quinta-feira, 2 de julho de 2015

SÓ PARA FUMANTES





Quantas palavras podem ser formadas com as oito letras de Marlboro? Mar, lobo, mal, lambo, bar, amor, bolor, rombo...

Sem ter sido um fumante precoce, a partir de certo momento minha história se confunde com a história de meus cigarros. Do meu período de aprendizado não guardo nenhuma lembrança nítida, salvo o primeiro cigarro que fumei, aos catorze ou quinze anos. Era um cigarro de fumo claro, marca Derby, que um colega me ofereceu na saída do colégio. Acendi-o muito assustado, à sombra de uma amoreira, e depois de dar algumas tragadas me senti tão mal que passei a tarde toda vomitando, e jurei a mim mesmo não repetir a experiência.

Juramento inútil, como tantos outros que se seguiram, já que, anos mais tarde, quando ingressei na faculdade, metros antes de atravessar o velho saguão já tinha riscado o fósforo e acendido o cigarro. Eram então os Chesterfield, cujo aroma adocicado guardo até hoje na memória. Um maço durava dois ou três dias, e para poder comprá-lo tinha que me privar de outros caprichos, pois naquela época vivia de bicos. Quando não tinha cigarros nem dinheiro para comprá-los, roubava-os do meu irmão. Ao menor descuido, já havia deslizado a mão na jaqueta dele, dependurada numa cadeira, e surrupiado um cigarro. Digo isso sem nenhuma vergonha porque ele fazia o mesmo comigo.

Ao subir de preço, os Chesterfield volatilizaram-se de minhas mãos e foram substituídos pelos Incas, escuros e nacionais. Aquele tabaco não devia ser muito bom, mas era o mais barato que se encontrava no mercado. Em algumas vendas, eram oferecidos em metades ou quartos de maço, em canudinhos de papel de seda. Dava vergonha tirar um desses canudinhos do bolso. Eu sempre tinha uma caixinha vazia, onde punha os cigarros comprados picado. Mesmo assim, os Incas eram um luxo, comparados a outros cigarros que fumei naquele tempo, quando minha necessidade de tabaco aumentou sem que o mesmo acontecesse com os meus recursos: um tio militar me trazia do quartel cigarros da tropa, amarrados, como se fossem fogos de artifício, produto repugnante, onde era possível encontrar pedaços de cortiça, farpas, palhas e uns raros fiapos de tabaco. Mas não me custavam nada, e se deixavam fumar.

Quando entrei na faculdade de direito, consegui um trabalho como horista para um advogado, e assim pude dispor de meios necessários para assegurar meu consumo de tabaco. O pobre Inca foi para o inferno, condenei-o à morte feito um vil conquistador e me pus a serviço de uma potência estrangeira. A voga então era o Lucky. A linda caixinha branca com um círculo vermelho era a minha preferida. Milhares desses maços passaram por minhas mãos, e nas volutas de seus cigarros estão contidos meus últimos anos de direito e meus primeiros exercícios literários.

Os escritores, de modo geral, têm sido e são fumantes. Mas é curioso que não tenham escrito livros sobre o vício do cigarro, como têm escrito sobre o jogo, a droga, o álcool. Onde estão o Dostoievski, o De Quincey ou o Malcolm Lowry do cigarro? A primeira referência literária ao tabaco que conheço data do século xvii, e figura no Don Juan de Molière. A obra começa com a frase: "Diga o que disser Aristóteles e toda a filosofia, não existe nada comparável ao tabaco... quem vive sem tabaco não merece viver". Ignoro se Molière era fumante - embora naquela época o tabaco fosse aspirado pelo nariz, ou mascado. Os grandes romancistas do século xix - Balzac, Dickens, Tolstói - ignoraram por completo o problema do tabagismo, e nenhuma de suas centenas de personagens, pelo que lembro, tiveram qualquer coisa a ver com o cigarro. Para encontrar referências literárias a esse vício é preciso chegar ao século xx. Na Montanha mágica, Thomas Mann põe estas palavras nos lábios de seu herói, Hans Castorp: "Não entendo como se pode viver sem fumar... Quando acordo, fico contente em saber que poderei fumar durante o dia, e quando como tenho o mesmo pensamento. Sim, posso dizer que sim, que como para poder fumar... Um dia sem tabaco seria o cúmulo do aborrecimento, seria para mim um dia absolutamente vazio e insípido e se, pela manhã, tivesse que dizer hoje não posso fumar, acho que não teria coragem de me levantar". A observação me parece muito penetrante e revela que Thomas Mann deve ter sido um fumante encarniçado, o que não o impediu de viver até os oitenta anos. Mas o único escritor que tratou do tema do cigarro extensamente, com uma agudeza e um humor insuperáveis, é Italo Svevo, que lhe dedica trinta páginas magistrais de seu romance A consciência de Zeno. Depois dele, não vejo nada digno de nota, a não ser uma frase no diário de André Gide, que também morreu octogenário e fumando: "Escrever é para mim um ato complementar ao prazer de fumar".

Em Paris as coisas ficaram pretas. Aconteceu que um dia não pude mais comprar cigarros, e tive de cometer um ato vil: vender meus livros. Eram apenas 200, ou algo assim, mas eram os de que eu mais gostava, aqueles que eu arrastara por países, trens e pensões durante anos, e que tinham sobrevivido a todos os avatares da minha vida vagabunda. Eu tinha ido largando por toda parte casacos, guarda-chuvas, sapatos e relógios, mas daqueles livros nunca quis me desprender. Suas páginas anotadas, sublinhadas ou manchadas con¬servavam as marcas de meu aprendizado literário e, de certa forma, de meu itinerário espiritual.
Bastou começar. Um dia eu disse a mim mesmo: "Este Valéry talvez valha um pacote de americanos de fumo claro", no que me enganei, já que o bouquiniste que o aceitou pagou-me apenas com o suficiente para comprar uns dois maços. Depois me desfiz dos meus Balzac, e cada um deles se transformava automaticamente no respectivo maço de Lucky. Meus poetas surrealistas me decepcionaram, pois não davam para mais do que um Players bri¬tânico. Um Ciro Alegría com dedicató¬ria, em que depositei muitas esperanças, só foi aceito porque de quebra acrescentei a ele o teatro de Tchekhov. Flaubert, fui soltando aos pouquinhos, o que me permitiu fumar durante uma semana os primitivos Gauloises. Mas a pior humilhação foi quando me animei a vender o último que me restava: dez exemplares de meu livro Los gallinazos sin plumas, que um bom amigo teve a coragem de editar em Lima. Quando o livreiro viu a tosca edição em espanhol, de autor desconhecido, esteve a ponto de jogá-la na minha cabeça. "Aqui a gente não recebe isso. Vá até a Gilbert, onde compram livros por peso." Foi o que fiz. Voltei para o hotel com um maço de Gitanes. Sentado na minha cama, acendi um cigarrinho e fiquei olhando para a minha estante vazia. Meus livros tinham literalmente virado fumaça.

Dias mais tarde, eu errava desesperadamente pelos cafés do Quartier Latin à procura de um cigarro. Tinha começado o verão, cruel verão. Todos os meus amigos ou conhecidos, por mais pobres que fossem, tinham abandonado a cidade, de carona, bicicleta ou como fosse, rumo ao campo ou às praias do sul. Paris parecia-me povoada de marcianos. Ao chegar a noite, com apenas um café no estômago e sem fumar, eu estava à beira da paranóia. Mais uma vez, recorri ao Boulevard Saint-Germain, começando pelo museu Cluny, em direção à Place de la Concorde. Em vez de inspecionar os terraços infestados de turistas, meus olhos tendiam a varrer o chão. Quem sabe! Talvez achasse uma nota jogada, uma moeda. Ou uma bituca. Vi algumas, mas estavam esmagadas ou molhadas, ou alguém passava naquele instante e um resto de dignidade me impedia de apanhá-las. Perto de meia-noite, eu estava na Place de la Concorde, ao pé do obelisco, cuja espigada figura não tinha para mim outro simbolismo que o de um gigantesco charuto. Hesitava entre prosseguir minha ronda até os grandes bulevares ou regressar derrotado ao meu hotelzinho da Rue de La Harpe. Aventurei-me pela Rue Royal, e vi sair do Maxim's um cavalheiro elegante, acendendo um cigarro na calçada e despachando o porteiro à procura de um táxi. Sem vacilar, me aproximei dele e, no meu francês mais correto, disse: "O senhor faria a gentileza de me oferecer um cigarro?". O cavalheiro deu um passo atrás, horrorizado, como se um monstro execrável e noturno irrompesse na ordem de sua existência, e, pedindo auxílio ao porteiro, esquivou-se e desapareceu no táxi que chegava.
Um fluxo de sangue subiu-me à cabeça, a tal ponto que temi desabar no chão. Como um sonâmbulo, voltei sobre meus passos, atravessei a praça, a ponte, cheguei até o calçadão à beira do Sena. Apoiado no parapeito, olhei para as águas escuras do rio e chorei copiosa, silenciosamente, de raiva, de vergonha, feito uma mulher qualquer.

Prossegui minha vida errante por diferentes cidades, albergues e ocupações, deixando em todo lugar espirais de fumaça e bitucas esmagadas, até que fui parar novamente em Paris, num apartamento de três cômodos, onde pude reunir uma coleção de sessenta cinzeiros. Não por mania de colecionador, mas para ter sempre à mão algo onde jogar bitucas e cinzas. Tinha adotado então o Marlboro, pois essa marca, que não era melhor nem pior do que as muitas que já tinha provado, sugeriu-me uma brincadeira gramatical que praticava assiduamente. Quantas palavras podiam ser formadas com as oito letras de Marlboro? Mar, lobo, mal, lambo, bar, lombo, amor, bolor, rombo, orar, bolo etc. Tornei-me invencível no jogo, que impus entre meus colegas da Agência France Presse, onde trabalhava na época. Essa agência, vou dizer de passagem, era não só uma fábrica de notícias, mas também o empório do tabagismo. Por meio de estatísticas, eu sabia que a profissão mais dada ao tabaco era a de jornalista. E pude verificá-lo mais tarde, já que as salas de redação, a qualquer hora do dia ou da noite, eram antros espaçosos onde dezenas de homens teclavam desesperadamente em suas máquinas de escrever, sugando sem descanso charutos, cachimbos e cigarros de todas as marcas, em meio a uma espessa bruma nicotínica, a ponto de eu me perguntar se estavam reunidos ali para redigir as notícias ou para fumar.

Foi precisamente na era do Marlboro e do meu trabalho na agência que me arrebentei. Não é meu propósito estabelecer uma relação de causa e efeito entre essa marca de cigarros e o que me aconteceu. A verdade é que uma tarde caí na minha cama e comecei a morrer, para grande alarme da minha mulher (pois enquanto isso, além de fumar, tinha me casado e tido um filho). Minha velha úlcera estomacal perfurou e uma hemorragia inestancável ia me evacuando do mundo pela via inferior. Uma ambulância de sirene estridente levou-me em estado de coma até o hospital, e graças a transfusões de sangue maciças pude voltar a mim. Isso é horrível e não exagero nos detalhes para não cair no patético. O dr. Dupont cicatrizou a minha úlcera em duas semanas de tratamento e me deu alta com a recomendação expressa - além dos remédios e do regime alimentar - de não mais fumar.

Não mais fumar! Inocente dr. Dupont. Ignorava com que tipo de paciente tinha topado. Dois meses mais tarde, incorporado mais uma vez ao meu trabalho na agência de notícias, entre centenas de raivosos fumantes, eu atirava no cesto todo dia um par de caixinhas de Marlboro vazias. M-a-r-l-b-o-r-o. Minha brincadeira gramatical enriqueceu: broma, rolar, rabo, ramo, borla etc. Isso pode ter graça, mas assim como encontrei novas palavras, tive novas hemorragias, e novas ambulâncias foram me levando ao hospital, entre apitos e sirenes, para me deixar exangue diante dos olhos horripilados do dr. Dupont. A ambulância se transformou, de certa forma, em meu meio normal de locomoção. O dr. Dupont me entregava em casa sempre recauchutado, depois de eu jurar que deixaria o cigarro, e ele ameaçando renunciar da próxima vez aos paliativos e me enfiar a faca sem contemplações. Ameaça que me deixava impávido, e a melhor prova disso é que na quarta ou quinta entrada no hospital me dei conta de que para fumar não era necessário que me dessem alta: bastava subornar uma enfermeirinha para que ela comprasse um maço. De Marlboro, naturalmente: orla, robalo, borra, rolo etc. Eu tinha escondido no guarda-roupa, dentro de um sapato. Duas ou três vezes ao dia, tirava um cigarro, fechava-me no banheiro, dava várias tragadas frenéticas e lançava os restos na privada.

A faca do dr. Dupont foi a minha espada de Dâmocles, com a diferença que comigo ela caiu. Isso aconteceu anos mais tarde, quando o Marlboro e seu estúpido jogo de palavras - bar, broa, lar, ralo, rabo etc. - tinha sido substituído pelo Dunhill, em seu lindo estojo bordô com friso dourado. Encontrava-me então em Cannes, seguindo um novo tratamento para me libertar do tabaco, após uma última temporada no hospital. O dr. Dupont tinha decretado distração, esportes e repouso, receita que minha mulher, transformada na mais zelosa guardiã de minha saúde e extirpadora do vício, se encarregou de aplicar e controlar escrupulosamente. Ocupava minhas jornadas no jogging matinal, banhos de sol e de mar, longa sesta, remo em bote de borracha e bicicleta crepuscular. Isso tudo alternado com refeições saudáveis e atividades espirituais, embora moderadas, como jogar paciência, ler romances de espionagem e ver novelas na televisão. Esse calendário não deixava nenhuma fissura por onde pudesse se infiltrar um cigarro, tanto mais que minha mulher não me abandonava nem de dia, nem de noite. Em um mês eu estava bronzeado, fornido, saudável e até bonito, eu diria. Mas no fundo, bem no fundo, sentia-me insatisfeito, desassossegado, por momentos incrivelmente triste. De nada servia perceber melhor a pureza do ar marinho, o aroma das flores e o sabor das comidas, se a própria existência tinha se tornado insípida.

Um dia não agüentei mais. Convenci minha mulher de que dali em diante iria para a praia uma hora antes que ela e meu filho, para aproveitar melhor os benefícios daquela vida saudável e recreativa. No trajeto comprei uma caixinha de Dunhill, e como era arriscado conservá-la comigo ou escondê-la em casa, procurei um canto afastado na praia, onde fiz um buraco, guardei-a, cobri com areia e pus em cima, à maneira de sinal, uma pedra ovalada. Então, de manhãzinha, saía de casa com passo de ginasta, sob o olhar espantado de minha mulher, que observava da sacada, orgulhosa de minha disposição atlética, sem suspeitar que o objetivo dessa corrida não era melhorar minha forma nem bater nenhum recorde, mas chegar ao buraco na areia o quanto antes. Desenterrava meu pacote e fumava uns dois cigarros, lenta, concentrada, angustiosamente até, porque sabia que seriam os únicos do dia. Esse estratagema, reconheço, pôde servir para meu prazer e para afagar minha engenhosidade, mas me rebaixara em minha própria consideração, uma vez que tinha consciência de estar violentando minhas promessas e traindo a confiança da minha mulher. Além disso, o meu plano não ficou isento de imprevistos, como naquela manhã em que cheguei ao meu reduto e não achei a pedra oval. O empregado que era encarregado de passar o rastelo na praia para limpá-la tinha sido substituído por outro, mais diligente, que não deixou uma só pedrinha na areia. Por mais que escavasse por todo lado, não achei minha caixinha. Decidi então comprar cinco maços e fazer cinco buracos, marcados com cinco sinais, abrindo cinco probabilidades para a minha paixão.

Aqui entramos na parte mais dramática do assunto, com a reaparição do dr. Dupont, suas sondas e sermões, e sobretudo sua faca premonitória. Mal ou bem, apesar de minhas doenças e problemas ligados com o abuso do tabaco, cheguei a conviver com eles e seguir em frente, como se diz, e de quebra seguir dando tragadas uma atrás da outra. Até que fui vítima de uma doença que nunca tinha conhecido: a comida ficava engasgada na garganta e eu não conseguia engolir coisa alguma. Isso se tornou tão freqüente que fui ver o dr. Dupont, mas dessa vez não de ambulância, só para variar. Dupont alarmou-se muitíssimo, esperou no hospital para me submeter a novos exames e, em poucos dias, sem explicações claras, eu rodava numa maca, rumo à sala de operações. Acordei sete horas depois, cortado feito uma vaca e costurado como uma boneca de pano. Tubos, sondas e agulhas saíam por todos os orifícios do meu corpo. Tinham tirado parte do duodeno, quase todo o estômago e um bom pedaço do esôfago.

Estava morrendo, ou melhor, "me extinguindo docemente", como diriam as enfermeiras. A cada dia, perdia alguns gramas e ficava mais cansado em ter que me submeter à prova de pesagem. O chefe da clínica veio me ver e ordenou, como última medida, que eu fosse alimentado à força. Enfiaram-me uma sonda de borracha pelo nariz e, por meio dela, através de um êmbolo enorme, dispararam alimentos moídos no meu estômago. A sonda tinha que ser conservada de forma permanente, com sua ponta visível grudada na testa com um esparadrapo. Era tão terrível que depois de dois dias arranquei-a e joguei-a no chão. O chefe da clínica voltou para me passar um sermão, e como resisti a que tornassem a colocá-la, retirou-se, despeitado, dizendo antes de sair: "Não ligo a mínima. Mas daqui você não sai até não aumentar de peso. Toda a responsabilidade é sua".

Não voltei a ver aquele imbecil, mas vi uns seres peludos, sujos e descamisados que foram surgindo por trás dos arbustos que eu enxergava da cama, através dos amplos janelões. Atrás desses arbustos, estavam construindo um novo pavilhão, e como já tinham erguido o primeiro andar, os operários e seus trabalhos eram visíveis do meu quarto. Pela pele citrina, deduzi que vinham de lugares quentes e pobres, de Andaluzia, do sul de Portugal, da África do Norte. O que primeiro me surpreendeu foi a celeridade e a variedade de seus movimentos. Apareciam e desapareciam subindo com tijolos, sacos de cimento, baldes d'água, ferramentas de carpintaria, num vaivém contínuo, que não conhecia tropeços nem improvisações. Imaginei o esforço que faziam e, por uma espécie de substituição mental, senti-me terrivelmente cansado, a ponto de baixar as persianas da janela. Mas ao meio-dia voltei a abri-las e comprovei que aqueles homens, que eu supunha curvados pelo cansaço, estavam sentados em círculo sobre o telhado, rindo, interpelando-se, comunicando-se com gestos largos. Era a pausa para o almoço, e eles engoliam com avidez os alimentos que tinham tirado de marmitas e sacolas de plástico, e bebiam garrafas de vinho no gargalo.

Aqueles homens eram aparentemente felizes. E eram ao menos por uma razão: porque encarnavam o mundo dos sãos, enquanto nós, o mundo dos doentes. Senti então algo que raras vezes tinha sentido, inveja, e pensei que de nada serviam quinze ou vinte anos de leitura e escrita, recluso como estava, entre moribundos, enquanto aqueles homens simples e iletrados estavam solidamente implantados na vida, da qual recebiam os prazeres mais elementares. Minha inveja redobrou quando, depois do almoço, fiquei vendo-os puxar maços, bocetas de fumo, papel de enrolar, e acenderem seus cigarros de sobremesa.

Essa visão me salvou. Foi a partir daquele momento que estalou em mim a chispa que mobilizou toda a minha inteligência e a minha vontade de sair da prostração e, conseqüentemente, da minha reclusão. Não desejava outra coisa senão me reintegrar à vida, por mais ordinária que fosse, sem outra ambição senão poder, como aqueles operários, comer, beber, fumar e desfrutar das recompensas de um homem comum e sadio. Para isso, era imperioso vencer a prova da balança, mas como fosse impossível comer naquele lugar e aquela comida, recorri a um estratagema. Cada manhã, antes da pesagem, enfiava nos bolsos do pijama algumas moedas de um franco. Progressivamente, fui acrescentando moedas de cinco francos, as maiores e mais pesadas, que trocava com o entregador de jornais. Consegui assim aumentar algumas centenas de gramas, o que ainda não era suficiente, nem probatório.

Pedi então à minha mulher que trouxesse de casa um jogo completo de talheres, alegando que com eles talvez pudesse me alimentar melhor do que com os toscos talheres da clínica. Eram os sólidos e caros talheres de prata que minha mulher tinha adquirido num momento de delírio, apesar da minha oposição, e que agora, desviados de sua finalidade, tornavam-se realmente preciosos. Como não podia escondê-los nos bolsos, fui colocando-os nas meias, a começar pela colherinha de café, até chegar na colher de sopa. Uma semana depois, tinha ganhado dois quilos, e mais ainda quando costurei os talheres de peixe nas cuecas. As enfermeiras estavam espantadas com a recuperação, que não combinava com minha aparência. Um galeno me fez uma visita, revisou meus boletins de pesagem, examinou-me, interrogou-me, e dias depois a direção emitiu a autorização de partida. Horas antes que minha mulher viesse me buscar num táxi, eu já estava de pé, vestido, olhando uma vez mais pela janela para os operários ágeis, lépidos, aéreos, e diria angelicais, que terminavam de erguer o segundo andar daquele novo pavilhão dos condenados.

Não preciso dizer que uma semana depois de sair da clínica eu podia me alimentar moderadamente, mas com apetite; após um mês, bebia um copo de vinho tinto nas refeições; e um pouco mais tarde, ao celebrar meu quadragésimo aniversário, acendi meu primeiro cigarro, com a aquiescência de minha mulher e o indulgente aplauso dos amigos.

Acendo outro cigarro e penso que já é hora de botar um ponto final neste relato, cuja escrita tem me custado tantas horas de trabalho, e tantos cigarros. Não é minha intenção tirar dele uma conclusão, nem uma moral. Que seja tomado como um elogio ou uma diatribe contra o tabaco, para mim dá no mesmo. Vejo com apreensão que só me resta um cigarro, de modo que digo adeus a meus leitores e vou em busca de mais um maço.



02 de julho de 2015
Julio Ramón Ribeyro

UM REGISTRO DE MINHA PASSAGEM PELA TERRA




Nasci no ano da febre amarela. No meu décimo segundo aniversário, ouvi a voz de Deus e me pus a ordenar o mundo


22 de dezembro de 1938, meia-noite, acompanhado por 7 anjos em nuvens especiais com forma de esteira, me deixaram na casa nas profundezas dos muros. Rua São Clemente.número 301.Botafogo.Rio de Janeiro, eu sozinho com uma lança na mão.

Nasci em 1911. Em 1911 teve febre amarela no Leblon. Em 1911 o monge José Maria começou a pregar a Bíblia Sagrada no Paraná, um homem tocou no Pólo Sul, o reino de Machu Picchu foi descoberto. Em 1911 tinha navios, não meus navios, mas vapores com mastros como cigarros à distância. Registrei 1911 com 19 cigarros e 3 garfos de 4 dentes, 1 dente quebrado. Envolvi-os com linha azul.

Em Sergipe, onde nasci, lavadeiras estendiam roupas nas margens dos rios para secar. Elas secam depressa, ficam rígidas, você sacode elas antes de dobrar, elas Estalam, um dos 4 sons das roupas. Quando eu era marinheiro, nada secava. Em Sergipe, onde nasci, existem Casas de Barro.Cactos.Esqueletos.Bodes Magérrimos.Abutres Voando em Círculos.

Item. Bandeira, bordada em cinco cores. Azul.Vermelho.Verde.Preto.Azul-claro. Imagens da vida na Marinha. Imagens de bicicletas. 14 bicicletas, todas bordadas. Registro de coisas que vi em 50 anos. Descrições da vida na Colônia Juliano Moreira. Notadamente ausente o nome de Rosângela Maria (Estagiária). É um trabalho antigo, antes dela.

Item. Escultura. Como eu faria um muro na beira de minha casa. Eu estilhaçaria vidro e fincaria os fragmentos, pontas para cima, no concreto. É preciso proteger a casa dos loucos e dos vendedores.

Item. Coleção de Botões. Qual a cor da minha expressão?

No ano da febre amarela nasci em Sergipe. Em Sergipe, passei meu Primeiro.Segundo.Terceiro. Terceiro.Quarto.Sexto.Quinto.Nono.Décimo segundo.Décimo quinto aniversário. No meu Décimo sexto aniversário, na Capela de Nossa Senhora das Lágrimas, ouvi a voz de Deus, e junto à voz de Seus anjos, doce e suave como a dama no Rio que vem vender pastel na Colônia, a preta que me deu pentes e botões no dia em que vim pro portão em meu multicolorido Manto de Apresentação. Naquele dia, eu disse, já ouvi sua voz antes. Ela disse, Como? A gente nem se conhece. Eu disse, Não, nos conhecemos muito tempo atrás. Ela esperou, pensou no que falar, disse, Onde, filho? Respondi, Na Capela de Nossa Senhora das Lágrimas. Ela fez o sinal-da-cruz. Nunca conte isto para ninguém. Ela ainda me visita. Manda botões e clipes. Encontro eles espalhados pelo pátio em lugares espertos e estratégicos.

No meu décimo sexto aniversário, Deus disse, És meu Servo. Olhei por toda parte, mas havia apenas minha mãe rezando.o padre rezando. dois outros.ninguém mais.

Item. Janela de Sandálias e Peneiras. 3 peneiras. 20 sandálias. 9 com tiras. 11 sandálias sem tiras. Aqui registro em 1 janela as 9 maneiras como o homem caminha em direção às coisas e as 11 maneiras como ele foge.

Lembrança. Na igrejinha de Nossa Senhora das Lágrimas estava Minha Mãe.também Luísa Silva Carvalho.também Nelson Rodrigues do Nascimento. Tinha um Jesus de gesso com uma mão quebrada e a própria Nossa Senhora. Disseram que ela estava chorando, mas seu rosto foi polido pelos dedos dos desesperados. Diziam em Sergipe, Toca nos seus olhos que ela chorará por você. Havia 4 bancos de igreja.2 portas.uma vespa voando alto nas vigas. Deus disse, Arthur, És meu servo. Sua voz estava muito alta. Olhei em volta. Pensei, Ninguém mais ouve isto.

Quando eu tinha 16 anos, Sua voz veio do canavial. Ele disse, És meu Profeta. Ele disse, Coloca 7 pedaços de cana na areia, ordena do menor para o maior. Obedeci. Depois ele disse, Corta 6 pedaços e ordena do mais azul ao mais amarelo. Obedeci. Mais tarde, o capataz os encontrou. Ele disse, Você está tentando roubar. Eu disse, Não. Ele disse, Então apanha a cana. Eu disse, Não, não posso. Os anjos me mandaram separar e classificar a cana. Ele disse, Filho, eu mandei você pegá-las. Eu estava chorando. Eu queria dizer Sim e pegá-las, eu sabia que ia dar problema, mas não consegui me mexer. Ele agarrou meus ombros. Não debocha de mim, ele disse. Eu quis dizer, Desculpe, não estou debochando. Mas, de algum lugar, uma voz disse, Fui mandado aqui para pôr ordem no mundo. Ele deve ter pensado que veio de mim, porque levantou o punho, e fugi correndo.


Item. Sem título. Uma coleção de chapéus de palha deixados por visitantes da Colônia Juliano Moreira, chamada por alguns de asilo de loucos, onde moro com 7 000 outros, onde banhos gelados.confinamentos.eletrochoques.lobotomias.praxiterapia são ministrados pela equipe.

Do meu quarto no asilo, consigo ver o pátio, onde os outros pacientes caminham.

Alguns estão muito doentes. Teve épocas que estive assim, falando, falando e não tinha ninguém ali. Não lembro muita coisa dessa época. Não lembro o que disse, somente que era urgente e importante.

No início, eu arrancava a linha da minha roupa para fazer meu bordado. A cada dia meus trabalhos ficavam mais bonitos e a cada dia minhas roupas ficavam menores. Por isso costuro principalmente em azul. Azul não é a cor de minha expressão. Azul é a cor das calças e roupas de cama dadas aos pacientes.internos.malucos.prisioneiros na Colônia Juliano Moreira, e era a única linha que eu tinha antes que eles começassem a chamar minha organização do mundo de "arte" e as pessoas começassem a me trazer sucata e outros itens de utilidade.

Às vezes eu costurava tanto, as idéias vindo tão rápido, que no fim sobrava apenas uma manga de camisa. Eu a usava lá fora, para perambular com os outros pacientes nus, que arrancavam as roupas porque pensavam que fossem camisas-de-força.abelhas zumbindo.fogo. Levava horas até o pessoal vir me apanhar. Levaram anos para perceber que eu andava nu somente por necessidade de meu trabalho, que se eu tivesse materiais amplos e apropriados, de boa vontade conservaria minhas roupas de cama.

Aqueles foram os dias mais lindos, escondido atrás das plantas abandonadas do jardim, deitado com pedrinhas colocadas ao redor da minha cabeça como uma auréola, no pátio não varrido com o calor do sol do Rio no meu pênis e na minha barriga.

Item. Bandeiras de navios. 18 navios que vi durante minha passagem pela terra. Incluindo destróier.encouraçado.marinha mercante.vapor. 18 portos, incluindo Rio.Bahia.Santos.Nova York Estados Unidos.Cidade do Panamá.Fortaleza.Natal. Uma lista de homens e suas profissões, começando pelos quatro empregos que Arthur Bispo do Rosário teve. Marinheiro.Lutador de boxe.Funcionário da LightIndústriaBrasileira.Messias.Médico.Enfermeiro.Policial. Ilustrações dessas profissões. Ilustrações de dezesseis insígnias da Marinha. Ilustração de uma bicicleta.tambor.ferro.artigos domésticos. Eu represento Nações e suas bandeiras.

Em Sergipe, de onde vim, fugi do capataz para dentro do canavial. Parei. Não ouvi quaisquer vozes, somente minha respiração ofegante. Ouvi, Arthur. Ouvi, Tudo está muito errado, não existe ordem. Eu disse, Onde você está escondido? Não consigo ver. Aquilo disse, Não estou escondido. Pare de brincar comigo, eu disse, Está me deixando louco, vou perder meu emprego. Aquilo disse, Todos temos um fardo. Pare de falar de forma esquisita, gritei, Mostre de onde está falando, ou de tanto bater transformarei você em polpa. Arthur, olha para a moita. Tinha uma moita de caatingueiro, e quando sacudi seus galhos, um pedaço de madeira se desprendeu com a forma de Nossa Senhora. Apanhei-o, eu estava tremendo. Esperei para ouvir mais alguma coisa, mas nada ouvi. Em casa, coloquei-o sobre a minha cama. Minha mãe perguntou, Que pau é este? Seu pecado, algo me fez dizer, e ela me olhou preocupada. Colocou a mão na minha testa. Ela disse, Você abandonou a plantação. O safado do capataz ia me bater, respondi. O capataz é seu tio, você não sabe? Ele veio porque está preocupado. Vi sua boca se mexendo, mas um grande estrondo ecoou nos meus ouvidos.

Item. Nomes de mulheres. Josefa.Luísa.Ana (Estagiária).Lourdes.Conceição dos Santos (Médica).Eugênia (Enfermeira).Izabel.Maria.Mercedes.Rosângela Maria (Estagiária).Escritos em círculos dentro de meu Manto de Apresentação com linha azul. 343 nomes, todos bordados em azul. Ponto em cruz. É o que usarei no dia em que jejuar e ficar mirrado e me tornar transparente, para aparecer diante de Deus com minhas criações. É um dos vários trabalhos que incluem Nomes de Mulheres. É o mais importante, com o nome de Rosângela Maria (Estagiária), que me ajudou a começar o projeto da organização das almas e das emoções do homem.

Ela disse, Arthur, dê meia-volta. É um manto muito bonito. Você estará radiante quando o dia chegar.

Com 7 anjos fugi de Sergipe, fugi de minha mãe, fugi com Nossa Senhora no bolso. Fui até o mar e caminhei pela areia e dentro da água, um dois três passos na superfície de luz cintilante, e aí perdi o equilíbrio e me encontrei nas ondas. Um pescador me viu de pé sozinho com água arrebentando acima dos meus joelhos e roupas molhadas. Ele disse, Você parece Jesus saído do deserto. Perguntou de onde eu vinha, mas não respondi. Eu estava organizando as ondas por seus tamanhos e cores e pelo ângulo em relação ao céu e à praia. Ele dependurou uma rede para mim. Ele disse, Dorme. Amanhã vou procurar alguma coisa para você. No meio da noite, acordei. Tinha uma criança de pé me observando. Tocou nos meus pés, e eu não tinha o que dizer e voltei a dormir. De manhã, a criança sumira, e não perguntei nada ao homem. Eu estava aprendendo que podia ver coisas que os outros não podiam. Ele me levou até o porto. Um capitão disse, Este rapaz nasceu para ser marinheiro. Perguntei, Qual a cor da minha expressão? O capitão pareceu intrigado, mas o pescador respondeu, Verde. Como o mar, eu disse.

Item. Nomes de 232 marinheiros, entre eles Recruta Antônio Nunes.Recruta Luiz Eduardo dos Santos.Recruta Severino Matoso.229 outros, inscritos na bandeira intitulada Vida de um Marinheiro, por Arthur Bispo do Rosário, data desconhecida.

Navegamos até a Arábia. Ali caminhei entre mulheres veladas e homens com turbantes ao vento. De volta ao Rio de Janeiro, bordei roupas para eles, com capuzes e mangas compridas e mantos. Bispo está fazendo roupas para gigantes, as enfermeiras sussurraram, e tive paciência com elas, pois não haviam visto o mundo. Certa vez no Cairo, vi um homem de pé no alto de uma torre cantando, e cataloguei aquele canto entre o uivo e a prece, abaixo do Maracatu, cantado pelas crianças no Sergipe, e acima do vento navegando sobre areia.

Em minhas viagens através do mar, classifiquei e organizei as nuvens. Criei três categorias, Nuvens em forma de navios, Nuvens que chovem, e Outras. De Natal a Lisboa, classifiquei-as pela velocidade com que se moviam, por Nuvens que lançam sombras e Nuvens evitadas por aves marinhas. Classifiquei a qualidade da luz na água em cinco tipos: Verde-Azul.Branco.Vidro.Verde.Outros. Organizei, após várias viagens, a agitação dos ventos nas velas. Havia 14 emoções experimentadas pelos marinheiros no navio, 11 experimentadas por mim. Não experimentei Erotismo.Raiva.Medo. Aquela foi minha primeira tentativa de classificar algo que não se consegue ver. Foi um projeto difícil. Foi antes de eu conhecer Rosângela Maria (Estagiária), mas no final fiquei satisfeito.

Cloral hidrato.haloperidol.pentobarbital.thioridazine.fluphenazine. Se fossem pílulas, eu escondia no alto da bochecha e cuspia no jardim como titica de passarinho sob uma árvore logo bem tranqüilizada. Se fossem injeções, eu berrava, agarrando-me a lembranças do mar, esperando passar as nuvens.
Sentei-me com o médico. Ele disse, Bispo, você foi marinheiro. Eu disse, Fui marinheiro.lutador de boxe.funcionário da LightIndústriaBrasileira. Ele disse, Quando você se tornou marinheiro? Respondi, Em 3 de outubro de 1928, comemorei a data numa Janela de taças de estanho, 10 taças.3 cordões. 1 mais 9 10 taças. 27 sombras projetadas dependendo da luz do dia. Ele disse, Mas você só tinha 17 anos. Sim, 17. E estava na Marinha havia quanto tempo? 12 anos. E durante quanto tempo você foi lutador de boxe? 2 anos. E por quanto tempo foi funcionário da Light? 6 anos. E quando veio para a Colônia, Arthur, diga novamente, sou novo aqui. 22 de dezembro de 1938, meia-noite, acompanhado por 7 anjos, eu com a lança na mão. Ele disse, Não estou entendendo a matemática. Você viveu 20 anos num período em que homens normais vivem apenas 10. Eu estava pensando, Como era possível isso! Ele disse, Arthur, quero falar sobre o motivo de você deixar a Marinha. Eu disse, Não preciso falar, posso mostrar minhas bandeiras, está tudo registrado lá, fui um grande marinheiro. Ele disse, A Marinha informou que você vivia brigando, vivia metido em confusão, não quero contrariar você, mas parte de sua terapia é entender o que é verdade e o que não é. Eu disse, Naveguei para Lisboa.Tânger.Cairo.Roma.Natal.Trípoli.Lisboa. Arthur, você sabe muita coisa sobre navios. Eu disse, Conheço destróieres.encouraçados.clíperes.veleiros.vapores. Você quer dizer que trabalhou nas docas e viu esses navios? Eu naveguei nesses navios, vi aves marinhas.baleias. golfinhos.ondas, Olhe a Bandeira Dois. Conheço a Bandeira Dois, é uma obra de arte maravilhosa. Não é Arte, é um Registro de minha Passagem pela Terra, é um Inventário do Que Vi. Arthur, é um inventário do que você imaginou. Vi atrás dele as sombras dos galhos da árvore. Notei quatro tipos de sombras, sombras feitas pelo homem.galhos.folhas-não-tremulando.folhas-tremulando. Ele estava falando, mas eu não tinha mais tempo para ele. Aquilo tinha de ser registrado.

Item. Bandeiras de navios 2. Embarcações em que naveguei na Marinha. Nações e suas características. Espanha.Portugal.Marrocos.Brasil.Cenas da Vida Diária na Escola Naval.Equitação.Tiro ao alvo.Calistenia.Refeições.Banda Marchando.Bandeiras do Mundo.


Fugi do meu navio quando estava no porto do Rio. Desembarquei com os marinheiros, e eles me levaram a um pequeno bar com música (samba.Josephine Baker.choro). Beberam cerveja.cachaça.água.uísque. Na parede centenas de garrafas. Dançaram com moças com batom.vestidos com babados.perfume.cabelos cacheados. Fiz um inventário das garrafas de cachaça. Tinha Bons Tempos.Consolo de Corno.Índio Apaixonado.Esquece Tuas Mágoas.Mulher Fogosa. Bebi água, depois cachaça. Quando o mundo estava rodando, colocaram minha mão na mão de uma moça, e ela me levou até um quarto com uma lâmpada vermelha.fotos de revista de mulheres.lençóis sujos.estante(copo vazio.Nossa Senhora das Dores.flores de plástico.livro com lombada rasgada). Ela disse, Você não é normal. Eu não disse nada. Estava ocupado catalogando suas dores. Tinha Abandono.Solidão.Amor.Violência, ela as exibia no rosto. Ela me tocou. Eu não disse nada.esperei.observei-a se mexendo, um movimento entre um navio no mar e a grama balançando, acima do choro e abaixo do riso.

Fugi. Eu havia terminado meu inventário da superfície do mar, e meu trabalho em terra firme me aguardava. Eu morava num casebre de madeira na praia. Cataloguei as conchas e seus sons, e mudei para a cidade, onde dormia em portões e observava as pessoas que passavam, uma tarefa imensa para um homem só. Na cidade, as pessoas me ignoravam.me jogavam moedas.atravessavam a rua para me evitar. Eu não me importava, tinha coisas demais para fazer. Certa vez, perto da igreja da Candelária, observei um homem bebendo café. Ele pagou um cafezinho para mim. Sentei-me e contei sobre o mar, e ele me fitou com um sorriso. Ele disse, Você parece forte. Eu disse, Eu sou, estive em Lisboa.Tânger.Cairo. Ele disse, Você luta boxe? Eu disse, Na Marinha, lutei com muitos homens. Ele disse, Você ganhava? Pensei, pensei, mas não me lembrei. Ele disse, 50 mil réis por uma luta. Você pode ser um astro. 50 mil réis, pensei. Eu poderia comprar roupas limpas,querosene para matar os piolhos.comida.cadernos. Poderia expandir à beça o Inventário se tivesse cadernos! Na minha mente não cabia mais nada, eu tinha de repetir repetir o Registro, sussurrava palavras que provocavam olhares preocupados nas pessoas estranhas.

Ele me levou para um depósito. Esperei, registrando o giro de um ventilador. À noite chegaram homens. Eles fizeram um círculo. No centro do círculo havia outro homem com cabelos compridos.roupas sujas.conversando.zangado. Eles me empurraram para o meio do círculo. Estavam berrando, mas eu não conseguia ouvir. Estava ocupado demais fazendo um inventário de seus rostos, Crueldade.Desespero.Ganância, quando o homem de cabelos compridos me bateu e eu bati nele e bati nele e bati de novo. A multidão ficou boquiaberta, eu registrei Euforia.Emoção. Removeram o homem do chão. Volte amanhã, disse o homem do cafezinho. Ele pôs as moedas na minha mão.

Item. Roupas de cama. Bordadas. Presenteadas a Rosângela Maria (Estagiária), que corou mas não contou.

Em meus cadernos registrei as ocorrências na cidade e minha passagem por ela. De noite, eu batia em homens como eu, Negros.Pobres.Trabalhadores.Malucos, e eles batiam em mim. Se eu vencesse, ganhava 50 mil réis. Se eu perdesse, ficava com 0 mil réis. Certa vez um homem me bateu com um anel, e a cor de minha expressão foi vermelha. Fugi. De noite, meu olho estava inchado, meu corpo estava cheio de febre.calor.tremores.quenteefrio. Tirei a roupa. Fui até o mar para afogar a febre, para dormir, para ir embora. Sonhei com a moça de batom.babados.cabelos cacheados e acordei na areia com uma ereção causada pelo sol quente e uma mulher lá perto gritando. Ouvi, Pervertido, senti botas em mim, depois ouvi, Olha os olhos dele. Cataloguei os diferentes passos e seus sons na areia ao se afastarem e voltarem e me pegarem num lençol e me carregarem.levarem de carro.atirarem num quarto, onde por três dias tremi e tentei gritar mais alto que anjos que me diziam que eu estava faltando ao meu trabalho, O mundo está passando por você. Depois vieram e me bateram.me chutaram.cuspiram em mim até que eu parasse de gritar. O inchaço no meu olho sumiu. Removi uma gosma amarela do olho e pude enxergar. Os anjos vieram e disseram, Você tem um trabalho por realizar, você está esquecendo seu dever para com Deus. Gritei, Me deixem sozinho. Sussurrei, Por favor, por favor, me deixem sozinho, por favor, eles nunca me soltarão se vocês ficarem falando. Os anjos entenderam. Os homens vieram e me bateram outra vez, e eu não gritei, e no dia seguinte abriram a porta da rua.luz brilhante, e imediatamente comecei a fazer um inventário dos Carros que passavam e não queriam parar.

Na Juliano Moreira, estou em pé diante de um espelho. Vejo meu paletó, suas faixas.botões.linha. Vejo o quarto.porta aberta.sombras lá fora. Não consigo ver-me, sou invisível. É um paletó maravilhoso, com muitos detalhes.

Os outros conseguem me ver. Sei o que vêem, registrei seus murmúrios. Eles vêem cabelos sujos.dentes amarelados.pés com unhas amarelas. Viram isso em Sergipe.Lisboa.Rio. Não tenho tempo para suas vaidades.

Rosângela Maria (Estagiária) olha e diz, Vejo um rei. É um paletó magnífico. Eu digo, Sou invisível. Você é, ela diz, o homem invisível mais bonito do Brasil. Do mundo, eu a corrijo, virando para ver as costas do manto, eu represento o mundo.

Item. Utensílios de Cozinha.Copos de Plástico.Pratos de Plástico.Bandejas de Plástico. Todos usados por internos.pacientes da Colônia Juliano Moreira. Parte da Série de Janelas sobre a Vida Diária.

Era verão, estava mais quente. Terminei um Catálogo dos Transportes Diários. Deus me disse que eu podia descansar. Eu esmolava nas esquinas das ruas e ajudava a carregar engradados. Fiquei longe da Candelária e do homem do café com seus 50 mil réis. Tomava banho no mar e comprei roupas brancas. No Carnaval dancei com uma moça negra escura, coberta de plumas, até que a multidão a afastou de mim. Voltei ao bar à procura da moça com batom.babados, mas ela não estava lá, só outra parecida com ela. Aquela pediu dinheiro antecipado. Eu tinha moedas, deitei-me do lado dela na cama durante uma hora até ela dizer, Você não vai fazer nada comigo? Na estante, a imagem de Nossa Senhora das Dores tinha sido substituída por uma imagem de Padre Cícero do Juazeiro, que também ouve as palavras de Deus. Ela abaixou a alça nos ombros dela, deixou que eu pusesse as mãos ali. Estavam mornos. Deixei minhas mãos repousarem sobre seus ombros mornos, e pensei, Oh, não, agora Deus vai pedir um registro de tipos diferentes de calor, mas os anjos estavam quietos, talvez estivessem gozando o Carnaval, também. Ela perguntou, Isto é tudo? Não respondi. Oquei, ela disse, cada um na sua, você não é o primeiro maluco que vejo. Só não peça seu dinheiro de volta.

Eu juntava moedas carregando engradados para os navios. Trabalhava a noite inteira e recebia o pagamento de dois homens. Aluguei um quarto. Comprei um lençol que dobrei e usei como cama, nunca dormi em nada tão macio na vida. O quarto tinha vista para um muro e uma árvore com mil sombras. Eu apanhava pedras no mar e colocava sobre o chão. Organizei-as por tamanho, e por cor, por ângulos e pela presença de saliências e sulcos. Certa vez, estava sentado diante do prédio e vi um homem chegar e abrir a caixa de fios. Conversei com ele. O que você faz? Eletricidade, ele disse, e vi o desafio e as possibilidades. Ouvi murmúrios, e segui-o até a LightIndústriaBrasileira, responsável pela iluminação e eletricidade da nação do Brasil.
Aqui observo 12 espécies de Calor, Lençóis.Sol.Madeira Queimando.Papel Queimando.Jaqueta.Verão.Fogão.Feijoa-da.Chá.Areia.Pedras.Ombros. Pense em como representar isso num bordado com linha azul.

Na Light, o homem na portaria me examinou. Ele viu um homem forte com camisa branca. Ele disse, Que tipo de trabalho você faz? Temi que os anjos estragassem tudo, mas ficaram calados. Eu disse, Gosto de usar as mãos.

Ele me levou até uma mesa. Seu primeiro trabalho, ele disse, apanhando um punhado de cores, Essas são aparas de arame que queremos reutilizar, preciso que você as separe.

Item. Notícias Diárias. Aqui coleto as notícias importantes da época:

Cidade de Teresina - Estado do Piauí - Maria Antônia Pereira da Silva, 22 anos, matou sua amiga com duas facadas no peito - A Vítima foi Maria de Jesus do Nascimento - 26 anos - Horas antes havia roubado uma galinha.
Monica Pereira Dutra - 15 anos - desapareceu de sua casa na Rua Neripi, 303 - Jornal - 17 de dezembro de 1988.
Matou sua Patroa para Roubá-la - Jurema Rangel Pereira - As vítimas foram Onovalda de Souza Manso e José Barreira Manso - corpos enterrados na fazenda - Jornal - 30 de julho de 1986.

Também incluídos na exposição: nomes coletados de jornais (16 Sandras, de Sandra Cristina a Sandra Teixeira, também os nomes Jeane.Solange), aumentando muito meu registro. Optei por listá-los a caneta, reservo meus mantos para os Nomes de Pessoas que Eu Conheci.
O médico disse, Bispo, se você está registrando a história, está omitindo o lançamento do homem no espaço, as eleições de presidentes. Você escreve somente as histórias de moças pobres Mortas.Desaparecidas.Perdidas. Esta pergunta não mereceu nenhuma resposta. Eu estava com pressa. Meu quarto estava se enchendo de jornais, e restava pouco tempo para ordenar os nomes.

Na LightIndústriaBrasileira, classifiquei os fios por comprimento. No final do dia, o supervisor apareceu. Ele riu, Não, meu amigo, por cores, eu devia ter explicado. Pensei, Por Cores? Claro que não! Mas nada disse. Aquele era um novo começo para mim, e os anjos estavam calados e amáveis. Permaneci de noite, e de manhã havia ordenado a minha mesa e a mesa do lado. Ele olhou para mim como uma coisa engraçada, e disse, Bem, Bispo, meu bom homem, devo estar com sorte. Difícil encontrar tal iniciativa num homem da sua idade.

Depois ele disse, Bispo, precisamos dessas lâmpadas de rua encaixotadas. Devem chegar a Fortaleza no final da semana, para iluminar o parque da cidade. É uma tarefa importante. Preciso delas embaladas pela Qualidade das Sombras Que Projetam.

Virei a noite trabalhando. Acendi uma por uma, fiquei no raio de luz, observei minha sombra. Classifiquei-as por Lâmpada Que Aumentava Minha Silhueta.Lâmpada Que Diminuía Minha Silhueta.Lâmpada Que Borrava Minha Silhueta nas Bordas, Lâmpada Que Projetava Minha Sombra com Forma de Animais ou Mulheres. Na manhã seguinte, ele perguntou, Bispo, que é isto? Respondi, Classifiquei as lâmpadas. Ele disse, As caixas estão cheias de lâmpadas com watts diferentes. Lembra-se do que pedi? Eu disse, Pediu para classificar as lâmpadas pela Qualidade das Sombras Que Projetam. Ele olhou para mim, viu Bispo Resmungando.Sacudindo a Cabeça.Discutindo Acaloradamente. Os sussurros retornaram, e eles me mandaram embora.

Na Colônia, subo pra cima do muro e fico ali até eles me mandarem descer. Vejo do alto do muro o Rio.montanhas.prédios.céu. Quando cheguei, subi no mesmo muro, vi o Rio.montanhas.céu. Vi os prédios subirem. Vi construírem arranha-céus.hotéis.apartamentos. Usavam cimento.vidro.fome. Cresceram rápido. São as casas de homens de negócios.turistas.políticos.brancos. Vi favelas crescerem. O que você acha que eu estava desenhando quando costurei mil pedaços de pano?

Item 2. 2 facas.pratos.fichas telefônicas.2 dúzias de páginas de jornais diários.2 anos passados com Rosângela Maria (Estagiária) estudando.trabalhando.sorrindo na Juliano Moreira.

Item. Acontecimentos na vida do Artista. Observe, a fuga de Sergipe. Observe, a vida no mar. Observe, fuga para o Rio, da LightIndústria. Observe a chegada na casa com os muros altos na noite de 22 de dezembro de 1938.

Item. Obras dedicadas a Rosângela Maria (Estagiária), que não riu quando dei para ela, que corou mas não se importou quando eu disse coisas que não pretendia.

Ela disse, Arthur, você consegue me costurar um vestido, um vestido fantástico, um vestido para as mulheres das Arábias? Consegue fazer um castelo para mim?

Aquilo no dia em que ela chegou, e a cor de minha expressão mudou.

Em meio às Paredes Brancas.Assoalhos Brancos, comecei com lixo. Agradeci a Deus por me trazer a este lugar sem distrações, este lugar de Paredes Brancas. Naqueles primeiros dias tinha Médicos e Enfermeiras, e vinham para mim com diagnósticos e seringas que geralmente me deixavam sonolento, mas eu continuava ouvindo: O Tempo está Se Esgotando. Eu queria repousar, mas Ele não deixava. Comecei com Madeira de caixas do mercado.Lixo de pilhas de lixo.Tecido dos lençóis. Registrava Ferramentas Diárias enrolando-as na linha azul de minhas roupas. Como eu trabalhava, não havia gritos, nem ameaças. Foram dias felizes, com freqüente nudez. O pessoal parecia aflito, mas alguns começaram a observar minhas representações. Eles disseram, Bispo, o que é isto? Seguraram a faca que envolvi com linha azul, a Faca da Múmia, na qual eu incluíra o rótulo Faca. Ficaram perplexos com minhas respostas, eu sei, mas começaram a trazer botões.madeira.pentes.bonecas.

Outros vieram. Talvez você tenha me visto no programa de TV Fantástico na matéria sobre o asilo de loucos. Estou lá no fundo, trabalhando em minhas representações. Talvez você as tenha visto, no Museu, em 1982. Eu vi fotos. No Museu havia uma placa. Estava escrito: Imagens dos Loucos. Eles debateram: isto é Arte ou Brincadeira de Criança? Será o louco um artista? Isto é Terapêutico? Eu não fui ao Museu, em 1982. Eles disseram, Vem, Arthur, mas eu estava ocupado com os planos do meu Manto da Apresentação, eu não tinha tempo.

Não respondo a perguntas. Não me importo com mentes menores. Não tenho tempo. Mesmo as pessoas de bem, que chegam e observam, estão erradas. Eu digo a elas, Isto não é Arte, é um Registro, gostaria de parar, não sou um Artista, mas um Servo de Deus, um Deus que resmunga e uiva para mim quando atraso meu trabalho para falar com críticos de arte e repórteres.

Os Médicos e as Enfermeiras são pessoas com Esposas.Maridos.Bebês.Casas. Não quero nada disso. Tenho muito que fazer.

Item. Mapa da Colônia Juliano Moreira. Item. Bandeira. Nomes de homens e suas profissões.

Item. Janela. Ferramentas usadas em jardins.

Item. Janela. Nomes de Ruas. Alguns envolvidos em linha azul.

Item. Palavras que começam com L, 12a de uma série de 26.

Itens, incompletas. Um registro de pensamentos que pensei. De palavras que ouvi.

Item. Bandeira. Vistas do Rio do alto do muro da Colônia Juliano Moreira, onde às vezes me sento.

Rosângela Maria (Estagiária) disse, Arthur, aqui está um livro, um Atlas do Mundo. Encontrei no mercado de pulgas na Liberdade. Esconde embaixo da cama. Você sabe que eles pegarão o livro se descobrirem com você.

Com o Atlas do Mundo, completei,

Item, Misses. 24 bandeiras, Representações das Mulheres Bonitas e seus Países, inspiradas na transmissão da TV Globo, agosto de 1983. Miss Rússia. Miss Israel.Miss França.Miss China.Miss Austrália.Miss Canadá.Miss Japão.Miss Brasil. Cada bandeira com características de uma nação e suas mulheres, Geográficas. Econômicas.Históricas. 24 tipos diferentes de Beleza Feminina. Bordadas com linhas de 6 cores, todas trazidas para mim por Rosângela Maria (Estagiária). 200 cm x 50 cm, cada uma presa a um mastro de mesmo comprimento, cada mastro envolto em linha azul. Na TV, Miss Espanha vence. Mas, na verdade, Rosângela Maria (Estagiária.Bonita) vence. Ela e eu sabemos.

Rosângela Maria (Estagiária) tinha Olhos Castanhos.Cabelos Castanhos.Cabelos Cacheados. Suas mãos eram macias como feltro novo. Toquei-as uma vez, uma só vez. Ela sentou-se ao lado de uma Representação. Ela perguntou, O que é isto? e falei sobre meu Lar.Mãe.Uivo. Ela apontou e perguntou, O que é isto? Contei sobre a Marinha, contei sobre Bispo lutador de boxe, contei sobre a LightIndústriaBrasileira. Tentei certa vez dar um beijo nela, mas ela contou que tinha medo. Deixei que fosse embora. Gritei gritei comigo, Como você foi fazer isso! Ela não vai voltar! mas voltou sim. Ela disse esquecida, perdoada. Rindo.
Eu tinha 75 anos. Perguntei, Quantos anos você tem? Rosângela Maria (Estagiária) riu e disse, Adivinha. Eu disse, 14, 73, 64. Ela riu de novo e disse, Não seja um matemático, Arthur. Faço 27 anos na próxima quinta-feira.

Item. Registro de itens pertencentes a Rosângela Maria (Estagiária), dados ao Artista entre 1981 e 1983, Pente com Mecha de Cabelo.Espelho de Mão. Disco.Boneca.Duas jarras contendo os fragmentos de duas cartas. Uma intitulada Adeus, Arthur, Uma intitulada Marido.Bebê.São Paulo. Esta com fragmentos de uma foto rasgada.

Eu disse, Talvez eu já tenha idade suficiente para sossegar. Ela disse, Acho que você registrou tudo. Eu disse, Acho que meu trabalho está quase pronto.
Ela disse, Você devia começar de novo. Eu disse, Como do zero. Ela disse, Como um menino novamente.
Eu disse, Não estou mais tão ocupado. Ela disse, Você tem tempo. O que você mais deseja? Você tem o mundo, Arthur. Eu disse, Esposa.Marido.Bebê.Amigo.Casa.
Ela se calou. Uma calma surgiu em seu rosto. Nele vi Tristeza.Dor.Alegria.Amor.Conclusão.


02 de julho de 2015
Daniel Mason

HÁBITOS E ATITUDES





Crescer não significa só aprender. É preciso que os conhecimentos transformem-se em atitudes. E muitas vezes isso não acontece porque não queremos abandonar velhos comportamentos. Faz tanto tempo que convivemos com eles que parece que fazem parte de nossa identidade, de nossa natureza.

No entanto, pensamentos, sentimentos e atitudes são como roupas: estão em você mas não são você. Se já não servem mais, abandone-os e procure ideias novas que lhe tragam os resultados desejados. Você tem de ser dono de seus pensamentos, e não escravo deles.

Os maiores escravizadores dos seres humanos são:

1. Os hábitos – aquela frase “Eu sempre fui assim” condena você a continuar sempre assim. Você sempre foi assim porque o ensinaram a ser assim. Então, escolha ser de outra maneira e vai descobrir que, aos poucos, estará agindo de modo diferente. Não seja escravo do passado. Se tiver de ser escravo, seja escravo dos seus sonhos.

2. A autoimagem – a maneira como você se vê impede você de ser você mesmo. Quando alguém diz “Eu sou assim”, não consegue descobrir que é muito maior do que sua imagem. Quando alguém diz “Eu sou tímido”, não consegue deixar de ser tímido. Não crie rótulos para você. Rótulos são bons para refrigerantes. Você é muito mais do que uma marca de refrigerante. Preste atenção em você e descubra-se maior do que os seus rótulos.

3. A opinião dos outros – há muita gente que sempre muda de caminho porque quer agradar a todo o mundo. Escolha seus orientadores e mantenha a sua rota. Você tem de confiar em você, mesmo que ninguém confie. Esteja sempre pronto a reavaliar a sua estratégia, mas não deixe os outros pilotarem o barco da sua vida.

Para mudar nossa mentalidade e nossas atitudes, é preciso que estejamos dispostos a enfrentar o desconhecido. E é frequentemente aí que começam os problemas, porque, mesmo enfrentando dificuldades, as pessoas preferem dizer: “Eu sempre fiz assim e sempre funcionou!”.

Só que o “sempre foi assim” é uma ilusão e, na maioria das vezes, a desculpa para não evoluir. Os campeões adoram o desafio de fazer diferente, têm prazer em ser diferentes, são fascinados pelo pensar diferente, porque sabem que os desafios os obrigam a crescer.

Enquanto isso, os perdedores dizem que “Já está bom”. E ficam parados no mesmo lugar. Para os perdedores, a acomodação é fácil. Para os campeões, é uma sentença de morte.

Comprometa-se com o que você se propõe, pois assim terá forças para as mudanças que forem necessárias. Mais importante do que o desejo de mudar é o comprometimento com a mudança.



02 de julho de 2015
By Roberto Shinyashiki, em seu livro “A revolução dos Campeões”.

REDE SOCIAL É O C*#%$@ !


Você faz parte de uma rede Social ou Anti-social?

Está afim de compartilhar coisas, pensamentos, reflexões e atitudes, ou quer cagar regra sobre o comportamento alheio?

Veja bem, se você vai à um boteco, encontrará diversos tipos de pessoas: das falantes, das fofoqueiras, dos calados, dos tímidos, dos políticos, dos night clubbers, e etc eternamente. É óbvio que num boteco, não dá para conhecer uma pessoa como numa rede social, onde acabamos por saber aquilo que "faz a sua cabeça". Por vezes, num bate papo de botequim temos um leve vislumbre sobre quem é aquele ser humano. Numa rede social, não.

Mas então, você troca figurinhas e adiciona o indivíduo ao Facebook, por exemplo. Com o tempo, descobre que ele ou ela é "superficial", político, tem uma religião que bebe sangue de bichos e louva seu deus plantando bananeira, fuma cigarro de orégano, vive pelado, come mosca, #fodaseoqueelefaz............

E daí, cria-se aquela putidão interior por aquele ser humano ser do jeito que ele é? WTF????



Orasporra! Para quê, você está numa rede sociaaaal?

Para todo mundo ser igualzinho à você?
Para corresponder às suas expectativas pessoais de mundo perfeito, quando nem mesmo você as corresponde?
Para só falar o que você gosta de ouvir?
Só postar foto que te agrada?
Você quer que a pessoa reduza a própria expressão pessoal, para que você se sinta confortável no seu mundinho-julgador-de-merda?

Fala sério! Ou tu acha que só você é inteligente, interessante e posta coisas legais?
Então cria aí vários fakes e se adiciona, porra!

O nome chama R E D E S O C I A L, porque cada um dispõe de uma timeline, pessoal e intransferível, onde tem o direito de postar a merda que fizer a própria cabeça.

Da mesma forma, existem botões de bloqueio e exclusão para atualizações que não fazem a nossa cabeça. Agora, achar que as pessoas tem que mudar porque, eu ou você, não gostamos do que publicam? O nome disso é ditadura.

Seria absurdamente sem graça, só ter pessoais "legais" na minha timeline. É claro, tem umas que são pentelhas pra caramba e me reservo o direito de não tê-las como "amigos", o mesmo direito está aberto a todos nós.

Não seria legal, observar o jeito como o outro é? Quanto mais aceitamos os outros, do jeito que são, mais aceitamos a nós mesmos, até porque tá todo mundo no mesmo balaio de gato e somos - mesmo que você não queria aceitar -, espelhos uns dos outros.

A globalização está aí para isso: cada um ter a sua expressão, e por meio dela vamos crescendo e nos transformando.

A terra é composta de uma infinidade culturas, conhecer e interagir com elas, é super produtivo. Cada pessoa é um universo pessoal único.

Não curtir um e outro, dar uma limpada na timeline de vez enquanto é maneiro, agora rotular deus e o mundo, só me diz o quanto você não aceita a sua própria expressão.



02 de julho de 2015
Monik Ornellas

GALEANO




O medo ameaça:
se você ama, terá Aids.
Se fuma, terá câncer.
Se respira, terá contaminação.
Se bebe, terá acidentes.
Se come, terá colesterol.
Se fala, terá desemprego.
Se caminha, terá violência.
Se pensa, terá angústia.
Se duvida, terá loucura.
Se sente, terá solidão.


Eduardo Galeano


02 de julho de 2015

LIBERTAÇÃO


"Benditos os que conseguem se deixar em paz. Os que não se cobram por não terem cumprido suas resoluções, que não se culpam por terem falhado, não se torturam por terem sido contraditórios, não se punem por não terem sido perfeitos. Apenas fazem o melhor que podem. Se é para ser mestre em alguma coisa, então que sejamos mestres em nos libertar da patrulha do pensamento. De querer se adequar à sociedade e ao mesmo tempo ser livre."


Marta Medeiros
02 de julho de 2015

PÉROLAS AOS POUCOS



Uma experiência extraordinária para testar a nossa capacidade de reação ao belo: botar um virtuose para tocar no metrô



Ele desceu do metrô na estação L'Enfant Plaza e encostou-se numa parede ao lado de uma cesta de lixo. Por quase todos os critérios, era um sujeito que não chamava a atenção: um homem branco, mais ou menos jovem, vestindo jeans, camiseta de manga comprida e boné do time de beisebol Washington Nationals. De uma caixa, ele tirou o violino. Deixando a caixa aberta no chão, na frente dos pés, teve o cuidado de plantar ali algumas notas de 1 dólar, e várias moedas, para atrair mais dinheiro. Girou o corpo, para ficar de frente para o fluxo dos pedestres e começou a tocar.

Eram 7h51 da manhã, da sexta-feira, 12 de janeiro, hora do rush matinal. Ao longo dos 43 minutos seguintes, enquanto o violinista executava seis peças clássicas, 1.097 pessoas passaram à sua frente. Quase todos estavam a caminho do trabalho que, no caso da grande maioria, era um emprego público. A L'Enfant Plaza fica no núcleo da área de Washington ocupada pela administração federal, e ali transitam burocratas de nível médio, com os seus títulos um tanto indeterminados e estranhamente intercambiáveis: analista de projeto, gerente de iniciativa, programador de orçamento, especialista, consultor, supervisor.

Cada um dos passantes precisava fazer uma escolha rápida, uma escolha habitual para os usuários do transporte coletivo em qualquer área urbana, onde artistas de rua fazem parte da paisagem: parar e escutar? Acelerar o passo com uma mistura de culpa e irritação, incomodado com a inesperada demanda feita ao seu tempo e dinheiro? Jogar 1 dólar na caixa aberta, só por educação? E a sua decisão muda, se o músico for muito ruim? E se for muito bom? Temos tempo para a beleza? Não devíamos ter? Qual é a matemática moral desse momento?

Naquela sexta-feira de janeiro, essas questões particulares seriam respondidas de maneira incomumente pública. Ninguém sabia, mas aquele tocador de violino, de pé junto à parede nua, na galeria subterrânea de acesso à estação do metrô, perto do alto da escada rolante, era um dos melhores instrumentistas eruditos do mundo, executando algumas das mais elegantes peças musicais jamais escritas, num dos violinos mais valiosos jamais fabricados por mãos humanas. A apresentação foi encomendada pelo Washington Post como uma experiência em matéria de contexto, percepção e prioridade - além de servir para uma avaliação inapelável do gosto do público: num cenário banal e numa hora inconveniente, a beleza conseguiria transcender?

O instrumentista não executou melodias populares cuja familiaridade, por si mesma, bastasse para atrair o interesse dos passantes. O teste era outro. Apresentou obras-primas que resistiram aos séculos apenas pelo seu brilho, música sublime condizente com a imponência das catedrais e das grandes salas de concerto.

A acústica se mostrou surpreendentemente favorável. Embora a galeria tenha sido construída com fins utilitários, para servir como área de passagem entre a escada rolante do metrô e as calçadas do lado de fora, de alguma forma ela conseguia capturar o som do violino, para espalhá-lo redondo, rico em ressonâncias. Muito já se disse sobre a semelhança entre o violino e a voz humana. Nas mãos de mestre daquele instrumentista, ele soluçava, ria e cantava - sublime, lamentoso, importuno, adorador, volúvel, implacável, brincalhão, apaixonado, alegre, triunfal, suntuoso.

E então, o que vocês acham que aconteceu?

Fizemos esta pergunta a Leonard Slatkin, diretor musical da National Symphony Orchestra. O que ele achava que ocorreria, hipoteticamente, se um dos maiores violinistas do mundo começasse a tocar incógnito para uma platéia de mais ou menos mil passantes, na hora do rush?

"Vamos supor", respondeu Slatkin, "que ele não seja reconhecido, e que todo mundo ache que ele é mesmo só um músico de rua... Ainda assim, se ele for realmente muito bom, não vai passar despercebido. Juntaria um público maior na Europa, é verdade, mas... está bem, das mil pessoas, o meu palpite é de que umas 35 ou 40 reconheceriam a qualidade do que estavam escutando. E que, talvez, de 75 a 100 parassem para passar mais algum tempo ouvindo."

Quer dizer que iria juntar gente?

"Ah, claro."

E quanto dinheiro ele conseguiria recolher?

"Uns 150 dólares."

Obrigado, maestro. Mas na verdade não estamos falando de um caso hipotético. Aconteceu realmente.

"E os meus palpites, passaram perto? E quem era o músico?"

Joshua Bell.

"Não!!!"

Ex-menino prodígio, aos 39 anos Joshua Bell é um virtuose internacionalmente consagrado. Três dias antes de se apresentar na estação do metrô, Bell enchera o majestoso Symphony Hall de Boston, onde assentos apenas razoáveis foram vendidos por 100 dólares. Duas semanas mais tarde, no Music Center de Strathmore, em North Bethesda, ele tocaria para uma platéia lotada e dominada por tamanho respeito pela sua arte que sufocava a tosse até nas pausas entre os movimentos. Mas naquela sexta-feira de janeiro, Joshua Bell era apenas mais um pedinte, competindo pela atenção de passantes apressados, a caminho do trabalho.

A idéia tinha sido apresentada a Bell pela primeira vez pouco antes do Natal, em torno de um café numa lanchonete da área do Capitólio. Natural de Nova York, ele estava em Washington para se apresentar na Biblioteca do Congresso e visitar os cofres da biblioteca, a fim de examinar um tesouro fora do comum: um violino do século xviii que pertencera ao virtuose e compositor austríaco Fritz Kreisler. Os curadores convidaram Bell a tocar aquele violino; e o som ainda estava ótimo.

"Eu acho o seguinte", disse Bell, tomando um gole do seu café.
"Acho que eu podia fazer uma turnê, tocando a música de Kreisler..."

Sorriu.

"... no próprio violino dele."

Uma idéia brilhante, extraordinária - parte inspiração e parte truque publicitário -, típica de Bell, que nunca se furtou ao desempenho de showman ao mesmo tempo em que a sua carreira de concertista ia se tornando mais e mais soberba. Tocou como solista à frente das melhores orquestras americanas e estrangeiras, mas também fez aparições em Vila Sésamo, em talk-shows de fim denoite e em filmes de longa-metragem. Era Bell quem tocava na trilha sonora do filme O Violino Vermelho, de 1998. (E também aparecia em pessoa, tocando para uma Greta Scacchi nua.) Quando o compositor John Corigliano recebeu o Oscar de Melhor Trilha Sonora Original para o filme, agradeceu a Bell que, disse ele, "toca como um deus".

Quando perguntamos a Bell se ele aceitava tocar na hora do rush, vestindo roupas comuns, ele perguntou: "Como um dublê?". Bem, sim. Um dublê.

"Uma idéia divertida", disse ele.

Bell é alto e bonito, tem uma bela estampa e, no palco, a estampa pega fogo. Quando se apresenta, geralmente é o único homem debaixo das luzes que não está de gravata branca nem de casaca - ele vem até a boca de cena para receber a ovação em pé da platéia com roupas que lembram o Zorro, calças pretas e uma camisa, também preta, para fora das calças. Seu belo penteado, ao estilo descuidado dos Beatles, também é um dos seus fortes. Por ter uma técnica cheia de corpo - atlética e passional - ele quase dança com o instrumento, o que faz voar seus cabelos.

Ele é solteiro e heterossexual, um fato que não passa despercebido por parte das suas fãs. Em Boston, enquanto Bell executava o duríssimo Concerto para Violino em Sol Menor de Max Bruch, as poucas jovens presentes na platéia quase desapareciam, em meio a um mar de cabeças prateadas. Mas aparentemente todas elas - uma especial seleção de jovens bonitas - aglomeravam-se junto à porta de saída dos artistas depois do espetáculo, esperando por um autógrafo. E é sempre assim.

Bell vem recebendo os elogios mais exagerados desde a puberdade: a revista Interview publicou, certa vez, que a maneira como ele toca "consegue comunicar aos seres humanos nada menos do que a razão por que eles se dão ao trabalho de estar vivos". E aprendeu a aceitar essas homenagens com elegância, uma reverência tímida, e bufando de leve.

Para participar da sua apresentação anônima, Bell só impôs uma condição. O evento lhe foi descrito como um teste para descobrir se, num contexto incongruente, as pessoas comuns seriam capazes de reconhecer a genialidade. Sua condição: "Não me sinto bem de ver vocês falando em gênio e genialidade". Para Bell, 'gênio' é uma palavra usada em excesso; pode ser aplicada a alguns dos compositores cuja música ele toca, mas não a ele próprio. Seu talento é amplamente interpretativo, disse ele, e dar a entender coisa diferente seria impróprio e impreciso.

Não será um desrespeito às regras, porém, lembrar que o termo em questão, especialmente da maneira como é aplicado no campo da música, sempre se refere a um certo brilho congênito - um talento inato, acima do normal, que numa fração da humanidade se manifesta cedo e, muitas vezes, de maneira dramática.

Um fato biográfico intrigante acerca de Bell é que ele recebeu as suas primeiras aulas de música aos 4 anos de idade, em Bloomington, Indiana. Seus pais, ambos psicólogos, decidiram que algum aprendizado formal podia ser uma boa idéia depois de verem que a criança tinha prendido elásticos de borracha aos puxadores das gavetas da cômoda e vinha replicando melodias clássicas de ouvido, empurrando e puxando as gavetas para mudar as notas.

Para ir do seu hotel ao metrô, uma distância de três quarteirões, Bell tomou um táxi. Não que seja preguiçoso ou tenha alguma dificuldade de locomoção. Foi pelo seu violino.

Bell sempre se apresenta com o mesmo instrumento, e desistiu de usar algum outro na ocasião. Chamado de Gibson ex-Huberman, foi feito à mão, em 1713, por Antonio Stradivari, durante o "período de ouro" do mestre italiano, perto do final da sua carreira. Foi, quando Stradivari teve acesso aos melhores cortes de madeira de espruce, bordo e salgueiro, e quando sua técnica fora refinada à perfeição.

"O nosso conhecimento da acústica ainda é incompleto", disse Bell, "mas ele, de alguma forma, sabia tudo."

Bell nunca menciona Stradivari pelo nome. Só como "ele". Quando mostra seu instrumento a alguém, segura-o com grande cuidado pelo braço, apoiando-o num dos joelhos. "Ele fabricou cada parte deste instrumento com a espessura perfeita", diz Bell, fazendo o violino girar. "Se você retirasse com a plaina mais 1 milímetro de madeira em qualquer ponto, o som ficaria totalmente desequilibrado." Ainda hoje, não existem violinos que soem melhor que os de Stradivari feitos na década de 1710.

A frente do violino de Bell está em condição quase perfeita, com uma cor e um brilho profundos e ricos. As costas estão maltratadas, com o acabamento vermelho-escuro manchado de um tom mais claro, numa certa área, deixando a madeira exposta.

"O acabamento deste violino nunca foi refeito", diz Bell. "Ainda está com o verniz original. Muita gente atribui certos aspectos do som ao verniz. Cada fabricante tinha a sua fórmula secreta." Dizem que Stradivari fabricava o seu com um coquetel, cuidadosamente balanceado, de mel, clara de ovo e goma arábica extraída de árvores subsaarianas.

Como o instrumento do filme O Violino Vermelho, o de Bell tem um passado de mistério e peripécias. Foi roubado duas vezes do seu ilustre proprietário anterior, o virtuose polonês Bronislaw Huberman. A primeira vez, em 1919, desapareceu do quarto de hotel de Huberman, em Viena, mas foi devolvido pouco depois. Da segunda vez, quase vinte anos depois, foi furtado do seu camarim no Carnegie Hall. E ele nunca tornou a ver o violino. Foi só em 1985 que o ladrão - um violinista menor de Nova York - confessou o roubo à mulher no leito de morte, e apresentou o instrumento.

Bell comprou o violino poucos anos atrás. Precisou vender o Stradivari que já possuía e obter boa parte do resto do dinheiro por meio de um empréstimo.Dizem que o preço foi 3,5 milhões de dólares.

Foi esse o motivo pelo qual, no frio do começo da manhã daquele dia de janeiro, Joshua Bell tomou um táxi para percorrer três quarteirões até a Linha Laranja do metrô de Washington, e de lá andar uma estação até a L'Enfant.

Em matéria de estações de metrô, a L'Enfant é das mais plebéias. Antes mesmo de chegar a ela, já se vê que não é muito respeitada. Os condutores do metrô nunca conseguem pronunciar seu nome direito ao microfone. "Leifã", "Lafã", "Elefante"...

No alto da escada rolante ficam uma banca de engraxate e um quiosque muito movimentado, que vende jornais, bilhetes de loteria e tem uma parede inteira de revistas. As revistas de mulher pelada têm muita saída, mas quem mais recebe gente é o ponto-de-venda de bilhetes de loteria, e os fregueses formam fila para a Loto diária de seis números. Bem ao lado fica uma máquina para conferir os resultados, pela qual você pode passar o seu bilhete depois do sorteio para ver se foi sorteado. Aos pés do aparelho, uma triste pilha de papéis amassados.

Naquela sexta-feira, as pessoas que faziam fila na loteria para tentar ganhar alguma coisa iam tirar a sorte grande - uma entrada gratuita e de primeira fila para o concerto de um dos músicos mais famosos do mundo.Mas só se eles tivessem condições de se dar conta disso.

Bell decidiu começar a apresentação com a Chaconne da Partita No. 2 em Ré Menor de Johann Sebastian Bach. Para ele, a Chaconne não é só "umas das músicas mais lindas jamais escritas, mas uma das maiores obras humanas. É uma peça de grande força espiritual, poderosa do ponto de vista emocional e estruturalmente perfeita. Além disso, foi escrita para violino solo, de maneira que não vou apelar com alguma transcrição feita nas coxas".

E Bell não disse, mas a Chaconne de Bach também é tida como uma das peças para violino mais difíceis de dominar. Muitos tentam; poucos conseguem. É exaustivamente longa - catorze minutos - e consiste inteiramente de uma única progressão musical sucinta, repetida em dezenas de variações, de maneira a criar uma arquitetura sonora de complexidade assustadora. Composta em torno de 1720, às vésperas do Iluminismo europeu, é considerada uma celebração do alcance das possibilidades humanas.

Pois foi com a Chaconne que Bell começou.

E sem dúvida estava falando sério quando prometeu não sacrificar em nada o seu desempenho. Tocou com entusiasmo acrobático, inclinando o corpo para acompanhar a música e erguendo-se nas pontas dos pés nas notas mais altas. O som era quase sinfônico, espalhando-se por todas os cantos da feia galeria enquanto os pedestres não paravam de transitar.

Três minutos transcorreram antes que alguma coisa acontecesse. Sessenta e três pessoas já tinham passado quando, finalmente, registrou-se a primeira reação. Um homem de meia-idade alterou suas passadas por uma fração de segundo, virando a cabeça para dar-se conta de que parecia haver ali um sujeito tocando música. É verdade que não parou de andar, mas já foi alguma coisa.

Meio minuto mais tarde, Bell recebeu sua primeira doação. Uma mulher jogou 1 dólar na caixa e seguiu seu caminho, apressada. A apresentação já durava seis minutos quando alguém realmente parou e encostou na parede, para ouvir.

Mas as coisas nunca chegaram a ficar muito melhores. Nos quase três quartos de hora que Joshua Bell tocou, sete pessoas pararam o que estavam fazendo para ficar por perto e acompanhar a música por, pelo menos, um minuto. Vinte e sete deram dinheiro,- totalizando 32 dólares e trocados. O que nos deixa com 1 070 pessoas que passaram por ali às pressas, sem perceber nada, muitas a apenas 1 metro do músico, poucas nem sequer virando o rosto para olhar.

Toda a experiência foi gravada em vídeo, por uma câmera oculta. Acelerada, a fita se transforma num desses filmes mudos de atualidade da época da I Guerra Mundial. As pessoas passam correndo aos saltos ou aos arrancos, com copos de café nas mãos, telefones celulares no ouvido, crachás sacudindo na barriga, uma sinistra dança macabra em honra da indiferença, da inércia e da pressa cinzenta e enlouquecida da modernidade.
Mesmo nesse ritmo acelerado, porém, os movimentos do violinista continuam fluidos e graciosos, e ele parece tão diferente do seu público - invisível, inaudível, sobrenatural - que você se surpreende pensando que na verdade ele não estava lá. Era um fantasma. E é só então que você percebe. Era ele o único real. Os outros é que eram os fantasmas.
Se um músico extraordinário toca músicas extraordinárias mas ninguém escuta... será que ele é mesmo extraordinário?

Eis um debate epistemológico bem antigo - mais antigo, na verdade, que o koan sobre a queda da árvore na floresta (se uma árvore cai na floresta e não há ninguém para ouvir, ela produz algum som?). Platão já falava dele, assim como filósofos de dois milênios depois. O que é a beleza? Será um fato mensurável (Gottfried Leibniz), meramente uma opinião (David Hume) ou um pouco de ambos, matizado pelo estado de espírito imediato do observador (Immanuel Kant)?

Vamos ficar com Kant, porque ele está obviamente certo, e porque ele nos leva quase diretamente a Joshua Bell, sentado num restaurante de hotel, tomando seu café-da-manhã, tentando descobrir, com um seco senso de humor, que diabos tinha acontecido naquela saída do metrô.

"No começo", diz Bell, "eu estava só concentrado em tocar. Não enxergava direito o que acontecia à minha volta..."

Tocar violino parece uma atividade absorvente, tanto do ponto de vista físico quanto mental, mas Bell diz que para ele a mecânica da execução já se tornou em parte espontânea, consolidada pela prática e pela memória muscular. É como um malabarista, diz ele, capaz de manter as bolas no ar enquanto interage com a platéia. O que mais lhe passa pela cabeça enquanto toca, diz Bell, é capturar a emoção como uma narrativa. "Quando você toca uma peça de violino, você se transforma num narrador, alguém que conta uma história."

No caso da Chaconne, a abertura é carregada de uma sensação de reverência cada vez mais intensa. O que o manteve ocupado por algum tempo. Mais adiante, porém, ele começou a espiar com o canto dos olhos...

"E era uma sensação estranha, de que as pessoas na verdade estavam... ahn..."

A palavra não vem com facilidade.

"... me ignorando."

Bell ri. De si mesmo.

"Numa sala de concerto, fico perturbado quando alguém tosse ou um celular começa a tocar. Mas ali, as minhas expectativas baixaram muito depressa. E comecei a receber com alegria o mínimo sinal de reconhecimento, até mesmo um olhar de passagem. E me sentia estranhamente agradecido quando alguém jogava 1 dólar na caixa, em vez simples moedas." Isto dito por um homem cujos talentos podem ser pagos à base de 1 000 dólares por minuto.

Antes de ter começado, Bell não sabia o que esperar. Só sabe que, por algum motivo, estava nervoso. "Não era exatamente medo do público, mas uma certa palpitação", diz ele. "Eu estava um pouco tenso." Bell já tocou, literalmente, para as cabeças coroadas da Europa. Por que aquela ansiedade no metrô de Washington?

"Quando você toca para um público pagante", explica Bell, "você já foi validado. E nem me passa pela cabeça que eu precise ser aceito. Eu já fui aceito. Mas ali, o que me passava pela cabeça era: "E se eles não gostarem de mim? E se ficarem irritados com a minha presença?".

Em suma, Bell era uma obra de arte sem moldura. O que, conforme veremos, pode ter muito a ver com o que aconteceu - ou, mais precisamente, deixou de acontecer - nesse dia 12 de janeiro.

Pelas mãos de Mark Leithauser já passaram mais obras-primas de arte do que pelas mãos de qualquer rei, papa ou membro da família Medici. Curador-chefe da National Gallery, é ele quem supervisiona o emolduramento dos quadros. Leithauser acha que tem alguma idéia do que aconteceu naquela estação de metrô.

"Digamos que eu pegasse uma das nossas obras-primas mais abstratas, por exemplo, um Ellsworth Kelly, tirasse da moldura, descesse com ele os 52 degraus que as pessoas costumam subir para chegar à National Gallery, e o levasse até um restaurante. É um quadro que vale 5 milhões de dólares. E o restaurante é um desses onde se encontram obras de arte originais à venda, pintadas por algum jovem muito produtivo da Escola de Corcoran. E digamos que eu pendurasse o Kelly na parede e pedisse 150 dólares por ele. Ninguém iria reparar. Um curador de arte, talvez, poderia bater com os olhos no quadro e dizer: 'Olhe só, aquele quadro parece um pouco com as coisas de Ellsworth Kelly. Passe o sal, por favor'".

O que Leithauser quer dizer é que não devemos nos apressar em rotular os passantes do metrô de insensíveis sem sofisticação. O contexto é sempre importante.

Kant diz a mesma coisa. Ele levava a beleza a sério. Na Crítica da Faculdade do Juízo, Kant afirma que a capacidade de apreciar a beleza está relacionada à nossa capacidade de formular juízos morais. Ele fazia uma advertência. Paul Guyer, da Universidade da Pensilvânia, um dos mais proeminentes estudiosos de Kant dos Estados Unidos, afirma que o filósofo alemão do século xviii sentia que, para apreciar devidamente a beleza, as condições em que ela era vista precisavam ser as melhores possíveis.

"E as melhores condições possíveis", observa Guyer, "não ocorrem a caminho do trabalho, pensando no relatório que precisa ser apresentado ao chefe, talvez com os sapatos apertados."

Para entender o que aconteceu, precisamos voltar a fita e assisti-la de novo. desde o começo, desde o primeiro momento em que o arco de Bell encostou nas cordas.

Um sujeito branco, calças cáqui, casaco de couro, pasta. Trinta e poucos anos. John David Mortensen está na última etapa da sua viagem diária de ônibus-e-metrô para o trabalho. Está subindo a escada rolante. É uma subida demorada - um minuto e quinze segundos se você ficar parado no mesmo degrau. Assim, como a maioria das outras pessoas que passa por Bell nesse dia, Mortensen já ouvira um bom trecho de música antes de vislumbrar o instrumentista pela primeira vez. Como a maioria deles, percebe que a música soa muito bem. Mas como muito poucos deles, quando chega ao alto, não passa às pressas como se Bell fosse um obstáculo incômodo a evitar. Mortensen é a primeira pessoa a parar - o sujeito da marca dos seis minutos.

E não que não tivesse mais nada a fazer. Mortensen é diretor de projeto de um programa internacional do Departamento de Energia e, naquele dia, precisava participar de um exercício mensal de orçamento, que não é a parte mais estimulante do seu trabalho. "Você passa em revista as despesas do mês anterior", diz ele, "prevê os gastos do mês seguinte."

No vídeo, dá para ver Mortensen saindo da escada rolante e olhando em volta. Ele localiza o violinista, pára, começa a se afastar, mas é atraído de volta. Verifica a hora no celular - está três minutos adiantado para o trabalho - e se encosta numa parede para escutar.

Mortensen não conhece nada de música clássica; o máximo a que chega é rock clássico. Mas o que ouviu tem alguma coisa de que gosta muito.

Na verdade, ele chega ao alto da escada no momento em que Bell começa a segunda parte da Chaconne. ("É o ponto", diz Bell, "em que ela passa de um tom menor, mais triste, para um tom maior. O que transmite um sentimento religioso, de exaltação.") O arco do violinista começa a dançar; a música fica acelerada, alegre, teatral, grandiosa.

Mortensen não entende nada de tons menores ou maiores: "Não sei o que era", diz ele, "mas eu me senti em paz."

E assim, pela primeira vez na sua vida, Mortensen pára para ouvir um músico de rua. Fica ali os três minutos de que dispunha, enquanto 94 pessoas passam apressadas. Pela primeira vez na vida, sem saber direito o que tinha acontecido, mas sentindo que tinha sido especial, John David Mortensen dá dinheiro a um músico de rua.

Há seis momentos no vídeo que Bell acha especialmente dolorosos de reviver. "A hora do embaraço", como ele os chama. É o que acontece quando ele acaba cada uma das peças: nada. A música pára. As mesmas pessoas que não reparavam nele enquanto tocava também não reparam que acabou. Nenhum aplauso, nenhum sinal de reconhecimento. De maneira que Bell se limita a emitir um acorde breve e nervoso - o equivalente, para o músico constrangido, a dizer "Ahn, bom, então vamos ao próximo número..." - e ataca a peça seguinte.

Depois da Chaconne, é a Ave Maria de Schubert, que surpreendeu alguns críticos quando estreou em 1825: Schubert raramente manifestava algum sentimento religioso nas suas composições, mas ainda assim a Ave Maria é uma admirável obra de adoração à Virgem Maria. Esta prece musical tornou-se uma das peças religiosas mais conhecidas e duradouras de toda a história.

Poucos minutos depois de começada, ocorre um fato revelador. Uma mulher emerge da escada rolante junto com seu filho em idade pré-escolar. A mulher caminha apressada e, portanto, o menino também. Ela o puxa pela mão.

"Eu estava muito atrasada", lembra Sheron Parker, diretora de informática de uma repartição federal. "Tinha uma aula de treinamento às oito e meia, e antes precisava entregar Evvie para a professora, depois correr de volta para o trabalho."
Evvie é seu filho, Evan. Evan tem 3 anos.

Evan aparece claramente no vídeo. É o lindo menino negro de parka que fica virando a cabeça tentando olhar para Joshua Bell enquanto é puxado na direção da porta.

"Havia um músico", lembra Sheron Parker, "e o meu filho ficou intrigado. Ele queria parar para ouvir, mas eu estava sem tempo."

E assim, ela faz o que precisa. Interpõe seu corpo entre Evan e Bell, cortando a visão do seu filho. Quando estão saindo da galeria, ainda dá para ver Evan torcendo o pescoço para tentar enxergar.

O poeta Billy Collins certa vez observou com humor que todos os bebês nascem conhecendo poesia, porque a batida do coração da mãe forma um iambo. E então, disse Collins, a vida começa a sufocar aos poucos a poesia que havia em nós. O que também pode se aplicar à música.

Não há um padrão étnico ou demográfico que possa diferenciar as pessoas que ficaram para ouvir Bell, ou as que deram dinheiro, da vasta maioria que seguiu o seu caminho apressado, sem tomar conhecimento do músico. Há brancos, negros e asiáticos, jovens e velhos, homens e mulheres, representados nos três grupos. Só existe um grupo demográfico cujo comportamento foi sempre consistente. Toda vez que uma criança passava, tentava parar para assistir. E, toda vez, o pai ou a mãe não deixava.

Se havia naquele dia uma pessoa ocupada demais para prestar atenção ao violinista, era George Tindley. Tindley não estava correndo para chegar ao trabalho. Ele já estava no trabalho.

As portas de vidro pelas quais a maioria das pessoas sai da estação L'Enfant dão num pequeno centro comercial coberto do qual saem portas para a rua e elevadores para os prédios de escritórios. A primeira loja do centro comercial é uma Au Bon Pain, da rede de casas de café e croisssants, em que Tindley, de quarenta e poucos anos, trabalha de uniforme branco limpando as mesas, renovando os estoques de pacotinhos de sal e pimenta, removendo o lixo. Tindley trabalha sob o olho vigilante dos seus chefes, precisa estar sempre ativo, e estava.

Mas a cada minuto mais ou menos, como que atraído por alguma coisa que de alguma forma escapasse do seu controle, Tindley caminhava até o limite do território do Au Bon Pain, sem atravessar a divisa e deixar o local de trabalho. E então se inclinava para diante, o máximo que podia, na direção da galeria, a fim de ver o violinista do outro lado das portas de vidro. O tráfego de pedestres era constante, de maneira que as portas ficavam abertas quase o tempo todo, e o som chegava a ele bastante bem.

"Dava para dizer de cara que o sujeito era bom, que só podia ser um profissional", diz Tindley. George toca violão, adora o som de cordas, e não tem o menor respeito por um certo tipo de músico.
"A maioria dos músicos toca, mas sem sentir", diz Tindley. "Já aquele cara estava sentindo. E dançando. Dançando no som."

Bell termina a Ave Maria em meio a mais um silêncio ensurdecedor, toca a sentimental Estrelita, de Manuel Ponce, depois uma peça de Jules Massenet antes de começar uma gavota de Bach, alegre, buliçosa e lírica. Tem uma delicadeza própria do Velho Mundo: dá para imaginar que tenha inspirado dançarinos de peruca branca em algum baile de Versalhes ou - numa versão para alaúde, rabeca e pífano - os camponeses que levantam as botas num quadro de Pieter Bruegel.

Havia também Calvin Myint. Myint trabalha para a Administração de Serviços Gerais. Chegou ao alto da escada rolante, virou à direita e enveredou direto por uma porta que dava na rua. Algumas horas mais tarde, não tinha a menor lembrança de que houvesse um músico tocando em qualquer lugar por onde passou.

"Onde ele estava, em relação a mim?"

"Pouco mais de 1 metro de distância."

"Ah."

Myint não tem qualquer problema de audição. Mas estava com fones enfiados nas orelhas. Ouvindo o seu iPod.

Para muitos de nós, a explosão da tecnologia, em vez de expandir, limitou de forma perversa nossa exposição a novas experiências. Cada vez mais, quem nos dá as notícias são fontes que pensam como já pensávamos. Com os iPods, ouvimos o que já conhecíamos; somos nós que programamos a lista do que vamos ouvir.

A canção que Calvin Myint estava ouvindo era Just Like Heaven, do conjunto de rock inglês The Cure. A canção, na verdade, é maravilhosa. Seu significado é um pouco opaco, e podem-se encontrar na internet muitíssimas tentativas esforçadas de desconstruí-la. Algumas são bem exageradas, mas outras são pertinentes. A canção fala de uma trágica desconexão emocional. Um homem encontrou a mulher dos seus sonhos mas não consegue exprimir a profundidade dos seus sentimentos antes de ela ir embora. A canção fala da incapacidade de vermos a beleza claramente exposta diante dos nossos olhos.

Os melhores lugares para ouvir Bell naquele dia eram as cadeiras de engraxate, postadas na galeria. Uma única pessoa ocupou um desses assentos, por 5 dólares, enquanto Bell tocava. Terence Holmes é consultor para o Departamento de Transportes, e gostou muito da música, mas na verdade estava interessado mesmo era em engraxar os sapatos. "Meu pai me ensinou a nunca usar terno com os sapatos sujos ou sem brilho."

Holmes usa terno com freqüência, de maneira que toda hora está empoleirado naquelas cadeiras, e tem uma boa relação com a engraxate de plantão no local. Holmes dá boas gorjetas e é bom de conversa, um talento que naquele dia veio a calhar. A engraxate estava aborrecida com alguma coisa, e a música só fez deixá-la mais perturbada. Ela se queixou, lembra Holmes, de que a música estava alta demais, e ele fez o possível para acalmá-la.

Edna Souza é brasileira. Faz seis anos que engraxa sapatos na L'Enfant Plaza, e já viu centenas de músicos de rua fazendo ponto naquele local; quando eles começam a tocar, ela não consegue ouvir os fregueses, o que é ruim para o seu negócio. E ela reage à altura.

Edna aponta para a divisória entre a área controlada pelo metrô, no alto da escada rolante, e a galeria, que é de responsabilidade da empresa que administra o centro comercial. Às vezes, diz ela, os músicos se postam na área do metrô, às vezes no território da galeria. De qualquer maneira, ela quase sempre dá um jeito. Nas teclas de discagem rápida do seu celular, ela tem os números tanto da segurança do metrô quanto da segurança do centro comercial. Dificilmente o músico fica ali muito tempo.
E no caso de Joshua Bell?

Também tocava alto demais, responde Edna. Então ela baixa os olhos para o trapo que tem nas mãos, e funga. Detesta se ver obrigada a admitir alguma coisa positiva sobre esses malditos músicos, mas: "Esse tocava mesmo muito bem. Foi a primeira vez que não chamei a polícia".

Edna Souza fica surpresa ao saber que era um músico famoso, mas não que as pessoas passassem por ele sem vê-lo sequer. Isso, diz ela, era previsível. "Se uma coisa assim acontecesse no Brasil, todo mundo iria parar para assistir. Mas aqui não."

Edna aponta com um gesto amargo de cabeça para um ponto perto do alto da escada rolante. "Uns anos atrás, um sem-teto morreu bem ali. Simplesmente se deitou no chão e morreu. A polícia veio, uma ambulância veio, e ninguém parou para se inteirar, nem diminuiu o passo para ver o que estava acontecendo."

"Que é essa vida se, com tanto a fazer, Não temos tempo para parar e ver?") - do poema Leisure, de W. H. Davies

Se não podemos tirar algum tempo das nossas vidas para parar um momento e escutar um dos melhores músicos do planeta tocando algumas das mais belas peças musicais que já foram escritas; se o impulso da vida moderna nos domina a tal ponto que ficamos cegos e surdos para uma coisa dessas - o que mais não estaremos perdendo?

Eis o que quis dizer o poeta galês W. H. Davies em 1911, quando publicou os versos acima, que o tornaram famoso. A idéia era simples, até mesmo primitiva, mas de algum modo ninguém nunca a formulara antes com a mesma clareza. Claro, Davies tinha uma vantagem - uma vantagem perceptiva. Ele não era comerciante nem trabalhador braçal nem burocrata nem consultor nem analista de sistemas nem advogado trabalhista nem gerente de programa. Ele era um vagabundo.

Digamos que Kant tenha razão. Vamos aceitar que, depois de olhar o que aconteceu em 12 de janeiro, não possamos emitir qualquer juízo quanto à sofisticação das pessoas ou à sua capacidade de apreciar a beleza. Mas e a sua capacidade de apreciar a vida?

Somos ocupados. Os americanos em geral vivem ocupados desde pelo menos 1831, quando um jovem sociólogo francês chamado Alexis de Tocqueville visitou os Estados Unidos e ficou impressionado, espantado e um tanto desanimado por saber o quanto as pessoas daqui eram movidas pelo trabalho duro e a acumulação de riqueza.

E as coisas não mudaram muito. Assista ao DVD de Koyaanisqatsi, o filme vanguardista sem palavras de 1982, brilhante e assustador, sobre a velocidade frenética da vida moderna. Com o apoio da música minimalista de Philip Glass, o diretor Godfrey Reggio usa trechos de filme em que mostra os americanos cuidando dos seus afazeres diários, mas acelera a ação até o ponto em que eles passam a lembrar máquinas de linha de montagem, robôs marchando com passos marcados rumo a lugar nenhum. E agora assista ao vídeo da L'Enfant Plaza, em fast forward. A trilha sonora de Philip Glass se encaixa perfeitamente.

"Koyaanisqatsi" é uma palavra hopi, e significa "vida desequilibrada".

O herói cultural do dia chegou a L'Enfant Plaza com bastante atraso, na figura nada impressionante de um certo John Picarello, um homem baixo de cabeça calva.

Picarello chegou ao alto da escada rolante logo depois que Bell começara seu número final, uma reprise da Chaconne. No vídeo, pode-se ver Picarello parar completamente, localizar a fonte da música e então se dirigir para o lado oposto da galeria. Ele assume posição ao lado da banca de engraxate, em frente à fila da loteria, e não moverá um músculo pelos nove minutos seguintes.

Como todos os passantes entrevistados para este artigo, Picarello foi abordado por um repórter logo depois de deixar a estação, e lhe pediram o número do seu telefone. Como em todos os casos, disseram-lhe que era para um artigo sobre os transportes coletivos. Quando lhe telefonamos mais tarde naquele mesmo dia, a primeira pergunta que fizemos foi se alguma coisa fora do comum tinha lhe acontecido a caminho do trabalho. Das mais de quarenta pessoas contatadas, Picarello foi o único a mencionar de imediato o violinista.

"Havia um músico tocando no alto da escada rolante na L'Enfant Plaza."

"E o senhor nunca tinha visto um músico ali?"

"Não como este."

"Como assim?"

"Era um violinista soberbo. Nunca ouvi ninguém daquele calibre. Era tecnicamente perfeito, com um fraseado muito bom. E também estava tocando um bom violino, com um som cheio e rico. Eu me afastei um pouco para ficar ouvindo. Não quis invadir o espaço dele."

"É mesmo?"

"É. Foi uma experiência fora do comum. Foi um presente, um modo maravilhoso, incrível, de começar o dia."

Picarello conhece música clássica. É admirador de Joshua Bell, mas não o reconheceu.Não tinha visto nenhuma foto recente do músico e, além disso, ficou quase o tempo todo bem longe. Mas sabia que quem estava tocando não era um músico qualquer. No vídeo, dá para ver Picarello olhando em volta de vez em quando, totalmente desconcertado.

Quando Picarello era jovem, em Nova York, estudou seriamente violino, com a intenção de tornar-se concertista. Mas acabou desistindo aos 18 anos, quando concluiu que nunca chegaria a ser bom o bastante para valer o esforço. Às vezes você precisa fazer a escolha mais prudente. E ele escolheu outra linha de trabalho. É supervisor nos Correios. E não toca mais muito violino.

Quando foi embora, conta Picarello, "deixei humildemente 5 dólares". E foi mesmo humilde, o que dá para ver claramente no vídeo. Picarello se aproxima, mal olhando para Bell, e deixa cair a nota na caixa. Depois, como que encabulado, afasta-se a passo rápido do homem que no passado desejara ser.

Na opinião de Bell, ele tocou melhor nos últimos minutos da apresentação, na reprise da Chaconne. E foi também a primeira vez em que havia mais de uma pessoa ouvindo ao mesmo tempo. Enquanto Picarello escutava ao fundo, Janice Olu chegou e se postou a alguns passos de distância de Bell. Olu, administradora de um fundo de investimentos no Departamento de Habitação e Desenvolvimento Urbano, também tocou violino quando criança. Não sabia o nome da peça que estava ouvindo, mas sabia que o homem que tocava era muito talentoso.

Olu estava num momento de folga, e ficou por ali o quanto ousou. Quando se virou para ir embora, murmurou "na verdade eu não queria ir embora" para o desconhecido ao seu lado. O desconhecido ao lado dela, por acaso, trabalhava para o Washington Post.

Enquanto se preparavam para esse evento, os editores da Post Magazine discutiram como deveriam lidar com prováveis desdobramentos do evento. A suposição mais amplamente cultivada era de que poderia surgir algum problema em matéria de controle de massas: num lugar de população tão sofisticada quanto Washington, era a idéia geral, muitas pessoas haveriam de reconhecer Bell. E abundavam visões nervosas do que poderia acontecer. À medida que as pessoas começassem a parar, e se outros também fossem parando só para ver qual era a atração? A notícia correria pela multidão. Câmeras começariam a espocar. E mais gente acorreria para o local; o tráfego pedestre da hora do rush ficaria obstruído; os ânimos se exaltariam; a Guarda Nacional seria chamada; gás lacrimogêneo, balas de borracha etc.

No fim das contas, uma única pessoa reconheceu Bell, e só chegou quase no final. Para Stacy Furukawa, demógrafa empregada no Departamento de Comércio, não havia dúvida. Ela não entende muito de música clássica, mas três semanas antes estivera na platéia do concerto gratuito de Bell na Biblioteca do Congresso. E ali estava ele, o virtuose de fama internacional, tocando no metrô e com a caixa aberta pedindo dinheiro. Ela não tinha idéia de que diabo podia estar acontecendo, mas fosse o que fosse, não iria perder.

Stacy Furukawa postou-se a uns três metros de Bell, primeira fila, no centro. Tinha um grande sorriso no rosto. O sorriso e Stacy permaneceram no mesmo lugar até o fim.

"Foi a coisa mais espantosa que eu já vi em Washington", diz ela. "Joshua Bell estava ali tocando na hora do rush, e as pessoas não paravam, nem mesmo olhavam, e havia gente que jogava moedas de 25 cents na caixa! Coisa que eu não faria com ninguém. E eu ali, pensando, Meu Deus, que cidade é esta onde eu vivo, em que uma coisa assim pode acontecer?"

Quando a música acabou, Stacy Furukawa apresentou-se a Joshua Bell e jogou uma nota de vinte na caixa do violino. Descontando essa doação - invalidada pelo reconhecimento -, o montante acumulado em 43 minutos de música foi de 32 dólares e 17 centavos.

"Na verdade", diz Bell com uma risada, "nem é tão mau assim, no fim das contas. São 40 dólares por hora. Dava para ganhar uma vida razoável com isso, e eu nem precisaria pagar um agente."

A venda de bilhetes de loteria continua animada como sempre na L'Enfant Plaza. Músicos de rua ainda aparecem de tempos em tempos, sempre despertando a mesma reação de Edna Souza. O disco mais recente de Joshua Bell, The Voice of the Violin ("A Voz do Violino"), recebeu a costumeira aclamação da crítica. ("Uma urgência delicada." "Uma intimidade de mestre." "Invariavelmente extraordinário." "Um apogeu musical." "... fará seu coração disparar e chorar ao mesmo tempo."). No mês de abril, Bell recebeu o prêmio Avery Fisher, consagrando o pedinte da L'Enfant Plaza como o melhor instrumentista de música clássica dos Estados Unidos.


02 de julho de 2015
Gene Weingarten