Como é viver aos 90
por ROGER ANGELL
Veja isto aqui. Se observar as juntas superiores dos
dedos da minha mão esquerda vai pensar que fui torturado pela KGB. Melhor, é
como se eu fosse um apanhador agarrando as bolas do famoso Candy Cummings, o
inventor do lançamento em curva e que largou o beisebol em 1877. Para dizer de
outro modo, se eu apontasse uma arma para você com essa mão, mirando seu nariz,
a bala atingiria seu joelho esquerdo. Artrite.
Estou com 93 anos e me sinto bem. Para ser sincero, me sinto muito bem, a menos que nas últimas quatro ou cinco horas eu tenha esquecido de tomar os comprimidos de Tylenol; nesse caso, daqui a pouco vou começar a sentir umas pequenas dores agudas descendo pelo antebraço esquerdo até a base do polegar. Herpes-zóster, em 1996, e os consequentes danos nos nervos.
Tal como muitos homens e mulheres de idade avançada, eu me viro com uns tantos stents arteriais que permitem que o coração continue batendo. Também tenho uma minúscula concha plástica que prende e fecha um orifício congênito no coração, descoberto quando eu já estava com 80 e poucos anos. No hospital Mass General, o cirurgião que consertou esse FOP (um Forame Oval Patente – adoro dizer isso) era um ator especializado em personagens incomuns, nascido no México, que além de usar tamancos e colar de miçangas era um ardoroso fã do jogador de beisebol Derek Jeter.
Com essa cirurgia e a colocação dos stents, assim como uma passageira angioplastia com balão e dois ou três alarmes falsos, virei uma espécie de veterano das mesas de exame, impassível diante de câme-ras de raio X postadas sinistramente acima do meu corpo nu em uma sala de cirurgia escura e gélida; lá no alto a pequena tela de tevê exibe meu coração como um lustre suspenso amarrado a veias e artérias pegajosas. Mas nada disso importa. Tomo um betabloqueador cor-de-rosa e uma estatina branca já no café da manhã, junto com várias outras pílulas menos importantes, e saio rumo à academia para ruínas humanas – e assim se passaram alguns anos desde o meu último problema de saúde.
Embora mais grosso, meu joelho esquerdo é menos firme que o direito. Foi jogando futebol em priscas eras que ele estourou, mas ultimamente não me lembro de sentir nada de errado por aquelas bandas. Marquei uma cirurgia para substituir a articulação do joelho, a ser realizada por um especialista famoso (cujo nome aparece no programa do Metropolitan Opera, na coluna dos principais apoiadores), mas mudei de ideia na última hora, optando por outra solução – injeções de pelo de rã sintético ou crista de galo, uma coisa assim –, e as dores que me atormentavam milagrosamente desapareceram. Agora, ao caminhar na rua, sempre uso bengala – “Para de apontar isso!”, me lembro da Carol, minha mulher, me dando bronca –, o que me proporciona uma ligeira e agradável vantagem na hora de chamar um táxi.
A região médio-inferior da coluna está torta e sinuosa como uma estradinha secundária em Connecticut, resultado de uma hérnia de disco surgida há sete ou oito anos. Uma brincadeira que me custou 6 ou 7 centímetros de altura: já fui como Gary Cooper e agora estou mais para Gepeto. Depois de passar dias gemendo no chão, me aplicaram uma bendita anestesia epidural, pondo fim ao tormento. “Agora você pode sentar”, disse o médico, tirando da cabeça a touca de banho. “Me diga uma coisa, já ouviu falar de Dominic Chianese?”
“Não é o Tio Júnior?”, respondi, confuso. “Daquela série... Família Soprano?”
“É, é ele mesmo”, disse. “Bem, a gente tem um quarteto de bandolins, e nas quartas à noite tocamos no hotel Edison. Será que você não poderia plantar uma notinha na New Yorker?”
Já passei por poucas e boas, mas consegui evitar o pior. Tenho consciência da minha sorte, e secretamente bato na madeira, agradeço por mais um dia e sinto um prazer furtivo por ter sobrevivido tanto. As dores e os insultos são suportáveis. Ainda que minha conversa talvez esteja ficando coalhada de lacunas e pausas, aprendi a enviar uma discreta patrulha apache até a frase seguinte, aquela que está despontando no horizonte, a fim de verificar se há algum lapso na paisagem mais adiante. Se me enviam sinais, faço uma pausa significativa, ahn-ahn, até que me ocorra algo diferente para dizer.
Por outro lado, ainda sei quem é Keats, ou Dick Cheney, e sempre me lem-bro do que preciso ir buscar na tinturaria. Por enquanto, ainda não estou como Christopher Hitchens, Tony Judt ou Nora Ephron; ou seja, não morri, tampouco vegeto numa instituição no interior do estado. O declínio e o desastre pairam sobre mim, mas prefiro não pensar nisso. Não me admira se, nessa mesma hora na semana que vem, eu estiver rodeado de parentes – todos tristes e chocados, mas também um pouco irritados por estarem ali –, decidindo, depois do ocorrido, o que fazer comigo.
Deve ser essa permanente sensação de ter sobre a cabeça um cofre de 2 toneladas pendendo da ponta de uma corda roída, que faz com que todos se mostrem tão contentes ao me ver de novo. “Nossa, você está muito bem! Qual é o segredo?”, exclamam bondosamente quando me encontram por acaso na rua ou deixando uma sala de raio X, enquanto no pequeno balão sobre suas cabeças dá para ler com toda a clareza: “Caramba – ele ainda consegue ficar de pé!”
Melhor seguir em frente. Tivemos um fox terrier de pelo liso, o Harry, que sempre vinha com surpresas. Desenfreadamente sociável, como tantos de sua raça, o amadurecimento o tornou um pouquinho mais contido, e ele aprendeu a cultivar um relacionamento animado e particular com cada novo visitante ou velho conhecido que encontrasse na sala de estar.
Quando os meus amigos chegavam para jantar em casa, ele despertava da soneca do início da noite e, tranquilo, rodeava a mesa, arremedando o maître de um restaurante três estrelas: Tudo bem com vocês? Está faltando algo? Como estava o crème brûlée? Embora os terriers não sejam cães aquáticos, Harry apreciava quando saíamos de caiaque no Maine, sentado imóvel como uma carranca entre as minhas pernas durante uma hora ou mais, mirando os corvos-marinhos e os iatistas de passagem.
De volta à cidade, consolidou na vizinhança sua beleza e fama de simpático a ponto de uma artista local chegar a fazer retrato a óleo dele, de frente, com técnica pontilhista, usando como base uma foto que ela tirou furtivamente no Central Park. Harry partiu (outra das suas surpresas) numa tarde de junho há três anos, poucos dias depois de completar 8 anos. Sozinho em nosso apartamento no 5º andar, como sempre durante o dia, ele ficou desconcertado com uma forte trovoada e saltou de uma das janelas da sala – que tinha ficado ligeiramente aberta devido ao calor sufocante daquele dia. Eu o conhecia bem e pude imaginar o que ele deve ter sentido na breve duração dessa queda: o frescor bem-vindo da chuva no focinho e nos ombros, a vibração do ar e do espaço livre em volta do corpo estirado.
Agora na minha décima década, posso testemunhar que a desvantagem da idade avançada é o espaço que se abre para notícias desagradáveis. Viver muito já é mais que suficiente. Quando Harry se foi, Carol e eu não conseguimos segurar as lágrimas; dispusemos o corpo dele no banheiro, sobre um tapetinho, e ficamos admirando os trechos pardos mais claros no dorso e o tom quase preto das orelhas ainda escurecidas pela chuva, passando de um para o outro uma caixinha com lenços de papel. Nem todas as lágrimas eram para ele. Dois meses antes, minha linda filha, a mais velha, dera um fim à vida, e a força e o mistério oceânicos desse acontecimento não haviam deixado espaço ao pranto. Podíamos enfim chorar sem trava nenhuma, por Harry, por Callie, por nós mesmos. Harry nos libertou.
Fazer uma ou outra observação sobre a idade é o que pretendo aqui, mas é inevitável que eu me estenda um pouco sobre a perda. “A maioria das pessoas da minha idade já morreu. Pode conferir”, como disse o jogador Casey Stengel, que na época tinha 75. Para os sociólogos, na atual sociedade talvez a frase de Casey fosse mais apropriada à faixa dos 85 anos, mas a ideia continua valendo.
Nós, os tiozinhos, carregamos uma agenda atulhada de nomes dos nossos mortos: maridos ou esposas, filhos, pais, amantes, irmãos e irmãs, dentistas e analistas, companheiros de trabalho, amizades de férias, colegas de escola e chefes – em algum momento, conhecemos todos eles, integraram nossa inabalável paisagem cotidiana. Não me admira, portanto, que estejamos um tanto encurvados. Mais surpreendente, para mim, é o fardo crescente de essas partidas não terem nos soterrado, e que mesmo a dor de uma perda quase intolerável logo ceda lugar a uma sensação mais distante, ainda que insistentemente bruxuleante.
Os mortos se foram, mas seus gestos, olhares e tons de voz, e até mesmo algumas peças de roupa – aquele lenço amarelo-pálido da Saks – ressurgem de modo inesperado, tal como os respectivos laivos de ternura ou irritação.
Nossos mortos quase são em número maior do que podemos contar, e queremos arrebanhá-los, conduzi-los e encerrá-los em alguma parte a fim de mantê-los em ordem. Gosto de pensar nos meus como se fossem companheiros de um cruzeiro a bordo do Île de France (uma ideia surrupiada do filme Outward Bound). Ali está meu pai, ainda muito elegante em seu smoking, acendendo um Lucky Strike. E Ted Smith, prestes a mencionar sua cida-de natal, Gloucester. E, mais adiante, Slim Aarons. E Esther Mae Counts, do 4º ano do primário: como vai, Esther Mae? Olha ali o Gardner – com Cecille Shawn, por alguma razão. Veja, é o Ted Yates. Anna Hamburger. Colba F. Gucker, mais conhecido como Chefe. Bob Ascheim. Victor Pritchett – e Dorothy. Henry Allen. Bart Giamatti. Minha prima mais velha, Jean Webster, que casou tardia e inesperadamente com um inglês, Capel Hanbury. Kitty Stableford. Dan Quisenberry. Nancy Field. Freddy Alexandre. Olho ao redor em busca de outros e às vezes quase consigo evocar alguém a meu bel-prazer. Callie está de volta, num telefonema. “Pai?” É ela, não há dúvida, sua voz um pouco mais alta, mas terna – “Pa-ai?” –, com uma ponta de impaciência. Está com pressa. E agora Harold Eads. Toni Robin. Dick Salmon, o rosto afogueado de tanto rir. Edith Oliver. Sue Dawson. Herb Mitgang. Coop. Tudie. Elwood Carter.
Esses nomes – melhor armazenados na memória do que encaixotados e removidos para algum lugar. Velhas cartas são interessantes, mas em conjunto lembram documentos históricos, e os álbuns de fotos, embora encantadores, deixam um travo soturno, como calda de chocolate. Já os filmes amadores são sensacionais: Zeke, um labrador há muito desaparecido, de novo vivo, correndo de um lado para o outro com a bola de tênis na boca; minha irmã Nancy, arrasadoramente linda aos 17, fumando um cigarro manchado de batom a bordo do Astrid, a brisa agitando o cabelo castanho preso num rabo de cavalo; minha mãe rindo, e mais uma vez escapando para fora do quadro, agitando constrangida as mãos diante do rosto – tinha na época uns 35 anos. E eu, aos 11, sentado de pernas cruzadas, debaixo de uma mesa de pingue-pongue. Ó, nos deixe em paz.
Minha lista de nomes é banal mas assombrosa, e não passa de uma fração ínfima: são apenas aqueles que emergem em um ou dois minutos. Todos com mais de 60 anos sabem disso, mas só que tem uma diferença: minha lista é mais comprida. Não que eu fique repassando com frequência, mas, quando acontece, o batalhão de mortos lá está, a postos, alerta e de prontidão. Por que eles me apoiam tanto, me alegram tanto, me recordam da vida? Não entendo. Por que não me vejo tomado de uma tristeza sem fim?
Agora, o que realmente importa é o atendente de jaleco branco da memória, me passando em silêncio as amostras laboratoriais de mim mesmo. Dias antes de morrer, há quase dois anos, Carol ficou semiconsciente na cama, em casa, alternando períodos em que respirava de maneira fraca ou imperceptível e outros nos quais a respiração era profunda, entrecortada e ofegante. Em seguida, num gesto delicado, passava levemente a ponta da língua na arcada superior dos dentes. Vez após outra esse mesmo gesto se repetia. Já me esqueci – graças a Deus, talvez – de tanta coisa que ocorreu naquela derradeira semana e nas semanas seguintes, mas essa é uma imagem que sempre volta.
Carol continua por aqui, ainda que nem sempre eu possa contar com ela. Durante quase um ano, eu costumava despertar da breve soneca do final da tarde na poltrona da sala e, por um momento, antes de recobrar a lucidez, eu a sentia sentada na outra cadeira, bem em frente. Não era um fantasma, mas uma presença, tão viva quanto antes e no mesmo instante de novo desaparecida. Ocorria com frequência, e quase cheguei a contar com isso, mesmo sabendo que não iria durar. E um dia acabou.
Gente da minha idade, e também amigos mais jovens, parece ser capaz de relembrar quadros inteiros da infância, assim como trechos da aurora de suas vidas: conversas, determinadas comidas, festas de aniversário, doenças, piqueniques, pousadas de férias, idas ao balé, aquela vez em que...
Não é o que acontece comigo, e isso me incomoda, mas aí, sem qualquer aviso, do nada, algo emerge. Estou andando pela Ludlow Lane, em Snedens, com minhas duas filhas pequenas, numa manhã de verão, anos atrás. Tenho quase 40 anos, e elas, 9 e 6, e estou me queixando da subida íngreme até a nossa casa, no alto da colina.
Talvez eu esteja ficando velho, comento. Em seguida, digo que um dia vou ficar velho de verdade e elas vão ter que cuidar de mim. Imito um velho balbuciando algo sem sentido e começo a andar com passos trôpegos. Callie e Alice dão gargalhadas e me amparam, uma de cada lado. Quando paro, elas querem mais, e repetimos a cena sem parar.
Estou renunciando a muita coisa, claro. O trabalho – bem, ainda estou trabalhando, mais ou menos. Leio muito. O mundo que desmorona, e sua inevitável insistência. Coisas que me deixam o tempo todo excitado ou deprimido. A rotina diária – mas como explicar isso? Talvez com o comentário recentemente feito no Facebook por uma mulher que conheço e vive na Austrália. “Santo Deus, acabou a noz-moscada!”, ela diz. “Como isso foi acontecer?” Nos últimos tempos, é assim que correm muitos dos meus dias.
Pessoas íntimas e parentes – estes, no meu caso, agora não tão próximos, mas sempre ao alcance, sempre ao meu lado. Meus filhos Alice e John Henry e a minha nora Alice – pois é, mais uma Alice–, e minhas netas Laura, Lily e Clara, que juntas e separadamente se mostraram tão implacáveis quanto um pelotão de fuzileiros navais no dia em que enterramos Carol. E também em outros dias, e de outras maneiras. Por exemplo, Laura, que, quando necessário, aparece quase de um dia para o outro pronta a me levar de carro, juntamente com meu cão e minhas coisas, por 800 quilômetros até a costa do Maine, e depois refaz o mesmo trajeto de volta no final do verão. Horas de conversas e de sono (meu, não dela) e renovação – os moinhos abandonados em Lawrence, Massachusetts, a Cat Mousam Road, o rio Narramissic ainda por lá – além de um par de noites em comum, à luz das velas do verão.
Amigos em profusão me levam para jantar ou cozinham para mim em casa. (Uma tarde, topei com um frango recém-assado diante da minha porta; duas horas depois, outro surgiu no mesmo lugar.) Amigos me convidam para a ópera, ou para ir ao supermercado no domingo de manhã, ou para jantar com seus filhos numa delicatéssen, ou para um casamento na capela Rockbound, ou aparecem em casa com sorvete para assistirmos a mais um jogo dos Yankees. Eles me salvaram a vida. No primeiro verão depois que Carol se foi, conversei com um conhecido não muito próximo, mas que há décadas eu encontrava com prazer, sobre rotinas alteradas, médicos, passeadores de cães, e sobre a revista. Então fiz uma pausa, e ele disse: “Além disso, você tem a gente.”
Numa ocasião anterior, ouvi outra frase, também breve e comovente. Certa tarde, numa época em que pensava ter perdido quase tudo, disse a meu analista de longa data: “Não sei como vou superar tudo isso.” Silêncio, e aí: “Também não sei. Mas você vai conseguir.”
Sou um resmungão de primeira, mas admito que me invade uma alegria inegável diante do meu uísque Dewar’s no começo da noite, de Robinson Cano entre os batedores de bei-sebol, das páginas iniciais (mais uma vez) de Encontro em Samarra ou dos últimos versos de “Poem”, de Elizabeth Bishop. Quando ouço os mais breves acordes de Handel ou Roy Orbison, ou Dennis Brain tocando os primeiros compassos de seus assombrosos concertos de Mozart para trompa. (Esse disco da gravadora Angel talvez tenha sido uma das primeiras compras que Carol e eu fizemos logo depois do casamento, e posso ouvi-lo em uma manhã ensolarada de domingo na vitrola do apartamento sem elevador da rua 94.) Também os rostos relembrados e depois os nomes de Jean Dixon ou Roscoe Karns ou Porter Hall ou Brad Dourif em mais uma reprise no Netflix. Chloë Sevigny em Ponto de Encontro. Gail Collins num de seus dias bons. Patinação no gelo com a família perto do Harlem na década de 80, com os empregados do parque, chapados de juventude ou de fumo, girando ao nosso redor e sorrindo.
Pesquisas recentes e não tão recentes (entre as quais o Grant Study, que acompanhou por seis décadas alguns alunos de Harvard formados na década de 40) confirmam que a maioria de nós, com mais de 75 anos, continua a se surpreender com momentos felizes. Podem me incluir nessa lista. Nossos filhos são adultos e vivem suas vidas – que, esperamos, sejam plenas e satisfatórias. Quanto a nós, as ambições ficaram para trás. Se nossas mulheres ou maridos conti-nuam com a gente, sentimos um fio de contentamento escorrendo das confiáveis nascentes da rotina, da afeição palpitante em longos silêncios, da calma presente no ligeiro tédio de velhos amigos, das histórias repetidas, das opiniões antiquadas. E também o débil resfolegar dos golfinhos emergindo à superfície do mar sob nossas janelas noturnas.
Nós, os matusaléns – mas, afinal, que espécie de criatura é essa, algo entre uma árvore e uma enguia? –, nós, os mais velhos, aprendemos um ou dois truques, entre os quais o da invisibilidade. Estou conversando com amigos de confiança – velhos amigos, ainda que na verdade não tão velhos assim: estão na faixa dos 60 – e, enquanto matamos o vinho, discutimos um assunto sério, como o aquecimento global em Nyack ou o travestimento de Virginia Woolf. Aproveito uma pausa e falo alguma coisa. Eles me olham com cortesia e então retomam a conversa exatamente no ponto em que haviam parado. Como assim? Com licença? Não acabei de dizer algo? Por acaso deixei a sala? Ou tive o que os neurologistas chamam de AIT – Acidente Isquêmico Transitório? Não era minha intenção dominar a conversa, mas algum tipo de reação cairia bem. Não nessa noite, porém. (Há conhecidas minhas que começaram a notar isso depois dos 50.) Quando menciono o fenômeno a alguém na minha faixa etária, recebo acenos de cabeça e sorrisos de confir-mação. É verdade, passamos a ser invisíveis. Estimados, respeitados e até amados, mas não mais interessantes a ponto de valer a pena prestar atenção em nós. Você já teve a sua vez, tio; agora é a nossa.
Venho me perguntando por que não penso sobre essa visitante prestes a chegar, a morte. Ela não me saía da cabeça há três ou quatro décadas, se bem que como uma estranha. Naquela época a morte me apavorava, pois eu tinha muitos compromissos. A situação oposta e compulsória – nenhum encontro para jantar ou exercícios de sedução, nenhum negócio urgente, nenhuma diversão, nenhuma chamada, nenhum afazer, nenhum toque ou palavra de resposta – deixou um vazio que eu não posso avivar nem preencher: uma situa-ção que conhecia de pesadelos infantis e despertares bruscos. Bem, ainda não, pelo menos não logo mais, provavelmente não, assim eu costumava me consolar e, com o passar do tempo, esse adiamento bem-vindo, mas tediosamente repetido, acabou virando menos uma ameaça do que uma obrigação familiar – chá com a tia Molly em Mont-clair, um dia desses, mas não agora. Enquanto isso, a morte estava constantemente no palco ou mudando de traje para a cena seguinte – como o carrancudo jogador de xadrez do filme de Bergman; o cavaleiro noturno de rosto encoberto da Idade Média; o visitante desajeitado de Woody Allen, tropeçando ao entrar no quarto pela janela; o sujeito de camisola reluzente em W.C. Fields – e no meu espírito ela deixou de ser um espectro para se tornar uma celebridade pouco importante, esperando a hora de ser entrevistada no programa de David Letterman.
Ou quase isso. Alguns conhecidos meus pareciam ter perdido todo o medo quando agonizavam, chegavam até mesmo a aguardar o fim com impaciência. “Estou cheio de ficar aqui deitado”, disse um deles. “Por que está demorando tanto?”, perguntou outro. A morte vai acabar batendo à minha porta, e ficar por muito tempo, e mesmo que não esteja ansioso por tal encontro sei que agora já a conheço quase que bem demais.
Em mim, e em todos nós, também há outro tipo de fastio em relação à morte, embora a gente mal se dê conta disso. Nós nos tornamos seus incansáveis voyeurs: ela está no noticiário, na edição matutina, na noturna e também na da hora do almoço – não estou me referindo à morte de celebridades, mas à morte de todos nós, os mais comuns dos mortais. Alguém atropelado à beira da estrada, coberto com um lençol. Uma família morta, retirada de um prédio em ruínas, esburacado por balas, bem longe daqui. Os mortos em acidentes de trânsito. Os mortos em inundações, furacões e tsunamis, incluídos na categoria “vítimas”. Os caídos em combate, apresentados em silêncio na tela da tevê, com aparência jovial e bem cuidada. Os inimigos abatidos no campo de batalha, os recém-descobertos mortos em guerras, em quantidade cada vez maior. Números assombrosos e atordoantes não só das guerras deste ano, mas das anteriores, e de outras mais antigas, e das quais alguns de nós até participaram. Todas as mortes em conflitos, acidentes naturais, tiroteios em escolas, crimes urbanos, brigas domésticas de que cada um de nós escapou por pouco – e diante das quais nos sentimos mal, e pretendemos visitar os locais e deixar coroas de flores ou flores de papel.
Não há como negar: nunca há nada de novo quando se trata da morte, com exceção de seu aperfeiçoamento. Mesmo que de segunda mão, nós nos tornamos peritos em morte; sabemos mais a seu respeito do que os médicos-legistas, nos sentimos tão à vontade com ela quanto aqueles pobres-diabos de séculos atrás tentando sobreviver a epi-demias que devastavam continentes.
A morte é uma merda, mas... – bem, é melhor mudar de canal.
Eu vou levando. Vez por outra me ocorre que, aparentemente, tenho mais vigor e esperança que alguns de meus coetâneos, mas não é o caso de- me vangloriar. Não frequento clubes de leitura ou de bridge; não estou aprendendo mandarim nem progredindo em algum instrumento. Em um esforço esporádico para evitar que o cérebro seja tomado pelo bolor, comecei a decorar poemas curtos – de Auden, Donne, Ogden Nash e outros –,- que recito para mim mesmo quando, à noite, saio com o meu fox terrier Andy, o sucessor de Harry.
Também passei a escrever um blog, e estou gostando da facilidade e liberdade dessa forma de publicação: é um pouco como fazer aviõezinhos de papel e depois observar como se saem quando arremessados da janela. Todavia, a essa altura não deveria talvez ter realizado algo mais erudito ou complexo do que isso – parágrafos tardios e sólidos, obras consistentes, referências substanciais no currículo? Ai, ai, temo que não. Os pensamentos sobre a idade são breves, muito breves. Não leio a Bíblia nem me apego a preceitos de vida, exceto talvez aos que o jornalista Walter Cronkite formulou para os velhos, mas que ele nunca declarou ao vivo: Jamais confie em gente metida. Nunca recuse uma bebida. Não despreze uma ereção em hipótese alguma.
Recorro a piadas, e até mesmo a piadas sobre a morte.
PROFESSOR: Bom dia, turma. Como este é o primeiro dia de aula, cada um de nós vai se apresentar. Vou chamar um- por um, e vocês vão dizer o nome e, talvez, o que o pai ou mãe de vocês faz. Vamos começar por você, aí no fundo...
MENINO PEQUENO: Meu nome é Irving e meu pai é mecânico.
PROFESSOR: Um mecânico! Obrigado, Irving. O próximo?
MENINA PEQUENA: Eu me chamo Emma e minha mãe é advogada.
PROFESSOR: Que bacana, Emma! O próximo?
OUTRO MENINO: Meu nome é Luke e meu pai morreu.
PROFESSOR: Puxa, Luke, que triste... Todos nós sentimos muito, não é, classe? Luke, você poderia nos dizer o que o seu pai fazia antes de morrer?
LUKE(agarra o próprio pescoço): Ele fazia “N’gungghhh!”
Nada mal – me disseram que os alunos do 4º ano primário adoram essa piada. Outra.
Um sujeito e sua mulher tentavam muito ter um bebê, mas nunca conseguiam. Passam os anos, e eles sempre insistindo, em vão. Como gostam muito um do outro, todo esse esforço é prazeroso, ainda que com o tempo aquilo comece a entristecê-los. Por fim, ela fica grávida e, depois de tomar o máximo de cuidado durante a gravidez, dá à luz um menino com 4 quilos e 200 gramas. O casal não se aguenta de tanta felicidade. Na mesma noite, ainda no hospital, ela pede ao marido que vá ao jornal local e coloque um anúncio de nascimento, para que todos os amigos fiquem sabendo da boa-nova. Na manhã seguinte, ela logo lhe pergunta sobre o anúncio.
“Claro que coloquei”, responde o marido. “Mas não fazia ideia de que essas notas no jornal fossem tão caras...”
“Como assim?”, pergunta a mulher. “Quanto foi?”
“Foram 837 dólares. Está aqui no recibo...”
“Nossa, 837 dólares!”, ela exclama. “Não pode ser! Você deve ter feito alguma coisa errada. Me conte tudo.”
“No jornal, a moça no balcão me entregou um formulário para ser preen-chido”, ele começa. “Escrevi o seu nome, o meu, e o nome e o peso do pequeno Teddy, assim como a data em que voltaríamos para casa e estaríamos recebendo os amigos. Devolvi o formulário, ela contou as palavras e perguntou: ‘E quantas inserções?’ Respondi que duas vezes por semana durante catorze anos. E foi só. Daí ela me apresentou a conta...”
Ouvi essa anedota mais de meio século atrás. Minha primeira mulher, Evelyn, e eu fomos convidados para um chá na casa de um casal mais velho e elegante que pouco antes havia se mudado para nossa pequena comunidade no condado de Rockland. Já haviam passado dos 70 e eram muito simpáticos, e naquela ocasião estávamos apenas nós quatro. Tínhamos acabado de nos conhecer e fiquei surpreso quando ele virou para a mulher e pediu que ela contasse a piada do casal que queria ter um filho. “Essa não”, ela replicou, “eles não vão gostar dessa...”
“Vão sim, querida – eles vão adorar”, ele insistiu com um sorriso. Eu me retorci por dentro e já me preparava para uma risada forçada quando ela começou, timidamente. Depois, claro, não conseguíamos parar de rir.
Mais tarde, na mesma noite, Evelyn comentou: “Você notou a expressão do Keith enquanto a Edie contava a piada? E a expressão dela? Você acha que eles ainda... sabe, continuam fazendo?”
“Acho, sem dúvida, fazem sim”, disse. “Estava pensando exatamente nisso. Eles são surpreendentes...”
Naquela época, era uma coisa inusitada, ainda que hoje talvez seja o.k. Me lembro da frase numa coluna do New York Times, escrita por um sujeito que acabara de perder a mulher: “Dormimos nus na mesma cama durante quarenta anos.” E também do meu maravilhoso colega Bob Bingham, agonizando com pouco menos de 50 anos, a quem um amigo perguntou o que lamentava não ter feito, ou o que faria de outro modo se tivesse a oportunidade. Ele pensou um pouco e disse: “Transaria mais.”
Transaria mais. Mais amor; mais intimidade; mais sexo e romance. Não importa como, mas que siga existindo, não importa a idade. Esse clamor, esse ardor, foi confirmado por Simone de Beauvoir e Alice Munro e Laurence Olivier e todos os velhos conhecidos que voltaram a se casar ou a namorar. Laurence Olivier? Pensei nele por causa do que disse numa entrevista: “Por dentro, todos temos 17 anos, e lábios vermelhos.”
Esse é um assunto que exige cautela, sobretudo quando levantado por um viúvo recente como eu, mas vou me arriscar a romper a etiqueta e acrescentar que Carol e eu, vez por outra, chegamos a discutir essa questão. Nenhum de nós via muito sentido numa fidelidade retroativa. Para nós, o cônjuge falecido – e sempre imaginávamos que seria eu –, embora não estivesse mais por perto, sabia ou soubera que seria amado para sempre. Não há por que se conter, querido – siga em frente, não perca tempo. Uma das últimas coisas que ela disse foi: “Se não tiver achado ninguém um ano depois de eu ter partido, bem, só me resta voltar e ficar te azucrinando.”
Ficar velho é a segunda maior surpresa da minha vida, mas a pri-meira, a léguas de distância, é a incessante necessidade de vínculos profundos e amor íntimo. Nós, da velha guarda, ansiamos todos os dias e todas as horas por conversas, pela domesticidade rotineira, pela companhia no ci-nema ou no museu, por alguém no carro quando voltamos à noite para casa. É por isso que somos tão numerosos em sites de encontros como Match.com e OkCupid – mas, certamente, não apenas por isso.
Remar no Éden (para recordar o verso de Emily Dickinson: “Remando no Éden – / Ah – o mar”) não é algo restrito aos mais ágeis e jovens, aos que estão namorando ou acabaram de se conhecer ou de casar, ou mesmo às semifinais com duplas mistas dos casais na meia-idade, graças a Deus. Não vou fazer aqui nenhuma confissão ou revelação pessoal, mas tais sentimentos nos mais velhos em geral costumam ser tratados como um segredo meio indecente.
O fator de invisibilidade – vocês já tiveram a sua vez – volta a se manifestar. Estou convencido, no entanto, de que todos no mundo preferiam estar com alguém hoje à noite, juntos no escuro, ao alcance da doçura tépida de uma coxa, de um pé ou de parte de um ombro descoberto. Aqueles de nós que perderam isso, seja qual for a idade que tenham, jamais perdem o desejo: basta olhar para nós. Diante de uma nova oportunidade, nós a agarramos com avidez, outra vez atordoados e alterados.
Nada é fácil com essa idade, e os primeiros encontros podem ser uma aventura cheia de risco. A reticência e o constrangimento se introduzem no quarto. E também a felicidade. Um viúvo velho e rico que conheci casou-se com uma enfermeira que encontrou no hospital, mas depois tinha dificuldade para lembrar o nome dela. Sempre a chamava de “garota”. Outra conhecida minha, com mais de 80, duas vezes viúva, ainda partilhou um terceiro amor, com um frágil mas vivaz professor do Meio-Oeste que já se aproximava dos 90, e os dois conviveram felizes por dois ou três anos, antes de ele também morrer. Quando ela ligou para os filhos dele e combinou de ir buscar suas coisas, encontrou tudo amontoado no lado de fora da casa em que ambos haviam vivido.
Mas, que se danem eles e tudo isso, não é mesmo? Um brinde a vocês, caros e velhos amigos. Vocês é que estão certos, todos vocês. Lancem o anzol, a linha e o peso – tanto faz por que e como – alguém à noite – que seja um amor para sempre, ou pelo menos até a próxima semana. Para nós e para qualquer um que se sinta incomodado, qualquer um que seja mais jovem e ainda estranhe a ideia de um casal de velhos transando, lembro o que disse John Updike: “Sexo ou morte: eis a escolha” – uma frase que aparece (de forma ligeiramente distinta) num dos seus últimos contos, “Playing with Dynamite”.
Esse é um grande dilema, uma excelente escolha em termos de seguro, quero dizer. Acho até que está incluída em algum artigo da Lei de Seguridade Social. Pode acreditar em nós, que algo aprendemos sobre o vazio da perda, e continuamos a seguir adiante, sabendo que temos sorte e ainda não estamos completamente sós.
05 de junho de 2014
Piauí, 93
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