terça-feira, 16 de junho de 2015

MANUAL DO ESTILO DESCONFIADO



Até segunda ordem, todo texto é suspeito
JUNTE-SE AOS DESCONFIADOS
Sempre fui um aficionado pelas artes e artimanhas do ato de escrever. Sou daqueles que consideram toda frase um parto – o que não implica, necessariamente, sofrimento. Tudo começa com o intruso espermatozoide que se instala em nosso cérebro e passa a acionar a sinapse daquela ideia, que ali permanece e recusa a se apagar, insiste diariamente em ser transformada em “mensagem para os outros”: texto.
Acontece, porém, na maioria das vezes, que passamos a macaquear as formas conhecidas de dizer. Repetimos as fórmulas, e mal. Confortados pelo doce prazer do nome impresso. Com frequência, tomamos um dentre os maneirismos disponíveis e o preenchemos com raciocínio e opinião. Mas sem perceber que as palavras e noções usadas já se encontram um tanto gastas por força da repetição e do hábito.
Qual o antídoto? Como sair do círculo repetitivo da inspiração? Se a resposta fosse simples, já teria surgido uma nova profissão no pobre mercado das letras: os estilistas de texto. Com lançamentos a cada ano de novos modelos de redação destinados aos diferentes segmentos: as notícias de jornal, as pesquisas acadêmicas, os romances de sucesso, e outros mais.
O jeito é mesmo desconfiar. Uma recomendação possível e honesta frente ao demo do senso comum que se infiltra no lero-lero de muitos escribas. Ler com o olhar desconfiado, pois ajuda a reconhecer muito gato que se passa por lebre, sobretudo quando assume ares de alta dicção. E, claro, escrever igualmente desconfiado – um pé atrás com as próprias afirmações. Até segunda ordem, todo texto é suspeito.
DESCONFIE DA FRASE LONGA
– Raros são os animais que podem dar saltos longos na natureza. Raros são os homens capazes de compreender uma série de frases compridas.
– Uma frase não se define pela extensão, senão pelo fôlego.
– As ideias que se alongam precisam girar em torno de um eixo. Cuidado com os malabarismos.
– A boa frase longa se contenta com passos curtos – e articulados.
– Para evitar a monotonia de uma série de frases longas, a alternância com a frase curta surpreende.
– As frases longas nunca são jovens.
DESCONFIE DA VÍRGULA
– Aqueles que tomam a vírgula por uma facilidade animam-se em encompridar os solilóquios. Melhor tomá-la por uma dificuldade.
– Toda vírgula implica dobrar uma esquina e continuar o mesmo caminho. O senso de direção não depende (só) dela.
– O texto que se iniciasse com uma vírgula teria antes de si o universo inteiro.
– Alguns escritores são acometidos da virgulite, típica de quem dá voltas ao pensamento.
– Existem as vírgulas da gramática e as do afeto.
– O pecado de Adão criou a primeira vírgula.
DESCONFIE DA PALAVRA GORDA
– Aquela que expressa ideia generalizante, usualmente abstrata. Além do peso.
– A gordura léxica está presente quando as palavras se inclinam para a retórica.
– O uso acumulativo de palavras obesas conduz a uma frase gorda.
– Antes de se expressar em palavras, a obesidade está no pensamento.
– A sintaxe é um recurso importante para engordar (ou emagrecer) a frase.
– Os parnasianos são os típicos escritores com sobrepeso.
DESCONFIE DA PALAVRA MAGRA
– Referente ao sentido direto, quase sempre em primeira acepção. Sem gordura.
– A magreza léxica se torna presente quando as palavras não chamam atenção para si.
– A ciência prefere exprimir-se por meio das palavras exatas. Só o osso interessa.
– A mesma palavra poderá ser mais ou menos delgada, a depender do contexto.
– O romance policial típico necessita de um estilo “magro” para colocar em ação os elementos da trama.
– A palavra magra se quer discreta e útil.
DESCONFIE DA CITAÇÃO
– A afinidade com o autor citado, por si só, não qualifica a citação. Então, o que a justifica?
– Não há como certificar o peso de duas citações opostas e igualmente claras e afirmativas.
– Existem citações de primeiro, segundo e terceiro graus. Quanto mais recuada no tempo, mais sábia.
– Poucos escritores citam os argumentos contrários às suas ideias. Pior para elas.
– Ninguém cita quem lhe parece “inferior”.
– Diz-me quem citas e eu te direi quem és.
DESCONFIE DO CLICHÊ
– O clichê transforma o senso comum em metal, peça que serve à máquina dos discursos.
– De tão usado, o clichê ficou cego, não sabe o que está dizendo.
– Clicheteiro é aquele que usa em demasia as frases conhecidas.
– O clichê apunhala o estilo.
– O clichê se aproxima de um ditado que não deu certo.
– O clichê é um chiclete usado.
DESCONFIE DO ADVÉRBIO
– Cabe ao advérbio dar um toque de relevo à frase.
– A circunstância define o colorido daquilo que se afirma; do contrário, predomina o vazio.
– Verbo e advérbio se atraem, mas nem sempre se encaixam.
– Os advérbios formam a polpa que reveste o caroço da frase central.
– Para garantir que seja exato, todo advérbio deve passar pelo setor de controle de excessos.
– Quem “mente” demais cai em descrédito.
DESCONFIE DO ELOGIO
– Monotonia: o elogio sempre se nutre de adjetivos.
– Boa parte das vezes o encômio vem antes de arrolados os argumentos.
– O elogio deve ser proporcional à qualidade moral e intelectual de quem o profere. Mas quem julga quem?
– A maioria dos elogios esconde a sua real motivação: o comércio de favores.
– Quem muito elogia deixa as palavras vazias.
– Elogiar a modéstia é um contrassenso.
DESCONFIE DO ADJETIVO
– Os adjetivos são como as cores, do suave ao berrante.
– Entre um e outro, recomenda-se a distância de algumas léguas.
– A culpa não está na palavra, mas no demiurgo que não sabe usá-la.
– O adjetivo funciona como o fermento da frase.
– Ao dispor de um adjetivo, indague-se: se ficar de fora, a frase empalidece?
– Faça psicanálise com os qualificativos que emprega.
– Adjetivos são palavras com alta variação de humor.
DESCONFIE DA (DES)CONFIANÇA
– A desconfiança é bem-vinda para que o estilo seja de bom quilate.
– A desconfiança é mal-vinda quando inibe a naturalidade da frase.
– O melhor estilo é aquele que se faz com a atenção posta no detalhe, nos dedos.
– Quem desconfia fia o texto pelo avesso.
– Quem (des)confia demasiado termina com as mãos no fiado.
– Desconfia quem deseja fiar de outra maneira
16 de junho de 2015
Fernando Paixão

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