segunda-feira, 31 de julho de 2017

SEGREDOS ALPINOS

Numa pirueta de linguagem, os que vivem em altitudes elevadas dizem que não é a montanha que mata, mas as pessoas é que morrem na montanha. Seja como for, alta montanha é lugar perigoso. Solidão, frio, avalanches, queda de pedras, desprendimento de blocos de gelo, bruscas mudanças atmosféricas não facilitam a vida. Ninguém está blindado contra um acidente.



Em 1942, o feriado religioso do 15 de agosto caiu num sábado. Um casal de aldeães do vilarejo de Savièse (Suíça) resolveu aproveitar o tempo ensolarado para passar o dia com amigos que, como faziam cada ano, haviam levado um rebanho de vacas para passar o verão num pasto alpino. A caminhada era longa, mas o tempo estava convidativo.

O lugar era pobre e o casal, gente simples. Ela era professora primária e ele fazia de tudo um pouco: pequeno agricultor, carpinteiro, sapateiro. Gente muito querida na aldeia. Logo depois da missa, despediram-se dos sete filhos pequenos, apanharam provisões para o almoço e partiram. Avisaram que tencionavam estar de volta à noitinha. Caso se sentissem muito cansados, passariam a noite num abrigo de montanha mas retornariam no dia seguinte.

Com fé e disposição, saíram a pé. No meio do longo caminho, estava uma geleira(1). Aquelas extensões de neve endurecida podem sair lindas em cartão postal, mas escondem perigo grande. No gelo duro e eterno, acumulado durante anos, abrem-se fendas largas e profundas como crateras. A neve do mais recente inverno recobre a superfície, fazendo que o caminhante não se dê conta de que há um buraco debaixo dos pés. O que tinha de acontecer aconteceu: o casal caiu numa greta profunda.

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No domingo, ao não os ver de volta, os aldeães imaginaram o pior. Assim mesmo, organizaram uma expedição para explorar a geleira e tentar encontrar os caminhantes sumidos. Depois de dois ou três dias de busca, foram obrigados a aceitar a realidade: os viajantes não voltariam mais. Os sete pequeninos órfãos ‒ a mais velha tinha onze anos ‒ foram distribuídos entre os vizinhos. A única coisa que sobrou do casal desaparecido foram duas ou três fotos, mais nada. Passaram-se as décadas.

As mudanças climáticas destes últimos tempos têm provocado estragos em muitos lugares. A elevação da temperatura média tem ocasionado recuo das geleiras e derretimento mais pronunciado da superfície. Faz duas semanas, um passante notou um objeto escuro pousado sobre o gelo. Imaginou que fosse uma pedra. Ao olhar mais de perto, deu-se conta de que se tratava de pertences humanos de aparência antiga. Acionou a polícia especializada em buscas de alta montanha. Constataram que se tratava de dois corpos mumificados, o de um homem e o de uma mulher.



Feitos os testes ADN(2), toda dúvida se dissipou. Tratava-se realmente do casal que desaparecera 75 anos antes. Avisados, os descendentes não se sentiram tristes, mas aliviados. Terminadas as incertezas, era chegado o momento de dar sepultura digna aos antepassados. Alguns dos filhos ainda vivem, entre eles a mais velha, hoje com 86 anos. Neste último sábado, realizou-se a cerimônia fúnebre do casal, com a presença de filhos, netos e bisnetos. Foram enterrados na aldeia de onde tinham saído numa manhã ensolarada.

As geleiras ainda guardam segredos. O derretimento destes últimos anos favorece o reaparecimento de desaparecidos. Assim mesmo, estima-se que só no Cantão suíço do Valais ainda haja despojos de 180 viajores sumidos.


31 de julho de 2017

José Horta Manzano



(1) Geleira (ou glaciar) é acidente geográfico ausente da paisagem brasileira. Consiste numa massa de gelo formada pela neve acumulada por muitos séculos. A tepidez do verão não é suficiente para derreter a neve caída no inverno. Quando volta a estação fria, a neve superficial, de consistência meio mole, endurece e se solda às camadas inferiores. E assim por diante, neve, ligeiro derretimento, mais neve, num ciclo sem fim.

(2) ADN é o Ácido DeoxiriboNuclêico, curiosamente conhecido no Brasil pela sigla inglesa DNA.

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