sábado, 4 de julho de 2015

A CHEGADA A AUSCHWITZ

A estação ferroviária de Auschwitz

A primeira fase se caracteriza pelo que se poderia chamar de choque de recepção. É preciso lembrar que o efeito de choque psicológico pode preceder à recepção formal, dependendo das circunstâncias. Este foi o caso, por exemplo, naquele transporte no qual eu mesmo cheguei a Auschwitz. Imagine-se a situação: o transporte de 1500 pessoas está a caminho há alguns dias e noites. Em cada vagão do trem se estiram 80 pessoas sobre a sua bagagem (seus últimos haveres). As mochilas, bolsas, etc. empilhadas impedem quase toda visão pelas janelas, deixando livre apenas um último vão na parte superior. Lá fora se divisa o primeiro clarão da aurora. Todos achávamos que o transporte se dirigia para alguma fábrica de armamento onde nos usariam para trabalhos forçados. Aparentemente o trem pára em algum lugar no meio da linha; ninguém sabe ao certo se ainda estamos na Silésia ou já na Polônia. O apito estridente da locomotiva causa arrepios, ecoando como um grito de socorro ante o pressentimento daquela massa de gente personificada pela máquina e por esta conduzida rumo a uma grande desgraça. O trem começa a manobrar frente a uma grande estação. De repente, do amontoado de gente esperando ansiosamente no vagão, surge um grito: “Olha a tabuleta: Auschwitz!” Naquele momento não houve coração que não se abalasse. Todos sabiam o que significava Auschwitz. Esse nome suscitava imagens confusas, mas horripilantes de câmaras de gás, fornos crematórios e execuções em massa. O trem avança lentamente, como que hesitando, como se quisesse dar aos poucos a má notícia a sua desgraçada carga humana: “Auschwitz”. Agora a visão já está melhor: a aurora já permite ver a silhueta de um campo de concentração de colossais dimensões, estendendo-se por quilômetros à esquerda e à direita dos trilhos. Múltiplas cercas de arame farpado sem fim, torres de vigia, refletores e longas colunas de figuras humanas aos farrapos, cinzentas no alvorecer, que avançam exaustas pelas ruas desoladas do campo de concentração – sem que ninguém saiba para onde. Aqui e ali se ouve um apito de comando – e ninguém sabe para quê. Em alguns de nós, o terror fica estampado no rosto. Eu pensava estar vendo certo número de cadafalsos dos quais pendiam pessoas enforcadas. O horror tomava conta de mim, e isto era bom: segundo a segundo e passo a passo precisávamos nos defrontar com o horror.
Finalmente chegamos à estação de desembarque. Lá fora, nenhuma movimentação, ainda. De repente, brados de comando daquele jeito peculiar – estridente e rude – que de agora em diante ouviríamos sempre de novo em todos os campos de concentração, cujo som é semelhante ao último berro de um homem assassinado, com uma diferença: o som também é rouco e fanhoso, como se saísse da garganta de um homem que tem que gritar constantemente assim porque está sendo constantemente assassinado …
Abrem-se violentamente as portas do vagão e ele é invadido por um pequeno bando de prisioneiros trajando a roupa típica de reclusos, cabeça raspada, porém muito bem alimentados. Falam todas as línguas européias possíveis e irradiam todos uma jovialidade que neste momento e situação só pode mesmo ser grotesca: Como a pessoa que está prestes a se afogar e se agarra a uma palha, assim o meu arraigado otimismo, que desde então sempre me acomete justamente nas piores situações, se agarra a esse fato: nem é tão má a aparência dessa gente, eles estão visivelmente bem humorados e até rindo; quem diz que não chegarei também à situação relativamente boa e feliz desses prisioneiros? A psiquiatria conhece o quadro clínico da assim chamada ilusão de indulto: a pessoa condenada à morte, precisamente na hora de sua execução, começa a acreditar que ainda receberá o indulto justamente naquele último instante. Assim nós nos agarrávamos a esperanças e acreditávamos até o último instante que não seria nem poderia ser tão ruim. “Olha só o rosto rechonchudo e rosado desses prisioneiros!” Nem de longe sonhávamos que se tratava de uma “elite”, um grupo de prisioneiros escolhido para receber os transportes dos milhares que, anos a fio, entravam diariamente pela estação de Auschwitz, isto é, para tomar conta de sua bagagem juntamente com os valores nela ocultos: utensílios difíceis de conseguir naquela época e jóias contrabandeadas. Auschwitz naquele tempo era, sem dúvida,um centro singular na Europa da última fase da guerra: a quantidade de ouro, prata, platina e brilhantes que ali se encontrava, não só nos gigantescos depósitos, mas ainda em mãos do pessoal da SS bem como do grupo de prisioneiros que nos recebia, certamente não tinha paralelo. Certa vez, éramos 1100 prisioneiros num único barracão (destinado a abrigar no máximo 200), esperando pelo transporte para campos menores, sentados, acocorados ou de pé, no chão de terra, passando frio e com fome. Não havia lugar para todos se sentarem, menos ainda para se deitarem. Num período de quatro dias recebemos uma única vez uma lasca de pão (de 150 gramas). Naquela ocasião presenciei, por exemplo, uma conversa em que o encarregado do barracão negociava um prendedor de gravata, de platina, encravado de brilhantes, com um prisioneiro daquele grupo de elite. O grosso desses objetos, entretanto, acabava sendo trocado por aguardente que desse para divertir-se uma noite. Só sei de uma coisa: esses prisioneiros de muitos anos precisavam de álcool. Quem vai censurar uma pessoa que se entorpece em semelhante situação interior e exterior? Para não falar dos prisioneiros postos a trabalhar nas câmaras de gás e no crematório, e que sabiam perfeitamente que, passando o seu turno, seriam substituídos por outro grupo, e que seguiriam eles mesmos um dia o caminho daquelas vítimas cujos carrascos eram forçados a ser agora. Esse grupo recebia álcool praticamente à vontade até do pessoal da SS.

A primeira seleção

Eu e praticamente todos os integrantes do nosso transporte estávamos, portanto, tomados por essa ilusão de indulto que acredita que tudo ainda pode sair bem. Pois ainda não tínhamos condições de entender a razão daquilo que ali se desenrolava; somente à noite é que iríamos entender. Mandaram-nos deixar toda a bagagem num vagão, desembarcar e formar uma fila de homens e outra de mulheres, para então desfilar perante um oficial superior da SS. Curiosamente, tive coragem de levar comigo minha sacola, escondida da melhor maneira possível debaixo da capa. Vejo, então, que a minha coluna se dirige, homem por homem, em direção ao oficial da SS. Fico calculando: se ele perceber o peso da sacola que me puxa para o lado haverá no mínimo uma bofetada que me fará voar na lama; isto eu já conhecia de outra ocasião … Mais por instinto, quanto mais me aproximo daquele homem, deixo meu corpo cada vez mais ereto, para que ele não perceba que estou carregando um peso. Ei-lo agora à minha frente: alto, esbelto, elegante, num uniforme perfeito e reluzente – uma pessoa bem trajada e cuidada, muito distante das nossas tristes figuras de rosto sonolento e aparência decaída. Ele se sente muito à vontade. Apóia o cotovelo direito na mão esquerda, e com a mão direita erguida executa um leve aceno com o indicador, ora para a direita, ora para a esquerda. Nenhum de nós tinha a menor idéia do significado sinistro daquele pequeno gesto com o dedo – ora para a esquerda, ora para a direita, com freqüência muito maior para a direita. Chega a minha vez. Alguém me sussurrou que para a direita (olhando da nossa direção) ia-se para o trabalho; para a esquerda, para um campo de doentes e incapacitados para o trabalho. Simplesmente deixo os fatos acontecerem. É a primeira vez que faço isso. Mas tomarei esta atitude muitas vezes de agora em diante. Minha sacola me puxa para a esquerda, mas me aprumo e fico ereto. O homem da SS me olha criticamente. Parece hesitar, põe as duas mãos nos meus ombros; faço um esforço para assumir uma postura do tipo militar. Fico firme e ereto: lentamente, ele faz girar os meus ombros – e lá me vou para a direita.
À noite ficamos sabendo o significado desse jogo com o dedo indicador: era a primeira seleção! A primeira decisão sobre ser ou não ser. Para a imensa maioria do nosso transporte, cerca de 90%, foi a sentença de morte. Ela foi levada a cabo em poucas horas. Quem era mandado para a esquerda marchava diretamente da rampa da estação para um dos prédios do crematório, onde – segundo me contaram pessoas que ali trabalhavam – havia letreiros em diversas línguas européias que caracterizavam o prédio como casa de banhos. Então todos os participantes do transporte mandados para a esquerda recebiam um pedaço de sabão marca “Rif”. Sobre o que se desenrolava dali em diante posso calar-me, depois que relatos mais autênticos já o tornaram conhecido. Nós, a minoria do transporte, ficamos sabendo naquela mesma noite. Perguntei a companheiros que já estavam há mais tempo no campo de concentração onde poderia ter ido parar meu colega e amigo P. – “Ele foi mandado para o outro lado?” – “Sim”, respondi. – “Então podes vê-lo ali”, disseram. “Onde?” Uma mão aponta para uma chaminé distante algumas centenas de metros, da qual sobe assustadora e alta labareda pelo imenso e cinzento céu polonês, para se extinguir em tenebrosa nuvem de fumaça. “O que há ali?” – “Ali o teu amigo está voando para o céu”, é a resposta grosseira. Continuo sem entender; mas logo começo a compreender, assim que me “iniciam” no assunto.
Tudo isto já contei por antecipação. Sob o ponto de vista psicológico, ainda tínhamos um caminho muito longo a percorrer, desde o alvorecer na estação até adormecermos pela primeira vez no campo de concentração. Nossa coluna foi obrigada correr desde a estação, escoltada por um pelotão da guarda SS com o fuzil engatilhado, passando pelos corredores de arame farpado carregado de alta tensão, até o banho de desinfecção – para nós, eleitos na primeira seleção, ao menos um banho real. Mais uma vez era alimentada a nossa ilusão de indulto: a SS até parecia muito afável! Mas logo percebemos que eram agradáveis conosco enquanto viam relógios em nossos pulsos, para, em tom muito cordial, nos persuadir a entregá-los, já que de qualquer forma teríamos que entregar tudo que ainda tínhamos conosco. Cada um de nós pensava consigo mesmo: perdido por perdido, se essa pessoa relativamente amigável receber o relógio em caráter particular – por que não? Quem sabe, um dia poderá prestar-me algum favor.
auschwitz
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Primeira e segunda parte do Capítulo 2 do livro “Em Busca de Sentido”, de Viktor Frankl, publicado no Brasil pela Editora Vozes.
Trecho resgatado hoje devido ao Dia Internacional da Lembrança do Holocausto.
04 de julho de 2015
in arca reaça

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