Se especializando no aparentemente periférico, trazendo o que aparentava ser auxiliar para o cerne de sua técnica, Muhammad Ali foi quase imbatível (perdeu apenas 5 lutas em sua carreira). Mais: assim como gênios do quilate de Ayrton Senna, Pelé, Michael Jordan, Eddy Merckx, Anderson Silva, Mireya Luis ou Sebastien Loeb, mudou o próprio esporte, fazendo com que as pessoas parassem de assisti-lo assim que estes saíam de cena.
A técnica inesperada transformava qualquer grande adversário numa isca fácil. Era impossível lutar contra Ali pela técnica tradicional (lição que Bruce Lee não cansou de explicar em seus livros e ensinamentos em vida). Para conseguir bater em Ali – simplesmente acertá-lo – era preciso reestudar completamente o que se aprende em academias de boxe.
Tendo o auge de sua carreira nos emotivos anos 60, quando o mundo guinava tanto para a esquerda que a crença total do Ocidente não era mais se o comunismo seria uma realidade, mas quando o mundo inteiro iria ser tomado pela potência soviética, Cassius Clay sofreu no meio daquela década a mudança que o marcaria fora dos ringues: sua conversão ao islamismo. Ainda “fora de moda” no Ocidente, ou ao menos longe do centro dos noticiários, sua conversão, após lutar na África, foi dada como mera excentricidade quase estética. Algo como ter um amigo budista ou que acredita em tarô.
Já com o nome que o imortalizou, Muhammad Ali foi um dos maiores ícones daquilo que marcaria a torção do discurso e método da esquerda mundial: a mudança do eixo econômico do discurso para a questão das “minorias”, com forte verniz vitimista, que permitia e permite que até os mais abastados pelo capitalismo e os trabalhadores que mais enriqueciam com seus esforços, protegidos da Cortina de Ferro pela liberdade e mercado ocidentais, se sentissem vítimas de alguma grande injustiça social fomentada pelo pensamento tradicional.
Era a gênese de discursos como a luta anti-racismo, que trocava os elementos da luta de classes por questões estéticas e igualmente secundárias na organização social. Muhammad Ali passou a ser ogaroto-propaganda do grupo terrorista Black Panthers, tendo inclusive feito um dos discursos mais famosos dos Panteras Negras como convidado especial.
Se a mudança de eixo mudou o mundo na década de 60 e quase mudou o Ocidente, pode-se dizer que a luta de Ali fora dos ringues logrou êxito sobretudo nesta década de sua morte. Hoje, o discurso progressista deixou de ser uma massa de operários guiada por líderes sindicais, preferindo circundar celebridades capazes de angariar jovens e qualquer pessoa com uma frustração que sirva como causa de revolta para se tornarem a nova infantaria revolucionária.
O esporte, na América que Muhammad Ali tanto se sentia desconfortável, movimentava a economia e dava oportunidades (e faculdades) a quem não conseguiria pagá-las de outra forma. Não era um culto neopagão ao corpo aliado à propaganda, como no caso socialista (ver A Origem Desportiva do Estado, de Ortega y Gasset, o Homo ludens de Johan Huizinga ou The KGB Plays Chess, de Yuri Felshtinsky e Boris Gulko). Era o que permitia Ali a ter suas crises espirituais, tão dependentes do tédio – aquilo que já foi spleen, já foi existencialismo, já foi náusea, já foi queda e se tornou -ismo adolescente.
É o contra-fluxo quase inescapável da era da celebridade: alçadas ao estrelato por um talento específico, muitas vezes grandioso (no caso de esportistas, quase inegável), pessoas sem um estofo espiritual e intelectual para suas vidas apelam a ideologias e ícones pregadores para cobrir um rombo de solidez de personalidade.
Quando a celebridade ainda possui algum ranço social capaz de dar pasto ao vitimismo e à mentalidade revolucionária total, a festa é completa: Muhammad Ali era negro num estado sulista rural, como outros podem sentir uma “pressão” por estar fora de algum padrão: ser mulher, ser gay, não ser filho de Donald Trump.
Muhammad Ali foi o molde a celebridade envolvida com política do século XX, que ganhou tanta rapidez em sua ascensão no reino das redes do século XXI: alguém com issues, pessoas com algum (ou extremo) talento, um carisma muito peculiar (o wit de Ali dificilmente se coadunaria com qualquer muçulmano no mundo) e uma vontade de mudar o mundo, desde que haja uma boa platéia.
Sempre pedem clichês, da igualdade ao respeito, da luta racial ao feminismo e ao multiculturalismo. Não mais enxergam a ordem social pelo prisma de uma lei para todos (uma criação que não foi de nenhuma das “minorias” defendidas), mas querem tomar o lugar de quem criou esta ordem. Muhammad Ali ele próprio declarava sem parar sua vontade de escorraçar “os brancos” do establishment e transformar seus cupinchas no próprio establishment.
Curiosamente, o belíssimo filme Ali teve como protagonista o não menos genial Will Smith interpretando o boxeador. Will Smith ele próprio não costuma perceber a grandeza de suas obras, como a do filme À Procura da Felicidade, em que, no papel de Chris Gardner, interpreta um representante comercial que vai à falência, dorme no metrô, tem de sair correndo de um estágio não remunerado para conseguir vaga em um abrigo para moradores de rua com seu filho – tudo para, com seu próprio talento, se tornar um dos investidores de maior sucesso na gloriosa história americana.
Chega a chocar ver um ator tão brilhante, fazendo uma história tão sensível, se submetendo aos flertes com a cientologia e protagonizando um show de vitimismo barato com o último Oscar, que não teve indicação de atores negros.
Assim também foi Muhammad Ali: um gênio dos esportes que, numa era de celebridades palpiteiras, tentou ser um símbolo de uma luta que ia contra tudo o que ele próprio era. Concretizando seu islamismo sufista e o terrorismo Black Panther (homenageado no último Super Bowl, embora Marcelo Rubens Paiva nada tenha entendido e tenha até encontrado um “racismo branco” ali), a América seria um país completamente diferente.
Não um país melhor, como crêem os socialistas seguidores de celebridades, modismos e -ismos do século XXI: seria um país em que nunca poderíamos render loas ao talento dentro do ringue de Muhammad Ali.
20 de setembro de 2016
flavio morgenstem
in senso incomum
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