. É diferente.”

Naquele momento, Daryl apenas contemplava sua mulher inconsciente. Por volta de oito e meia da noite, ele telefonou a Karen, que morava ao lado. Bev chegou e sentou-se com ele à beira da cama de Sandy. Quietos, observavam o lençol subir e descer conforme ela respirava. Ao longo da hora seguinte, o ritmo das subidas e descidas foi ficando mais lento. E então cessou.


16 de outubro de 2015
ROBIN MARANTZ HENIG

ESCOLHENDO CHEFIAS INCOMPETENTES


Em um desses cursos de chefia comuns no serviço público, geralmente ministrados para pessoas que não querem aprender, por professores que não sabem ensinar, uma psicóloga distribuiu para cada um dos dez participantes um envelope contendo oito pedaços de cartolina recortados em formatos e tamanhos diversos.

Colocados nas posições certas, os recortes formariam quadrados, um para cada envelope. Na realidade, cinco envelopes continham sete pedaços de cartolina, e os outros cinco continham nove, pois um pedaço de cartolina havia sido previamente retirado de cinco envelopes, e cada um dos outros cinco recebeu um pedaço a mais.

Ao distribuir um envelope para cada participante, a psicóloga informou que “todos teriam de formar um quadrado” no menor tempo possível, e recomendou que mantivessem o silêncio. Suponho que o mais rápido ganharia pontos para eventuais promoções. Critério, aliás, que não me parece válido para esse efeito, pois a maior rapidez nessa tarefa se adquire com a ajuda de golpe de vista, memória, agilidade manual, experiência prévia – nenhuma se relaciona diretamente com a capacidade para dirigir. Do mesmo modo que a facilidade para marcar gols, por exemplo, pode indicar o melhor artilheiro, mas não necessariamente o melhor líder de uma equipe nem o melhor treinador.

Após receber o envelope, cada um examinou o conteúdo, e logo depois todos começaram a montar o quadrado. Nenhum conseguiu, pois o pedaço de cartolina que faltava para um estava com outro, e este outro tinha um pedaço sobrando. Todos dependiam de encontrar o parceiro adequado. Como você pode concluir, talvez o teste seja bom para definir quem deve se casar com quem, tendo em vista que muitas vezes os casais se atraem em função do que falta em um e sobra no outro. Poderia ser útil numa agência matrimonial, não para promoções a cargos de chefia.

No caso concreto, o teste só conseguiu identificar o mais afoito e mais apressado dos dez. De certa forma, serviu também para caracterizá-lo como quem menos entende uma ordem recebida, além de mostrá-lo como prejudicial à atividade dos outros e aproveitador dos recursos alheios em benefício próprio. Como se concluiu tudo isso? Não, caro leitor, ninguém concluiu assim naquela ocasião, e mesmo eu estou fazendo esta avaliação agora, enquanto escrevo.

Quando o apressadinho percebeu que só lhe faltava uma peça para completar o quadrado, concluiu que ela devia estar com um dos outros, e teria que localizá-lo. Como? Procurando entre as peças dos outros, é claro, mas não podiam conversar. Decidiu fazer sinais aos outros, convocando-os a colocar no chão todas as peças que tinham. Ninguém contestou, pois estavam todos empacados. Como esse “bom geral” lhes pareceu mais avançado no trabalho, o coleguismo mandava ajudá-lo.

Calcule o leitor a barafunda de setenta e três peças amontoadas no chão, além das sete do “bom geral”. Encontrar a peça “figurinha difícil” tornou-se para ele uma tarefa parecida com procurar uma agulha num monte de agulhas. Daí para diante ele passou a agir como barata tonta. Não progrediu nada, além de impedir que os outros progredissem. Argumentou depois que a instrução da psicóloga poderia ser entendida como “todos devem formar só um quadrado” (um quadradão único, portanto), e ele resolvera assumir a tarefa.

Você, caro leitor, concluiria que aquele apressadinho tinha qualidades de liderança? Que conseguiria levar adiante tarefas de equipe? Que deveria ser promovido ao primeiro cargo disponível? Na evidente suposição de que a sua conclusão coincide com a minha, vou informar-lhe que poucas semanas depois o apressadinho havia sido promovido. Ninguém lamentou, afinal ele era um “bom praça” e muito bem intencionado. Mas basta isso para chefiar, liderar, comandar?

A solução de um problema deve ser procurada pela própria pessoa que deparou com ele. Se não conseguir, deve recorrer à ajuda de quem está mais próximo – a família ou amigos, por exemplo. Se o problema atinge número maior de pessoas, e supera as capacidades da família, deve recorrer a organismos de maior amplitude, como a prefeitura. O governo do estado pode ser acionado quando a solução se torna impossível em níveis mais baixos. Só em último caso o assunto deve ser levado ao governo federal, ou mesmo a governos de outros países.

Resumindo: O que pode ser resolvido pelo inferior não deve ser atribuído ao superior nem assumido por ele. Norma sábia, lógica, adequada e muito prática, mas muito esquecida por governos centralizadores. Estes tendem a assumir os problemas de todos, mas de fato não os resolvem. Pelo contrário, para tapar alguns buracos eles criam problemas muito maiores, que passam à categoria de insolúveis.

Você acha que a psicóloga entendeu assim o resultado do teste? Triste ilusão.


16 de outubro de 2015
Jacinto Flecha, in agudas crônicas