quarta-feira, 19 de outubro de 2011

BEBÊS TERCEIRIZADOS


“O problema é que as mulheres da minha geração foram educadas para estudar, trabalhar e buscar independência. Vivo um conflito. Além de tudo, não vejo sentido em ter um filho para deixá-lo em casa com a babá ou na melhor das escolas. Não sei se teria estrutura emocional para aceitar terceirizar a criação do meu filho”

A autora do depoimento você vai conhecer mais tarde, ao longo do texto. O fato é que algo de diferente anda acontecendo com as famílias brasileiras. Basta abrir álbuns de fotografias de 50 anos atrás e compará-los às imagens de casais capturadas nos últimos 20, 10 anos para enxergar que nossos avôs estavam bem mais cercados de crianças do que nós. As estatísticas populacionais mais recentes no Brasil confirmam o que os álbuns sugerem: temos cada vez menos filhos.

Nada a ver com a taxa de fertilidade. De acordo com um estudo do economista Marcelo Neri, da Fundação Getulio Vargas, o país está até produzindo mais mães. É cada vez maior o número de mulheres que chegam à maternidade, inclusive depois dos 40 anos. A diferença é que, na média, elas têm menos filhos do que antes e, cada vez mais, adiam a maternidade. “Esses números refletem o desenvolvimento social do país”, diz Neri.
Poucas crianças em casa indicam que o casal, principalmente a mãe, tem alta escolaridade e razoável poder aquisitivo, até mesmo para poder terceirizar a educação do bebê logo após os quatro meses de licença maternidade.

“O comportamento reprodutivo do brasileiro de classe média alta é similar ao do povo que vive em Londres”, diz o cientista político Sergio Abranches. As atuais projeções sugerem as mulheres estão produzindo o número suficiente de bebês para substituir a população existente.

E, dentro dessa classe média que vai voluntariamente reduzindo a fertilidade, há um subgrupo que simplesmente decidiu não exercê-la. Nas estatísticas populacionais européias, a tendência vai ficando clara. No Censo Nacional de 2001 da Grã-Bretanha, uma entre cinco mulheres britânicas em idade de ter filhos não tinha nenhum. No passado, mais de 90% das mulheres com essa idade já teriam tido filhos. No mundo ocidental, hoje, os demógrafos calculam que entre 16% e 25% dos casais não queiram mais mamadeiras pela casa.

No Brasil, embora nunca tenha sido feito um cálculo preciso do fenômeno, também há muitas mulheres que fizeram a opção de não colocar crianças no mundo. “Eu prefiro mil vezes viajar a ter que trocar fraldas, fazer uma pós-graduação a pagar maternal e colégio, trocar de automóvel todo ano a comprar triciclos, ir a um bom restaurante a gastar fortunas com comidas da Nestlé”, diz Sandra Marckovicky, 35 anos, solteira.

A escolha de Sandra e tantas outras tem, muitas vezes, um custo social. Que mulher já não teve vergonha de assumir em público que não sente vontade de gerar um bebê? A “platéia” sempre reage mal e não falta quem faça a pergunta um tanto imbecil: “Por quê? Você não gosta de crianças?”
É constrangedor e irritante. Procriar virou uma imposição da sociedade. Optar por não ter filhos é quase um crime.

Mas a tendência é crescente – e parece irreversível. Tatiana Pignatari, 38, economista, casada há 8 anos com o arquiteto Diniz Pignatari, 52, não deseja ter filhos – pelo menos não agora, faz a ressalva.

Não é mesmo fácil defender essa posição. Basta tocar no assunto que mulheres como Tatiana são imediatamente tratadas como uma versão feminina e moderna de Herodes e, além de obrigadas a responder gostam, sim, de crianças, mas na casa das outras, ainda têm de ouvir: “Você não acha que um filho complementa a vida de um casal?”

Não, muitas mulheres e homens não acham. “Na verdade, acho que o desejo de formar uma família é fruto da educação que recebemos, das nossas referências. A família é a base, o colo eterno, a continuidade”, responde Tatiana, sem deixar de apontar para as contradições que enxerga em todo o processo. “O problema é que as mulheres da minha geração foram educadas para estudar, trabalhar e buscar independência. Vivo um conflito.
Além de tudo, não vejo sentido em ter um filho para deixá-lo em casa com a babá ou na melhor das escolas. Não sei se teria estrutura emocional para aceitar terceirizar a criação do meu filho”, diz.

Parece que o culto à hereditariedade impõe uma cegueira. Mal nos importamos com a ameaça à sobrevivência de milhões de exemplares da nossa raça nem com a superpopulação que afeta a qualidade de vida na Terra. Queremos nossos filhos. A contradição chegou ao ponto de casais incapazes de gerar uma criança recorrerem a milagres científicos para ter filhos. Desconsideram a possibilidade de uma adoção – que poderia ajudar a salvar um semelhante – e a situação de “lotação esgotada” na qual vivemos. Trigêmeos e quadrigêmeos fabricados através de um processo induzido, à base de medicações e muita perseverança, estão aí para contar essa história.

No Brasil, o questionamento a este culto cego à hereditariedade começou nos anos 60 do século passado, quando chegou por aqui o livro “O Segundo Sexo”, de Simone de Beauvoir. Segundo a pensadora francesa, a mulher tinha de se libertar economicamente e os filhos eram obstáculos, entraves, uma responsabilidade que impediria a mulher de assumir outras e mais urgentes funções que a de mãe. A escritora foi uma das precursoras do feminismo e fez o Brasil começar a repensar o papel da mulher na sociedade.

A antropóloga e professora da UFRJ, Mirian Goldenberg, em reportagem publicada na revista “TPM”, afirma que os frutos do movimento feminista só foram possíveis porque, depois da pílula, inventada no fim dos anos 50, podia-se controlar a maternidade. Segundo Mirian, foi a partir daí que nós, mulheres, evoluímos para o que se vive hoje, uma certa busca pelo meio do caminho. Traduzindo: estamos correndo atrás da nossa essência – aquela que Joseph Campbell, escritor e mitólogo, assim anunciou: “a mulher afastou-se da terra, desconectou-se da própria natureza e passou a andar longe de sua essência. Para as sociedades primitivas, a mulher dá à luz assim como a terra faz brotar plantas”.

A coisa se complica quando elas tomam a decisão de reverter o processo de que fala Goldenberg e se reconectar com a natureza, mas a natureza já não quer dessa conexão. Muitas vezes, a revisão de atitude acontece quando não é mais tão fácil engravidar naturalmente.
A saída são os tratamentos de fertilização. E o resultado, bebês demais, quase sempre acima do desejado. Roger Abdelmassih, especialista em reprodução assistida, é dono de uma das clínicas mais requisitadas no país, localizada nos Jardins, em São Paulo.
Em dez anos, dos oito mil bebês de proveta nascidos no Brasil, aproximadamente 2,6 mil foram gerados na sua clínica, entre eles os gêmeos de Pelé e o herdeiro de Gugu Liberato. “As mulheres que engravidam através de tratamentos de fertilização têm, em média, 30% de chance de ter bebês gêmeos”, afirma.

Cristina Soares, 43, é casada com João Paulo Penido, 64. Ambos vivem em Salvador, com seus quadrigêmeos Ricardo, Luiza, Beatriz e Vicente. Quando se conheceram, João Paulo já era pai de três filhos e havia feito vasectomia. Como Cristina, que sempre teve o desejo de gerar um bebê, não estava disposta a desistir de seu sonho, o casal procurou a clínica do Roger Abdelmassih. “Nossa surpresa, obviamente, foi enorme no primeiro ultra-som. Quando o médico viu três pontinhos (quinze dias depois, apareceu mais um), o susto foi grande, mas não o suficiente para nos roubar a felicidade de realizar um sonho”, conta a mãe em dose quádrupla.

silvia pilz

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