domingo, 21 de agosto de 2011

O HERÓI E O ANTAGONISTA

A política, como a literatura, serve-se de fórmulas e esquemas para revestir de encanto e carisma seus personagens. Tão importante quanto o herói, ensina Joseph Campbell, é o antagonista, o anti-herói. Não há como conceber um sem o outro, e o herói será tão mais fascinante quanto mais cruel for o antagonista.

O antagonista fabricado pelo PT para gerar o herói Lula chama-se Fernando Henrique Cardoso. Lula é o operário que, galgando as adversidades impostas por uma sociedade injusta e preconceituosa, triunfou. Já FHC, nascido em berço esplêndido, não só desdenharia dessas dificuldades, mas se empenharia em agravá-las.

Nasce desse esquema reducionista a idéia do “eles” (as elites) e “nós” (o povão), emblema dos discursos de Lula. Aplicado à história do Brasil, dá curso à versão do “nunca antes neste país”, que precede o anúncio de todas as realizações do governo Lula.

O Brasil popular e justo, dentro desse esquematismo, foi fundado em 2002; antes, pertencia às elites, que só o exploraram. Como o vilão perde força ao ser projetado abstratamente numa classe social, é preciso dar-lhe rosto, voz, perfil. FHC encaixou-se no molde, independentemente de sua biografia o desmentir.

Em política, ensinava a velha raposa José Maria Alckimin (não confundi-lo com Geraldo Alckmin, que nem seu parente é), vale a versão, não o fato. A própria frase, cuja autoria é de Gustavo Capanema, acabou atribuída a Alckimin, que com ela entrou para a história, atestando a veracidade de seu enunciado.

Nada disso, porém, resiste a um exame, ainda que superficial. As biografias de FHC e de Lula como homens públicos os colocam lado a lado até o momento em que o primeiro chega ao poder. Fernando Henrique apoiou os movimentos operários do ABC nos anos 80, que deram visibilidade a Lula.

E Lula foi um dos cabos eleitorais de FHC nas eleições para a prefeitura de São Paulo em 1985. Estiveram juntos nas campanhas pela anistia e pelas diretas já. As divergências começaram exatamente na redemocratização, quando o PT adotou a estratégia de isolamento partidário, para “não se contaminar” com os políticos tradicionais, sustentando que não havia diferença entre Tancredo Neves e Maluf, farinhas do mesmo saco, expressões das “elites”.

Era já a construção do mito, embora o maniqueísmo não fosse ainda tão nítido, o que ocorreria exatamente nos governos de FHC. Mas, em 1º de janeiro de 2003, ao receber a faixa presidencial de Fernando Henrique – e isso está devidamente registrado nos inúmeros vídeos feitos na época -, Lula disse emocionado, abraçando seu antecessor: “Fernando, aqui você terá sempre um amigo”.

Durou pouco a emoção. Já no dia seguinte, José Dirceu, todo-poderoso chefe da Casa Civil, fazia menção à “herança maldita” do antecessor. A expressão foi (e ainda é) repetida à exaustão, mesmo sem qualquer fundamentação, quando dificuldades precisam ser explicadas. Os fatos mostram, no entanto, que a herança é benigna, pois garantiu a estabilidade econômica e o êxito da plataforma desenvolvimentista que o governo Lula pôde pôr em cena.

O Fome Zero capitulou à fórmula anterior da Rede de Proteção Social, implementada por Ruth Cardoso – e criticada fortemente por Lula (há vídeos também, disponíveis no Youtube, que o atestam). O Bolsa Família descende dos programas sociais do governo FHC (Bolsa Educação, Vale Gás, Vale Transporte, Vale Alimentação).

Lula reuniu-os sob rótulo único e, graças a uma logística eficaz pré-estabelecida, pôde expandi-los, como certamente continuará a fazê-lo o seu sucessor, seja lá quem for. São conquistas cumulativas – e consolidadas.

Os números triunfais de hoje na economia e a resistência do sistema bancário brasileiro ao terremoto financeiro de 2008 decorrem de medidas adotadas para consolidar o Plano Real (ao qual o PT se opôs), como a Lei de Responsabilidade Fiscal (que em maio completa 10 anos) e o Proer (Programa de Estímulo à Reestruturação e ao Sistema Financeiro Nacional), igualmente combatidos por Lula e PT.

Lula mostra imenso talento na sustentação do mito. Talento raro, que o projeta como um dos mais populares governantes da história. Critica as privatizações, mas capitaliza os seus resultados econômicos e sociais, como se não houvesse conexão entre ambos. Condena o “neoliberalismo”, mas o mantém a pleno vapor, sob o comando de um ex-tucano, o presidente do Banco Central, Henrique Meirelles, que Lula queria como vice de Dilma.

O desafio presente, mais complexo, é encaixar José Serra no figurino de anti-herói. Também ele é um emergente, de origem modesta. Também ele foi um perseguido político. Nada disso, porém, o impediu de tornar-se um economista renomado, experimentado no exercício de numerosos cargos técnicos e eletivos.

Daí a opção por uma campanha eleitoral plebiscitária, que mantenha em cena o vilão FHC em contraponto ao herói Lula. É uma fórmula que já deu frutos e Lula está certo de que continuará a dá-los. O problema é que o herói (Lula) não se parece nem um pouco com Dilma, nem o vilão (FHC) com Serra.

Ruy Fabiano é jornalista

COMENTÁRIO

Quando leio um artigo que pretende definir o perfil de Lula, do homem e do mito politicamente fabricado pelas oportunidades e circunstâncias muito bem aproveitadas por ele, recorro a alguns depoimentos, principalmente sobre artigos e outros escritos produzidos por Josê Nêumane Pinto. Todas as informações coletadas até agora, encontram uma unidade de sentido na entrevista que Nêumane concedeu, e cujo vídeo coloquei aqui neste blog.
Por ter convivido com o homem e acompanhado de perto muitas cenas do teatro encenado por Lula, José Nêumane sabe claramente onde começa o mito, as artimanhas usadas para produzi-lo, e as pequenas atitudes que já revelavam o caráter e a disposição do político para as grandes ilicitudes.
E a importância do seu depoimento, apesar de muitas peças do quebra-cabeça não terem sido encaixadas, como ele mesmo declara, o desenho nem por isso deixa de ser nítido, trazendo-nos a figura complexa e contraditória de uma personalidade forjada no sindicato, onde aprendeu a arte de enganar e de negociar. E negociar e enganar são as grandes virtudes políticas que habilmente levou para o poder.
Vejo apenas uma afirmação duvidosa de Nêumane, quando considera com muita ênfase, tratar-se de um "gênio da política". Não comungo com essa afirmação. Diante da extrema pobreza política que nesses últimos tempos vive o Brasil, não é difícil a um mistificador enganar toda a gente por algum tempo. Nesse cenário político anêmico, falta um Carlos Lacerda, um Leonel Brizola (que bem definiu o PT como sendo uma UDN de tamanco e macacão), um discurso de autêntica oposição, para colocar a verdade em seu lugar. Um tempo de trevas políticas em que qualquer falastrão habilidoso, consegue usar as suas deficiências, como se fossem virtudes, para enganar uma massa de eleitores de pouca ou nenhuma instrução.
Nada de socialista, de comunista... Apenas um habilidoso oportunista.
Como casar o "gênio político" com a devastação semeada pela corrupção e pelo cinismo, transformando, pela omissão, a desonestidade em costume político?
Um depoimento importante, que aproxima o homem e o político, com seus vícios e suas contradições.
Uma entrevista preciosa que joga muita luz para se compreender alguns ângulos pouco claros do seu comportamento como homem público, que é o que interessa.

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