Trinta e três regras que mudam a redação de bulas no Brasil
Sair do consultório médico com uma receita do antidepressivo Zoloft na mão nunca é uma notícia exatamente alvissareira. Sair da farmácia com o medicamento comprado e se aventurar pela leitura da bula representa um risco adicional. Entre os efeitos colaterais associados à ingestão do produto estão listadas a parestesia, alopecia, ginecomastia, paroníria e midríase. Com males de sonoridade tão cavernosa e significado tão impenetrável, cabe a dúvida se não seria melhor ficar com a depressão, velha conhecida.
Até meados de 2013, contudo, o paciente será informado, através de uma bula menos enigmática, que os sinistros males eventualmente associados ao Zoloft nada mais são que alteração da sen-si-bi-lidade e formigamento, perda de cabelo, aumento das mamas no homem, perturbação do sono e dilatação das pupilas.
Embora o primeiro decreto que regulamenta a redação de bulas no Brasil date de 1931, elas conservaram seu variá-vel aspecto de micro-hieroglifos até que a Agência Nacional de Vigilância Sanitária, a Anvisa, determinasse, em 2003, a reformulação das bulas. Frases do tipo “dados in vitro ae in vivo demonstram que ebastina exerce potente antagonismo dos receptores H1, de longa duração e altamente seletivo, não apresentando efeitos sobre o SNC ou efeitos anticolinérgicos” eram a norma e só faziam sentido para os profissionais da área médica – se tanto.
A mudança decisiva, contudo, só ocorreu por pressão dos órgãos de defesa do consumidor e do Ministério Público. Com o Projeto Bulas, de 2004, voltado para a tradução do jargão farmacêutico para a língua portuguesa – aquela falada em todo o Brasil – e a regulamentação do uso de medicamentos no país, cinco anos depois, o Brasil começou a sair das trevas.
A empreitada é de porte e conta com profissionais como a carioca Celina Frade, até então mais ocupada em dar cursos sobre a redação de contratos de seguro e de petróleo. Doutora em linguística pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, Celina foi convocada pela Anvisa para coordenar um grupo de trabalho que analisa o português mais adequado para bulas.
Na mesa da sala do seu apartamento na Lagoa, Zona Sul do Rio, a linguista mostra exemplares de bulas de vários países que fizeram parte do material didático usado para a execução da tarefa. A preferida de Celina, pela forma, pelo texto e pela comunicação direta com o consumidor leigo, é a de um xarope para tosse fabricado em Portugal.
Após analisar 600 bulas brasileiras ao longo de três meses, Celina concluiu que o jargão médico-farmacêutico dos redatores era deliberado. “Quem escreve a bula não quer que ela seja entendida por todos”, garante. “Mesmo tendo substituído os termos técnicos por populares, percebi que o texto continuava incompreensível.” Segundo a linguista, o medo de processos por parte do fabricante explica o excesso de informação e de alertas nas bulas. “Havia medicamentos de uso infantil que continham a advertência: ‘Não dirigir ou operar máquinas’”, citou, a título de exemplo.
Outro problema estava encravado na própria estrutura dos textos: pontuação deficiente, instruções múltiplas numa mesma frase longa e truncada, além de um inexplicável apego à voz passiva. “As vírgulas eram usadas de forma arbitrária, muitas vezes induzindo ao erro”, acrescenta. Sem falar que o conjunto da obra vinha impresso em letras de menos de 1 milímetro.
Se obedecidas, as 33 regras do guia são de serventia genérica – quem lida com qualquer tipo de escrita pode se beneficiar de seus ensinamentos. A regra 12, por exemplo, manda abolir a linguagem técnica, fonte de possível constrangimento para quem não compreendê-la, e recomenda: “Não irrite o leitor.” A regra 14 prega um tom cordial, educado e, sobretudo, conciso: “Não faça o leitor perder tempo.”
Nas bulas já impressas segundo a nova regulamentação, no lugar de “posologia”, “reações adversas” e “contraindicações”, entraram as perguntas: “Como devo usar esse medicamento?”, “Quais os males que este medicamento pode causar?” e “Quando não devo usar esse medicamento?” Para a linguista, o texto com perguntas e respostas é mais palatável para o consumidor. “Faz parecer que a bula está falando do seu caso específico, fica mais íntimo.” Quem encarar a leitura também irá se deparar com a mudança da forma: o tamanho de letra, Times New Roman, dobrou e o espaçamento entre cada linha aumentou. Ou seja, no lugar de lupa, um bom par de óculos resolve.
Com seu manual, Celina Frade não pretende alçar o gênero bula ao status de literatura. “Ler com prazer seria pedir demais. Espero apenas que as pessoas leiam bulas.” De preferência, até o fim.
24 de junho de 2015
CLARA BECKER
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