Num almoço de família recente, o assunto na casa do médico aposentado Paulo da Silva era cinema. Não tardou até que a conversa chegasse aos filmes que concorreram ao Oscar de 2012. Seu genro elogiou O Artista, ganhador de cinco estatuetas, pela opção do preto e branco. O anfitrião aquiesceu e aproveitou para enaltecer também O Palhaço, pela coragem do diretor que havia feito a mesma escolha. O argumento deixou a família desorientada. Afinal, o filme de Selton Mello tinha sido rodado em cores bem vivas.
Quando enfim se convenceu de que era ele quem estava errado, Paulo da Silva se lembrou da vez em que tinha visto A Separação, de Asghar Farhadi. Intrigado com a complexidade da trama, ele primeiro praguejou contra o hermetismo do cinema iraniano. Só se tocou de que algo estava errado no momento em que,ao voltar um trecho do filme no DVD para tentar entender um diálogo, descobriu que as legendas apareciam de maneira aleatória, independentemente do que diziam os personagens.
Havia algo em comum entre os DVDs de Silva. Tanto O Palhaço como A Separação eram cópias piratas adquiridas de Jônatas, um camelô que costuma despachar numa praça arborizada de Icaraí, em Niterói.
Num domingo ensolarado de novembro, lá estava de novo Paulo da Silva, desta vez para trocar um DVD de Ted. Adquirido alguns dias antes, sua cópia viera inadvertidamente com legendas em chinês. Quando encontrou o camelô em frente a uma barraca de roupas importadas, já havia uma fila de sete fregueses. “Jônatas, meu filme travou no final”, queixou-se uma senhora, estendendo-lhe um DVD. “Vou pedir para meu pai deixar uma cópia perfeita na sua portaria”, respondeu o camelô, solícito, num acentuado sotaque carioca.
Naquela manhã, Jônatas vestia bermuda de tactel preta e vermelha, camiseta azul, chinelo de dedo e um par de óculos escuros. Na grade de plástico em que exibe as capas de DVDs à venda, sucessos de público como Hotel Transilvânia, Homem-Aranha e Valente dividiam o espaço com filmes “cabeça” como Cairo 678, do egípcio Mohamed Diab, ou Adorável Pivellina, uma coprodução ítalo-austríaca. É nesse último filão que o camelô encontrou seu público. “O pessoal aqui oferecia muita porcaria, com pouca qualidade. Vi que ninguém vendia filme cult. E é muito difícil conseguir ver esses filmes em Niterói”, explicou Jônatas. “Filme cult e desenho. Isso é o que mais vendo.”
Preocupado com a clientela, passou a assistir aos filmes e fazer recomendações. Seu atual campeão de vendas é Intocáveis, uma comédia francesa sobre a amizade de um milionário tetraplégico com seu enfermeiro negro, um descendente de imigrantes da periferia de Paris.“O filme é sensacional”, sentenciou Jônatas. Uma cliente endossou a opinião do camelô. “Por que você não leva um, meu filho?”, sugeriu ao repórter.
Curiosa, a senhora que veio trocar o DVD defeituoso não resistiu ao ver na banca de Jônatas o espanhol O Melhor de Eva, de Mariano Barroso. “Você já viu esse?”, perguntou, interessada. “Vi sim, é tipo A Separação, aquele iraniano, sabe?”, respondeu o camelô. O argumento foi suficiente para concretizar a venda – a cópia dela do filme de Farhadi por certo estava com as legendas sincronizadas.
ntre outras razões, a atividade ilegal de Jônatas prosperou porque a cidade de Niterói tem hoje apenas dois cinemas em funcionamento. Localizados em shopping centers movimentados, têm a programação dominada por blockbusters americanos. O Cine Icaraí, vedete do bairro mais famoso da cidade, virou um elefante branco. Está fechado desde 2006. O último reduto para filmes europeus, documentários e longas independentes – a sala de cinema da Universidade Federal Fluminense – está em obras desde 2009, sem previsão para reabrir. A principal rede de locadoras também fechou as portas.
No livro Cinematographos em Nictheroy, a ser lançado este mês, o professor da UFF Rafael de Luna refez a história das salas de cinema da cidade e mostrou como elas foram aos poucos substituídas por supermercados, igrejas evangélicas, agências bancárias, bingos, lojas e até a sede da escola de samba Viradouro. “Os cinemas de Icaraí não fecharam por falta de público, mas pela especulação imobiliária”, explicou o autor. “Os terrenos se valorizavam e houve a opção por outra atividade mais rentável.”
Luna lembrou que Niterói já teve uma das maiores salas do Brasil na primeira metade do século XX. O Cinema Colyseu abrigava até 3 mil pessoas. Nos anos 70, a cidade tinha onze salas de cinema de rua e se orgulhava de oferecer quase 11 mil assentos para 323 mil habitantes, ou uma poltrona para cada trinta moradores. No final de 2012, a capacidade caiu para 2 416 lugares. Como a população chegou a quase meio milhão, a proporção agora é de 201 niteroienses para cada poltrona, segundo as contas do professor.
tento à crescente demanda pelos chamados filmes de arte, Jônatas ampliou seus serviços. Além da entrega em domicílio, a vasta carteira de clientes conquistada agora conta com um sistema de compras on demand. “Tem um cliente que me pediu para procurar trinta filmes do Elvis Presley. Já achei 27, mas ainda não consegui baixar nenhum”, explicou, resignado. “Tenho lista de clientes com 103 filmes para procurar.”
Sua linha de produção é azeitada: o camelô baixa os filmes na internet, grava-os em DVDs, imprime a capa e embala num saquinho plástico retangular. “Acompanho os filmes que estão entrando em cartaz pelo site adorocinema.com.br”, disse Jônatas, entusiasmado. Para não chamar a atenção da fiscalização, fica posicionado atrás de uma barraquinha que comercializa camisetas. A mochila com os DVDs e a grade com as capas dos filmes ficam sempre por perto para garantir a agilidade no caso de uma batida policial.
Com suas estratégias de marketing, branding e fidelização de clientes tinindo, o camelô disse que vende cerca de 100 DVDs nos fins de semana a 5 reais cada. “Tem cliente que leva vinte títulos de uma só vez”, comemorou. A quantidade varia de acordo com a meteorologia. “Quando faz sol, vende que é uma beleza.”
03 de julho de 2015
Renato Terra
Havia algo em comum entre os DVDs de Silva. Tanto O Palhaço como A Separação eram cópias piratas adquiridas de Jônatas, um camelô que costuma despachar numa praça arborizada de Icaraí, em Niterói.
Num domingo ensolarado de novembro, lá estava de novo Paulo da Silva, desta vez para trocar um DVD de Ted. Adquirido alguns dias antes, sua cópia viera inadvertidamente com legendas em chinês. Quando encontrou o camelô em frente a uma barraca de roupas importadas, já havia uma fila de sete fregueses. “Jônatas, meu filme travou no final”, queixou-se uma senhora, estendendo-lhe um DVD. “Vou pedir para meu pai deixar uma cópia perfeita na sua portaria”, respondeu o camelô, solícito, num acentuado sotaque carioca.
Naquela manhã, Jônatas vestia bermuda de tactel preta e vermelha, camiseta azul, chinelo de dedo e um par de óculos escuros. Na grade de plástico em que exibe as capas de DVDs à venda, sucessos de público como Hotel Transilvânia, Homem-Aranha e Valente dividiam o espaço com filmes “cabeça” como Cairo 678, do egípcio Mohamed Diab, ou Adorável Pivellina, uma coprodução ítalo-austríaca. É nesse último filão que o camelô encontrou seu público. “O pessoal aqui oferecia muita porcaria, com pouca qualidade. Vi que ninguém vendia filme cult. E é muito difícil conseguir ver esses filmes em Niterói”, explicou Jônatas. “Filme cult e desenho. Isso é o que mais vendo.”
Preocupado com a clientela, passou a assistir aos filmes e fazer recomendações. Seu atual campeão de vendas é Intocáveis, uma comédia francesa sobre a amizade de um milionário tetraplégico com seu enfermeiro negro, um descendente de imigrantes da periferia de Paris.“O filme é sensacional”, sentenciou Jônatas. Uma cliente endossou a opinião do camelô. “Por que você não leva um, meu filho?”, sugeriu ao repórter.
Curiosa, a senhora que veio trocar o DVD defeituoso não resistiu ao ver na banca de Jônatas o espanhol O Melhor de Eva, de Mariano Barroso. “Você já viu esse?”, perguntou, interessada. “Vi sim, é tipo A Separação, aquele iraniano, sabe?”, respondeu o camelô. O argumento foi suficiente para concretizar a venda – a cópia dela do filme de Farhadi por certo estava com as legendas sincronizadas.
ntre outras razões, a atividade ilegal de Jônatas prosperou porque a cidade de Niterói tem hoje apenas dois cinemas em funcionamento. Localizados em shopping centers movimentados, têm a programação dominada por blockbusters americanos. O Cine Icaraí, vedete do bairro mais famoso da cidade, virou um elefante branco. Está fechado desde 2006. O último reduto para filmes europeus, documentários e longas independentes – a sala de cinema da Universidade Federal Fluminense – está em obras desde 2009, sem previsão para reabrir. A principal rede de locadoras também fechou as portas.
No livro Cinematographos em Nictheroy, a ser lançado este mês, o professor da UFF Rafael de Luna refez a história das salas de cinema da cidade e mostrou como elas foram aos poucos substituídas por supermercados, igrejas evangélicas, agências bancárias, bingos, lojas e até a sede da escola de samba Viradouro. “Os cinemas de Icaraí não fecharam por falta de público, mas pela especulação imobiliária”, explicou o autor. “Os terrenos se valorizavam e houve a opção por outra atividade mais rentável.”
Luna lembrou que Niterói já teve uma das maiores salas do Brasil na primeira metade do século XX. O Cinema Colyseu abrigava até 3 mil pessoas. Nos anos 70, a cidade tinha onze salas de cinema de rua e se orgulhava de oferecer quase 11 mil assentos para 323 mil habitantes, ou uma poltrona para cada trinta moradores. No final de 2012, a capacidade caiu para 2 416 lugares. Como a população chegou a quase meio milhão, a proporção agora é de 201 niteroienses para cada poltrona, segundo as contas do professor.
tento à crescente demanda pelos chamados filmes de arte, Jônatas ampliou seus serviços. Além da entrega em domicílio, a vasta carteira de clientes conquistada agora conta com um sistema de compras on demand. “Tem um cliente que me pediu para procurar trinta filmes do Elvis Presley. Já achei 27, mas ainda não consegui baixar nenhum”, explicou, resignado. “Tenho lista de clientes com 103 filmes para procurar.”
Sua linha de produção é azeitada: o camelô baixa os filmes na internet, grava-os em DVDs, imprime a capa e embala num saquinho plástico retangular. “Acompanho os filmes que estão entrando em cartaz pelo site adorocinema.com.br”, disse Jônatas, entusiasmado. Para não chamar a atenção da fiscalização, fica posicionado atrás de uma barraquinha que comercializa camisetas. A mochila com os DVDs e a grade com as capas dos filmes ficam sempre por perto para garantir a agilidade no caso de uma batida policial.
Com suas estratégias de marketing, branding e fidelização de clientes tinindo, o camelô disse que vende cerca de 100 DVDs nos fins de semana a 5 reais cada. “Tem cliente que leva vinte títulos de uma só vez”, comemorou. A quantidade varia de acordo com a meteorologia. “Quando faz sol, vende que é uma beleza.”
03 de julho de 2015
Renato Terra
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