Depois de uma vida dedicada às mariposas, Vitor Becker põe em prática seu ambientalismo antiutilitário
No final de junho, um casal de australianos acompanhado do filho visitou o entomólogo Vitor Becker em sua propriedade na Serra Bonita, ao sul da Bahia, numa área preservada da Mata Atlântica. Em sua pousada, Becker costuma receber observadores de aves, ecoturistas e pesquisadores. O australiano, especialista em répteis, aproveitou uma viagem à América do Sul para mostrar à família a reserva que conhecera alguns anos antes. O anfitrião deixou para o último dia a cereja do bolo: o tour guiado da coleção de mariposas que ele vem acumulando nos últimos cinquenta anos.
Becker desceu um lance de escadas e acompanhou os hóspedes até uma sala sem janelas com cerca de 40 metros quadrados, onde se acomodam seis fileiras de armários de cedro com gavetas de alto a baixo. “Tenho cerca de 300 mil espécimes, representando 30 mil espécies diferentes”, informou o pesquisador, destacando que outras 20 mil mariposas suas estão emprestadas a colegas e instituições. Foram todas coletadas por ele no continente americano, do Rio Grande do Sul até o sul dos Estados Unidos. Metade do acervo vem do Brasil, e o resto, de países como Peru, Equador, México e Cuba, além de outras ilhas caribenhas e de praticamente toda a América Central.
A coleção de Becker é abrigada em 1 600 gavetas, algumas com centenas de espécimes. As mariposas são dispostas com as asas abertas, presas por alfinetes no centro do tórax, e são distribuídas em pequenas caixas de papelão, cada uma com insetos de uma espécie diferente. Sob cada indivíduo há uma etiqueta impressa com tipos miúdos que registram o nome científico, o local e a data da captura do espécime.
“Este é o maior lepidóptero do mundo”, anunciou o pesquisador, ao abrir uma gaveta com quatro exemplares da espécie Thysania agrippina. Lepidópteros é o nome dado ao grupo de insetos que inclui mariposas e borboletas – Becker coleciona só as primeiras. O gigante da turma tem uma envergadura de até 30 centímetros, a maior dentre todos os insetos – maior que a mão aberta de um adulto, poderia facilmente passar por um pássaro em pleno voo. Uma das Thysanias de Becker foi coletada no México, outra no Paraná e as outras duas são da própria Serra Bonita. O colecionador contou que a espécie é uma figurinha fácil e pode ser encontrada do México ao norte da Argentina. “Vez ou outra aparece uma, mas nem pego, porque ocupa muito espaço”, contou.
Becker disse que em alguns casos é capaz de se lembrar da noite em que coletou uma mariposa só de abrir a gaveta. Pedi-lhe que me mostrasse um espécime muito antigo do acervo, e ele se pôs a vasculhar os armários. Retirava as gavetas e as trazia até a altura dos olhos num ângulo enviesado que lhe permitia ler as etiquetas diminutas. Repetiu o procedimento uma boa dúzia de vezes até se deparar com um espécime de porte médio e asa acinzentada. Leu em voz alta a data na etiqueta: 16 de dezembro de 1967. “Um dia depois que me formei”, disse.
Catarinense, Becker mora na Bahia desde 2002, quando começou a pôr em prática o projeto acalentado por anosde construir um centro de pesquisa no meio da mata, num lugar onde pudesse dar sequência a seus estudos depois de se aposentar. O prédio que abriga as mariposas foi projetado para acolher acoleção, conforme o entomólogo explicou aos australianos. “O lugar mais seguro tinha que ser essa sala, para que não houvesse entrada de luz ou infiltrações.” Ao redor do cômodo, um corredor dá acesso a laboratórios com bancada e microscópios, e a uma biblioteca de entomologia com cerca de 7 mil títulos.
Uma coleção de insetos é, em última instância, um grande cemitério, do qual convém manter afastados os agentes de decomposição. O cômodo em que ficam as mariposas vive impregnado de cheiro de naftalina – são duas ou três bolinhas em cada gaveta para afugentar as traças. Um desumidificador combate o principal inimigo, os fungos – quando a umidade do ambiente passa de 60%, o aparelho é automaticamente acionado.
A coleção está organizada por ordem de parentesco evolutivo, dos grupos mais antigos àqueles que surgiram mais recentemente. Becker é um especialista em taxonomia, ramo da biologia que se dedica à descrição e classificação dos seres vivos. Um rápido exame visual lhe basta para dizer a qual das quase 130 famílias de lepidópteros o indivíduo pertence. “Vitor sabe mais sobre as mariposas da América Latina do que qualquer outra pessoa viva”, disse o americano Scott Miller, entomólogo do vetusto Instituto Smithsonian, em Washington, dono de um dos maiores acervos de lepidópteros do mundo, com 4 milhões de espécimes.
Descrever e classificar os seres a sua volta – a missão dos taxonomistas – é uma tarefa que os humanos praticam desde que se aventuraram a entender o mundo. No Gênesis, Adão se põe a nomear “a todos os animais, às aves do céu e a todas as feras” antes mesmo de Deus lhe arrancar uma costela para lhe dar uma companheira. Ordenar os seres vivos não difere essencialmente do que fazemos ao organizar roupas, livros ou arquivos de computador, agrupando os semelhantes e separando os diferentes – classificar é a nossa resposta intuitiva ao anseio de dar ordem ao caos.
A taxonomia ganhou ares de ciência no século XVIII, com o trabalho de um médico e naturalista sueco que ficou conhecido pela forma latina do seu nome, Carolus Linnaeus (ou Lineu, na grafia aportuguesada). Foi ele quem propôs o sistema até hoje adotado para designar as espécies vivas, com um nome duplo em latim iniciado pelo gênero ao qual pertence a planta ou animal, como se o sobrenome viesse na frente. A lombriga é Ascaris lumbricoides, o abacaxi é Ananas comosus, o gato é Felis catus e os humanos somos Homo sapiens, para citar alguns dos 10 mil nomes que Lineu sugeriu (foi também o primeiro a empregar o termo “lepidóptero”).
A taxonomia moderna inaugurada por Lineu ajudou a pôr ordem nas coleções de insetos que proliferavam na Europa desde o século XVI, quando surgiram os “gabinetes de curiosidades”. Em tais “quartos das maravilhas”, os renascentistas reuniam toda sorte de objetos que os fascinavam, muitos deles trazidos após expedições a terras recém-descobertas – pinturas e esculturas, medalhas e instrumentos científicos, além de fósseis e animais empalhados. Esses gabinetes são o embrião dos museus tais como os conhecemos hoje – os acervos dos museus de história natural de Londres e Paris, dentre muitos outros, originaram-se de espaços como esses.
Tão primordial quanto subestimada, a taxonomia é vista por muitos pesquisadores de outras especialidades como uma disciplina fora de moda, de importância menor, que se contenta em etiquetar os seres vivos. Outros ramos das ciências da vida, como a bioquímica ou a genética, gozam de mais prestígio (e verbas para pesquisa). Mas nenhum deles pode prescindir do saber gerado pelos taxonomistas. Os ecólogos que costumam estudar a interação dos insetos com as plantas, por exemplo, não vão muito longe sem a ajuda de um especialista que os ajude a identificar as espécies que coletam em campo. E apenas os taxonomistas podem dar um rg a espécies fundamentais para o equilíbrio ambiental.
Um dos principais traços usados para classificar as mariposas é a morfologia dos genitais. Em cada espécie, as peças acessórias do órgão do macho têm um formato que se encaixa na fêmea. “É como chave e fechadura: se tentar com espécie diferente, não acopla direito”, comparou Becker. A observação dessa particularidade, praticada desde o final do século XIX, logo virou praxe. “Basta uma lâmina de microscópio com a genitália e já é possível dizer de que família o bicho é”, explicou.
Recentemente, as ferramentas da biologia molecular mais uma vez revolucionaram a taxonomia ao permitir discriminar as relações de parentesco na escala do DNA. Soletrando o genoma de uma espécie, os biólogos conseguem inseri-la com mais precisão na árvore genealógica do grupo. Embora adepto da taxonomia clássica, baseada em traços anatômicos externos e internos, Becker acompanha as novidades da biologia molecular. Explicou que, no caso das mariposas, o DNA veio a ratificar a maioria das divisões que haviam sido estabelecidas a partir da morfologia. Mas de vez em quando ele se vê obrigado a remanejar sua coleção em função da nova árvore genealógica dos lepidópteros.
Desde o fim da década de 90, os conhecimentos do pesquisador têm lhe valido convites regulares do Smithsonian e de outras instituições para ajudar a classificar coleções de mariposas da América tropical. “Temos um acervo vasto e nossa equipe é de tamanho limitado, de forma que dependemos intensamente de pesquisadores visitantes com conhecimento especializado que nos ajudam com a curadoria da coleção, determinando o gênero e espécime de exemplares que não haviam sido identificados”, disse-me o entomólogo Don Davis, de 81 anos, curador emérito do acervo de lepidópteros do Smithsonian.
Vitor Osmar Becker é um homem magro de 70 anos, barba grisalha e óculos quadrados de armação fina, com um carregado sotaque sulista que se faz notar inclusive em seu inglês fluente. Primogênito de dezessete irmãos, nasceu em 1944 na zona rural de Brusque, no interior de Santa Catarina, filho de um agricultor descendente de alemães de terceira geração. Estudou engenharia agronômica numa escola gaúcha mais tarde incorporada à Universidade Federal de Pelotas. O curso começou semanas antes do golpe de 1964 – o que o aproximou dos movimentos estudantis de resistência à ditadura.
Entre um gole e outro de chimarrão, Becker contou que seu interesse por insetos foi despertado por Czesław Bieżanko, professor polonês especialista em borboletas que dava aulas de entomologia na universidade de Pelotas. Becker procurou o professor antes do início das aulas – durante as férias, o aluno aplicado queria preparar a coleção de insetos que apresentaria como trabalho de fim de curso. Voltou de viagem com inúmeras caixas de charuto que armazenavam cerca de 300 exemplares – principalmente de lepidópteros, que ele sabia ser o forte do professor. Bieżanko se impressionou com o que viu: havia espécies raras, algumas que nem ele tinha. “O material está muito bem preparado para um principiante”, elogiou.
O estudante ficou amigo do professor, passou a frequentar sua casa e saíam juntos para coletar insetos. Quando se formou, em 1967, tinha cerca de 2 mil espécimes. “Naquele momento eu já sabia que queria trabalhar com pesquisa e com lepidópteros”, contou. Mas reconheceu certa arbitrariedade em sua escolha. “Se o professor fosse botânico, talvez eu tivesse ido estudar plantas.” A especialização foi uma deliberação pragmática: como já havia meia dúzia de pesquisadores brasileiros ocupados com borboletas e nenhum com mariposas, decidiu se dedicar aos lepidópteros mais feios e desprestigiados.
Durante um estágio no Instituto Biológico, em São Paulo, ficou conhecendo Clemira Ordoñez Souza, uma professora paraense estabelecida na cidade. Foram viver juntos em 1969 e viajaram para Curitiba – Becker fora recrutado por um projeto para estudar a broca-do-cedro, uma praga agrícola causada pela lagarta de uma mariposa.
A ditadura militar entrava em seu momento mais duro, e mais aguçado ficava o engajamento do casal na resistência ao regime. Eram militantes da Ação Popular, grupo de esquerda surgido nos anos 60 e mais tarde integrado ao PCdoB. Becker fazia pichações e distribuía panfletos, e o apartamento deles se tornou um abrigo para refugiados. Não se casaram no papel porque ele temia que, caso desaparecesse, a mulher nunca tivesse reconhecida a viuvez.
Tiveram três filhos, que batizaram com nomes de origem tupi: Robiara, Moema e Apoena. A família morou na Costa Rica e na Inglaterra (onde Beckerfez mestrado e doutorado, respectivamente), e acabou se fixando em Brasília, uma vez que o entomólogo foi contratado pela Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária, a Embrapa, na unidade voltada para o estudo do cerrado. Mariposas podem parecer inofensivas para a agricultura, mas as lagartas que elas foram antes de voar se alimentam de folhas variadas, inclusive de cultivos de importância econômica como milho e soja. Muitas são tratadas como pragas, que Becker ajudava a identificar para combater.
O casal comprou uma casa na Asa Norte, provida de um subsolo destinado às pesquisas do entomólogo, com quartos para abrigar a coleção, um laboratório e uma biblioteca. Era lá que ele passava a maior parte do tempo, conforme a lembrança da filha Moema Becker. “Desde que me entendo por gente, ele trabalhava com os bichos todas as horas do dia em que estivesse acordado”, ela me disse numa entrevista telefônica.
Circulou em Brasília a notícia de que um pesquisador local mantinha a maior coleção de mariposas do país. Depois de uma reportagem do Correio Braziliense sobre o acervo, um deputado distrital indicou Becker ao título de cidadão honorário da capital federal. Desconfiado, antes de aceitar a honraria o ex-militante pediu a relação dos outros agraciados. “Tinha milico torturador, político acusado de corrupção”, contou. Agradeceu a lembrança, mas alegou que não tinha o perfil dos homenageados.
Os três filhos foram criados com uma preocupação ambiental incomum para a época. No quintal, faziam a compostagem do lixo orgânico da casa, quando nem se falava em coleta seletiva. Nas viagens de férias, o pai levava a família a tiracolo para capturar mariposas pelo Brasil afora e estimulava o contato com a natureza. Era proibido matar animais de qualquer tipo. “A gente não entendia por que as outras crianças não toleravam bichos”, disse-me Apoena Becker, por telefone. “Quando viam aranha ou formiga, o instinto era matar o bicho. Já a gente corria e dizia: ‘Calma, deixa que eu pego e levo pra outro lugar.’”
Mais de 180 mil espécies de lepidópteros já foram descritas pela ciência, mas o número pode ser bem maior. O nome da ordem vem da união de dois radicais gregos – lepidos e pteron– e quer dizer “asas com escamas”, seu traço distintivo. Quando perdem as escamas, dão a impressão de que secretam um pó – que poderia cegar alguém, segundo um mito bastante difundido, mas que no máximo é capaz de irritar os olhos.
Embora as borboletas sejam mais populares e conhecidas do público, elas representam apenas 10% do grupo. Distinguir umas das outras pode parecer simples: as borboletas voam de dia, pousam com as asas fechadas como duas páginas de um livro e têm uma protuberância na ponta da antena; já as mariposas têm hábitos noturnos, pousam de asa aberta, como uma aeronave estacionada, e sua antena é mais curta e grossa. Mas as exceções a essas regras fazem da classificação um exercício capcioso.
A cor também é um elemento distintivo. As mariposas geralmente têm o tom de cascas ou folhas secas, confundindo-se com o ambiente. Algumas borboletas, por sua vez, apresentam cores vivas, que as tornam bem visíveis para os predadores. Trata-se de um alerta a quem ficar tentado a ingeri-las: a aparência chamativa sinaliza que elas são tóxicas, como um aviso de “inseto indigesto” piscando em neon.
Arroz de festa nos livros didáticos de biologia, o ciclo de vida dos lepidópteros é o exemplo típico da metamorfose, com a imagem da lagarta que se recolhe na pupa até que dali emerja um adulto alado. A maioria dos insetos passa por esse processo, mas em nenhuma outra ordem as fases da vida são tão distintas entre si.
Quando adultas, em geral as mariposas e borboletas se alimentam do néctar das flores – sugado através de uma tromba chamada probóscide –, e com frequência os grãos de pólen grudados em seu aparelho bucal são transportados até a próxima flor que visitam. “Os lepidópteros são os agricultores da floresta”, costuma dizer em palestras o entomólogo Alexandre Soares, que cuida da coleção de borboletas e mariposas do Museu Nacional, no Rio de Janeiro.
Borboletas e mariposas são os únicos animais capazes de polinizar certas flores. “Milhares de espécies de plantas – particularmente as orquídeas – desapareceriam se os lepidópteros fossem extintos”, afirmou Vitor Becker. Muitos desses insetos são polinizadores generalistas, contribuindo para a reprodução de várias espécies vegetais, enquanto outros foram selecionados pela evolução para polinizar plantas específicas. Dentre os exemplos mais notáveis estão certas mariposas que podem passar por beija-flores, uma vez que ficam suspensas no ar enquanto se alimentam. Para conseguir tal prodígio, esses insetos precisam se alimentar de flores abundantes em néctar, diferentemente de mariposas de outras famílias, que se alimentam pousadas sobre a flor.
No século XIX, um colecionador colheu uma orquídea singular em Madagascar e a enviou a Charles Darwin, entusiasta dessas plantas. A geometria da flor era de tal ordem que o néctar estaria acessível apenas a um bicho com uma língua de quase 30 centímetros. Intrigado, o naturalista escreveu que na ilha africana devia haver uma mariposa com aquelas características, mas não viveu para ver a descoberta de uma subespécie – batizada Xanthopan morganii praedicta– que correspondia exatamente à previsão feita por ele. Depois disso, quase um século se passou até que o flagra desse inseto polinizando a orquídea fosse documentado, sacramentando o vaticínio de Darwin.
Para coletar mariposas, é preciso acender uma lâmpada ultravioleta ao lado de um grande lençol branco, pendurado verticalmente, de preferência numa noite de lua nova. Até o amanhecer, inúmeros espécimes acabarão pousando sobre o pano e ali permanecerão imóveis, restando ao pesquisador escolher aqueles que lhe interessam e capturá-los com um frasco. O senso comum dirá que os insetos são atraídos pela luz, mas a explicação é mais complexa: a maior parte dos entomólogos acredita que a lâmpada desorienta o voo das mariposas, que geralmente é guiado pela luz da lua, e por isso elas vão parar no lençol.
Um investigador de mariposas só terá acesso a seu objeto de pesquisa se recorrer à chamada armadilha luminosa. Mas a luz perturba a rotina dos insetos e impede que o estudioso os contemple em situações cotidianas. É como se um antropólogo só pudesse estudar um grupo humano – sejam metaleiros, futebolistas ou entomólogos – instalando câmeras, microfones e spots de luz: seu comportamento se modificaria e não haveria mais a possibilidade de observar qualquer manifestação espontânea. Já o pesquisador interessado em borboletas não tem essa limitação, pois são insetos de hábitos diurnos, podendo ser mais facilmente observados enquanto se alimentam ou se reproduzem.
Embora haja dez espécies de mariposa para cada espécie de borboleta conhecida pela ciência, são estas últimas que atraem a atenção da maior parte dos especialistas. Na avaliação do entomólogo André Freitas, professor da Unicamp, a observação restrita que se pode fazer das mariposas ajuda a explicar a discrepância. “Quem gosta de observar a interação com o ambiente acaba indo estudar outros grupos”, explicou numa entrevista telefônica. “Para as espécies noturnas, o que sobra são os estudos de taxonomia.”
“A coleção de Becker é muito importante, pena que não é pública”, me disse em julho o entomólogo Marcelo Duarte, curador da coleção de borboletas e mariposas do Museu de Zoologia da USP, verbalizando uma reticência manifestada por outros colegas do catarinense. Duarte deixou no ar a dúvida: ao constituir sua coleção, teria Becker empregado recursos públicos ao longo dos 22 anos em que foi funcionário da Embrapa? Frisou, porém, que não tem elementos para julgar o caso. “Para um funcionário público, ter coleção particular cria uma zona nebulosa”, disse ele.
Becker havia puxado o assunto espontaneamente quando, algumas semanas antes de encontrar Duarte, estive na Serra Bonita. Disse que decidiu manter a coleção em âmbito particular porque a Embrapa não só não havia manifestado interesse por ela, como tampouco tinha espaço para abrigá-la. Afirmou que nunca se valeu de recurso público para montar sua coleção e que se cercou de medidas para evitar que um dia fosse acusado disso. “Nunca pedi diárias para as viagens de campo, mesmo que fosse trabalhar num projeto da Embrapa.” Disse ainda que não utilizou equipamento da instituição nas atividades da coleção: “Comprei os geradores necessários à coleta, a lupa que usava em casa e o equipamento fotográfico.”
O diretor da Embrapa Cerrados à época da saída de Vitor Becker era o engenheiro agrônomo Carlos Magno Campos da Rocha – hoje diretor da Embrapa Pesca e Aquicultura, a ser inaugurada em Palmas, no Tocantins. Falando por telefone de Brasília, Rocha lembrou que as viagens a trabalho de funcionários da empresa têm que ser autorizadas pela direção, mesmo que eles banquem despesas de hospedagem e alimentação. “Se viajou em horário de expediente, estava sendo pago pela Embrapa, com recursos da sociedade brasileira”, disse o diretor. Se fosse uma viagem ao exterior, continuou, teria sido necessária uma autorização do governo. “Se ele era funcionário, o material pertence à Embrapa, independentemente de o recurso ser de terceiros.” Perguntei ao ex-diretor se à época se questionou a legitimidade da coleção de Becker, e ele disse não se lembrar de nada nesse sentido. O departamento jurídico da empresa não guarda registro de qualquer reivindicação da coleção.
Becker me disse num telefonema posterior que, antes de sair da Embrapa, recebeu da instituição uma declaração – solicitada por ele – de que os insetos coletados em serviço haviam permanecido no centro de pesquisa, e que sua coleção particular fora obtida por seus próprios meios. Depois, enviou-me uma cópia digitalizada do documento, assinada por uma pesquisadora da Embrapa. Rocha não mencionou a declaração quando o entrevistei.
Adegradação da biodiversidade é um dos sintomas mais visíveis da crise ambiental que o planeta atravessa. Cada vez mais, biólogos sustentam que estamos atravessando o sexto episódio de extinção em massa de espécies – o último deles devastou os dinossauros, bem como três quartos das plantas e animais que viviam há 66 milhões de anos, provavelmente em decorrência da queda de um meteoro no Golfo do México. O número de espécies vitimadas pelo episódio atual de extinção em massa já se conta na casa dos cinco dígitos, quase todas elas em função do encontro desses organismos com uma única criatura: o Homo sapiens. Um estudo do ano passado concluiu que o contato com os humanos acelerou mil vezes a velocidade do desaparecimento de espécies.
As coleções zoológicas, nesse cenário, desempenham um papel que os organizadores dos gabinetes de curiosidades não podiam antecipar: passaram a ser o repositório da biodiversidade perdida, abrigando os últimos registros de que se tem notícia de muitas das espécies extintas. Os taxonomistas, por sua vez, transformaram-se em cronistas da sexta extinção. Ao descrever novas espécies que são automaticamente incluídas nas listas da fauna e flora ameaçadas, eles estão documentando, melhor do que ninguém, a magnitude da devastação.
As andanças de Vitor Becker pelo país em busca de mariposas lhe deram a consciência aguda da degradação do meio ambiente. Cansou-se de voltar a lugares em que havia coletado espécies raras só para descobrir que a área fora desmatada. “Na viagem de Belo Horizonte a Brasília havia cerrado dos dois lados da estrada, mas em poucos anos virou pasto e soja”, contou. “Em certos lugares do Mato Grosso você anda 50 quilômetros, 80 quilômetros, e não vê uma árvore.”
Becker decidiu agir. Depois de conversar com a mulher, compraram uma área na mata para conservar e pesquisar. Restava escolher onde. A Amazônia foi de cara descartada, pois boa parte da mata original ainda está preservada e o esforço dos dois não teria impacto significativo. “Ficou óbvio que seria na Mata Atlântica, que é o bioma mais devastado e uma prioridade de conservação”, disse o pesquisador. A depender dos critérios usados na conta, hoje restam de 8 a 16% da cobertura vegetal existente quando os portugueses aqui aportaram.
A Serra Bonita, situada no sul da Bahia, a algumas dezenas de quilômetros do litoral, estava no radar do entomólogo desde os anos 80, quando a visitou pela primeira vez e coletou “coisas muito interessantes”. Por se tratar de uma área montanhosa com altitude de quase mil metros, a mata abrigava espécies incomuns para a região e se destacava pela biodiversidade. Observadores de pássaros costumavam relatar que no local se avistavam espécies que, de acordo com os guias de ornitologia, ocorriam apenas ao sul do Rio de Janeiro. Em 2007, um levantamento da diversidade de árvores numa reserva estadual próxima a Serra Bonita confirmou a riqueza da biodiversidade: foram encontradas ali 144 espécies em mil metros quadrados, um recorde que só foi superado num trecho de floresta na Colômbia.
A baixa nos preços das terras na região também pesou na escolha. A economia do sul da Bahia, tradicional região de plantio de cacau, entrou em crise no final dos anos 80, com a concorrência de produtores da Ásia e com a chegada da vassoura-de-bruxa, fungo que ataca os cacaueiros. Foi nesse cenário que em 1998 o casal comprou sua primeira propriedade na Serra Bonita, no município de Camacan, a 405 quilômetros de estrada de Salvador. Tratava-se de um lote de 125 hectares (pouco mais de um quilômetro quadrado) no topo do morro, ao lado de uma torre de telecomunicações, servido por uma estrada e com acesso à rede elétrica.
Quando o entomólogo se mudou para a Bahia, já havia adquirido quarenta pequenos imóveis rurais e era dono de 1 200 hectares. Segundo contou, a população local ficou desconfiada: por que alguém compraria terras e não faria nada com elas? “O senhor vai plantar o que lá?”, queriam saber. Nada, ele respondia. “Então o senhor vai tirar madeira? Lá tem ouro, mármore?” “Vou comprar para conservar.” Parecia inconcebível.
O casal fez questão de registrar em cartório o compromisso de conservar as matas, cadastrando-as como uma Reserva Particular do Patrimônio Natural. As RPPNs, sigla como são conhecidas as reservas privadas, só podem ser usadas para fins de conservação, pesquisa científica e ecoturismo, e têm caráter irrevogável – quem vier a comprar uma está obrigado a mantê-la com esse status.
Em 2001, Becker criou uma entidade civil sem fins lucrativos para viabilizar o recebimento de doações para sua reserva e o estabelecimento de parcerias com universidades e centros de pesquisa. Batizou-a de Instituto Uiraçu, homenageando a maior ave de rapina do Brasil (também conhecida por gavião-real ou harpia), capaz de atingir 1 metro de comprimento e 2 de envergadura – Becker a avistou duas vezes na Serra Bonita. O instituto já recebeu recursos de instituições brasileiras como a SOS Mata Atlântica e a Fundação Grupo Boticário, mas o grosso dos apoiadores são ONGs estrangeiras que financiam a aquisição de terras e ampliam a área protegida sob a gestão de Becker e Souza.
Quando estava começando a comprar terras para criar uma reserva, Becker foi atrás de uma amiga bióloga americana. Será que o irmão dela, um homem rico que mora em Frankfurt e tem uma companhia de recuperação de empresas quebradas, não teria interesse em fazer uma doação? Sondado pela irmã, o americano se disse disposto não a doar, mas a comprar terras. De cara propôs entrar com 300 mil dólares, muito mais do que o brasileiro havia imaginado. O “parceiro americano”, como Becker se refere a ele, também o ajuda de outra forma. Aproveitando os juros generosos do mercado brasileiro, criou um fundo patrimonial cujos rendimentos são repassados ao Instituto Uiraçu. “Com esse recurso pagamos o salário dos guardas”, disse Becker. Ainda que prefira preservar a identidade do mecenas, o cientista batizou uma bromélia encontrada em Serra Bonita – “uma das mais bonitas da reserva” – em homenagem ao pai do americano, que cultivava essas plantas por hobby.
Becker já negociou a compra de cerca de 2 200 hectares na Serra Bonita, dos quais mil hectares pertencem a sua família, e o resto, ao parceiro americano ou ao Instituto Uiraçu. O total equivale a pouco mais da metadedo Parque Nacional da Tijuca, no Rio de Janeiro, uma das maiores áreas de floresta urbana do mundo. A Serra Bonita está entre as quase 900 propriedades registradas como RPPN na Mata Atlântica. “Becker teve um papel importantíssimo na manutenção daquela área, num momento em que a região sofria muito devido à queda do cacau”, disse a bióloga Mônica Fonseca, consultora da SOS Mata Atlântica. “Ali era monocultura, os fazendeiros foram à falência e começaram a jogar a floresta no chão” – o cacau cresce à sombra de árvores maiores, num sistema conhecido como cabruca.
Numa terça-feira de junho, Vitor Becker decidiu tomar seu chimarrão vespertino sentado na varanda. Ele havia colocado duas bananas num comedouro para passarinhos e contemplava a refeição dos gaturamos, quando de repente pulou em seu colo Pelé, um bugio-marrom que lhe foi confiado por um morador da região há dois anos e meio. O macaco vive solto na mata, mas está sempre por perto ao perceber movimento no centro de pesquisa. Segue o dono em suas caminhadas ou se aboleta no capô quando ele está de carro.
Becker armou um bico e pôs-se a emitir uma série de grunhidos. Pelé agitou-se sobre seu colo e começou a imitá-lo. “Ele está aprendendo a vocalizar”, disse o pesquisador, como que para se justificar. “É meio tímido.” Explicou que o macaco pertence à espécie Alouatta guariba, da qual só devem restar na natureza cerca de 200 indivíduos. No começo do ano, o ICMBio, o órgão federal que zela pela biodiversidade do país, lhe disse que haviam encontrado uma possível namorada para o animal – queriam tentar reintroduzir a espécie na Serra Bonita, onde já não há mais bugios. Xuxa, como foi prontamente batizada a fêmea, foi levada para lá e por algumas semanas conviveu em harmonia com Pelé. Mas sumiu há três meses, e não se sabe de seu paradeiro.
Quando circulou em Camacan a notícia de que Vitor Becker comprara as terras no topo do morro, um morador o interpelou. “É verdade que o doutor vai morar lá no alto? Aquilo ali fica coberto por nuvem o inverno todo.” Numa tarde fria, ainda em junho, Becker quis continuar nossa conversa diante da lareira. Acendeu o fogo e convidou a mulher para dividir um chimarrão. Resfriada, Clemira Souza surgiu coberta de agasalhos, praguejando contra o frio. Sentou-se ao lado do marido e puseram-se a falar sobre as finanças da reserva e do instituto. Becker contou que, quando a mulher se tornou professora da UnB, ela assumiu os gastos domésticos, liberando-o para gastar seu salário com as viagens de campo, a biblioteca e a coleção de mariposas (foram 120 mil reais só em gavetas). “Temos uma finança conjunta”, brincou o marido, “ela ganha e eu gasto”, emendando com uma risada sonora.
O casal gastou cerca de 2 milhões de reais para adquirir as propriedades e construir as edificações na Serra Bonita, segundo as estimativas de Becker. Os dois empenharam as economias reunidas durante a vida, venderam a propriedade da Asa Norte e imóveis que tinham em Goiás.
A iniciativa criada pelos dois está fundada naquilo que eles chamam de uma “ética ecocêntrica”, oposta à concepção antropocêntrica de que a natureza foi criada para servir o homem. “Nossa concepção é diferente, o centro está na natureza”, explicou Becker. “Nós como parte dela, não como donos.” O entomólogo acrescentou que costuma ter atritos com movimentos ambientalistas que justificam os esforços de conservação com argumentos utilitaristas – a Amazônia precisa ser preservada porque nela está a cura do câncer, as matas ciliares têm que ficar de pé para que não nos falte água. “Conservamos árvore, animal, passarinho porque entendemos que eles também têm direito à vida, assim como nós”, argumentou. “Estamos todos no mesmo barco: se ele afundar, afundamos também.”
A visão ambiental de Becker é coerente com suas pesquisas: a taxonomia se contenta em nomear e descrever o mundo, sem nenhuma preocupação utilitária. Quem descreve uma nova espécie é movido apenas pelo desejo de aumentar o conhecimento disponível. Saber o que existe – em oposição a não saber – já seria um valor suficiente, que dispensa razões ulteriores.
Clemira Souza acrescentou que adotar a ética ecocêntrica exige uma mudança radical de postura em relação à natureza, o que pode gerar certa resistência. “Sabemos onde está o nosso norte, mas não podemos ir sozinhos e deixar todo mundo para trás”, afirmou. “Se nos isolarmos aqui, mas nosso vizinho tiver outra mentalidade, não chegaremos a um acordo.”
Não há nada de dócil ou ingênuo na visão ambiental de Becker. Quando se instalou na região, ele penou para impedir a entrada de caçadores em sua reserva, em busca de caititus, pacas, quatis e macacos. Ao relatar sua dificuldade a um vizinho, recebeu o seguinte conselho: “A única maneira de resolver isso é comprar uma carabina e passar fogo nos cachorros de caça.” Recomendação aceita: o proprietário providenciou uma espingarda de calibre 20 e matou meia dúzia de cachorros. “A notícia correu, e pronto.” Becker admitiu ter pena dos cães sacrificados. “Quem tinha que levar chumbo era o dono, mas como não posso atirar nele...”
AEmbrapa, onde Vitor Becker fez carreira, é uma instituição de pesquisa que não oferece cursos de pós-graduação. Por isso, o entomólogo não teve muitos alunos em quase meio século de carreira. Coorientou estudantes de doutorado de outras instituições, mas não formou discípulos. Em compensação, nunca se negou a dividir sua expertise com colegas do Brasil e do mundo. Recebe com frequência espécimes ou fotos que ajuda a identificar, e coloca seu acervo à disposição da comunidade.
Seu maior legado científico é sua coleção de mariposas, sem igual no Brasil. Existem coleções de lepidópteros da mesma ordem de grandeza que a de Becker – notadamente na Universidade Federal do Paraná, no Museu de Zoologia da USP e no Museu Nacional da UFRJ. Em todas elas, porém, há mais borboletas que mariposas. Os três são acervos institucionais, obras coletivas derivadas do esforço de inúmeros entomólogos profissionais e amadores. Já a coleção de Vitor Becker foi toda reunida por ele – trata-se de um “museu de um taxonomista só”, como ele gosta de definir.
O biólogo Ricardo Monteiro, coordenador do Laboratório de Ecologia de Insetos da UFRJ, notou que o acervo de Becker chama a atenção não só pela grandeza, mas também pelo zelo na preparação dos espécimes. “Há coleções no país com grande número de exemplares, mas o estado do material às vezes é precário, seja porque não foi montado adequadamente, seja por falta de manutenção”, disse Monteiro, que é amigo do catarinense e ele próprio curador de um acervo modesto em seu laboratório. Becker, pelo contrário, mantém os exemplares “em estado perfeito, qualidade nota 10”.
Um amador pode colecionar insetos por hobby, como se acumulasse selos ou moedas, e se guiar por princípios estéticos, selecionando apenas os espécimes mais formosos. Um taxonomista, por sua vez, costuma ser guiado pelo desejo de documentar a diversidade de um determinado grupo, entender sua relação com outros grupos e determinar seu lugar na árvore da vida. Será guiado por um desejo de exaustividade, como se quisesse completar as figurinhas de um álbum. Mas a metáfora tem alcance limitado. Quem tenta preencher um álbum de figurinhas sabe de antemão quantos cromos existem e quais faltam para completá-lo. O colecionador de insetos às vezes pode topar com espécies de cuja existência ele sequer suspeitava.
Becker se lembra com nitidez de uma figurinha faltante em seu álbum – uma mariposa que ele viu certa madrugada numa parada de estrada no Vale do Ribeira, durante uma viagem de ônibus entre São Paulo e Curitiba. “No batente da porta havia um notodontídeo pousado que nunca mais encontrei”, lamentou. “Se o vir de novo, saberei que é ele.”
Uma das figurinhas especiais da coleção de Becker é uma mariposa cujas asas traseiras são amarelas e as dianteiras em padrões em preto, branco e cinza. O catarinense escolheu-a para homenagear a mulher, conforme contou enquanto tirava a gaveta em que jaziam onze exemplares do inseto. Queria que fosse uma espécie bonita, mas não qualquer uma. Becker soube que a hora tinha chegado quando se deparou com um inseto formoso que não estava corretamente classificado na literatura. Num trabalho publicado em 2009, o brasileiro mostrou que a mariposa até então conhecida como Aucula magnifica deveria ser encaixada em um novo gênero, que ele aproveitou para propor. A mariposa passou a ser chamada de Clemira magnifica.
A homenageada só tomou conhecimento da honraria depois que o artigo estava publicado. “Ave-Maria”, ela exclamou, encabulada, ao evocar o episódio. “Eu sempre tinha pedido a ele que não misturasse nossa vida pessoal, não queria ter meu nome ligado a isso.” O marido fez pouco caso do protesto. “Um novo gênero deve ser dedicado a alguém que fez algo relevante para o conhecimento do grupo”, argumentou. “Ela passou noites e dias preenchendo etiquetas e permitiu que eu montasse a coleção, assumindo os gastos da casa.” Moema Becker, filha do casal, tem umaClemira magnifica tatuada na omoplata esquerda. “Foi um jeito de homenagear os dois”, ela me disse.
Vitor Becker adoeceu numa de suas temporadas no Smithsonian em Washington. Quando, de volta ao Brasil, relatou o caso aos filhos, o mais velho quis saber que destino deveriam dar à coleção caso algo lhe sucedesse. O entomólogo impôs duas condições. “A primeira é que ela não pode sair do Brasil”, disse. Não quer que, no futuro, alguém que se disponha a estudar as mariposas tenha que começar do zero, como ele. “Em segundo lugar, não pode ir para o Museu Nacional.”
Fundado em 1818, o Museu Nacional foi uma das instituições criadas por dom João VI pouco depois de se instalar com a corte no Rio de Janeiro, e uma de suas finalidades era documentar a história natural brasileira. Atualmente abriga a mais antiga coleção de lepidópteros do país. “Temos 186 mil exemplares montados, dos quais de 85 a 90% são borboletas”, me disse o biólogo Alexandre Soares numa manhã de junho, durante uma visita ao acervo. Contratado há quase trinta anos pelo museu como técnico de laboratório, Soares faz as vezes de curador informal de lepidópteros – há mais de uma década a instituição não tem em seus quadros um pesquisador especializado.
O Museu Nacional ocupa desde 1892 o parque da Quinta da Boa Vista – é um prédio imponente com pé-direito alto e vastas janelas, que serviu de residência para a família imperial brasileira. Os lepidópteros hoje ficam no 2º andar, mas já ocuparam diversos cômodos. Soares contou que, desde 1984, já presenciou seis remanejamentos da coleção, alguns deles por causa de goteiras. “Peguei duas grandes chuvas aqui, uma em 1986 e outra em 1995. Ambas atrapalharam muito as borboletas”, disse o biólogo. Os remanejamentos também deixaram sequelas na coleção. “O bicho é muito frágil”, explicou. “A cada vez que você muda danifica o material, perde antena, perninha.”
Em 1990, quando Becker visitou o Museu Nacional, impressionaram-no as goteiras, a umidade e a fiação exposta. Alexandre Soares ressaltou, porém, que desde então o pesquisador não retornou, não tendo podido testemunhar as melhorias recentes. “Ele viu a coleção cheia de fungos e sujeita a praga, mas não tem noção do estado em que está hoje”, disse. “A umidade está controlada, e não tenho bichos comidos há muitos anos.”
Um possível destino para as mariposas de Vitor Becker seria reunir-se ao acervo da Universidade Federal do Paraná, que ele reputa ter a melhor coleção de borboletas da América Latina. Os curadores são Mirna Casagrande e Olaf Mielke, um entomólogo veterano de 74 anos nascido na Alemanha e naturalizado brasileiro. “Nossa coleção é forte em borboletas, e a do Vitor Becker, em mariposas”, disse Mielke, por telefone. “Juntar as duas seria o melhor que poderia acontecer para o Brasil.”
Becker, contudo, se mostrou reticente quanto à perspectiva de transferência para uma universidade. O futuro do acervo da UFPR seria incerto, uma vez que a aposentadoria dos curadores se aproxima e nada garante que sejam substituídos por um especialista em lepidópteros. “O lugar apropriado para as coleções são os museus, que geralmente têm uma política de continuidade: se um cara de besouros se aposenta, eles contratam outro”, defendeu.
No início deste século, o Museu de Zoologia da USP abriu negociações com Vitor Becker a fim de adquirir sua coleção. As partes acertaram um preço, a ser pago com recursos da Fapesp, a fundação paulista de apoio à pesquisa. As tratativas não prosseguiram, porém, pois o pesquisador só se dispunha a entregar o acervo depois que desse por encerradas suas atividades de pesquisa. Não foi a única oferta que recebeu: o Museu Carnegie de História Natural, na Pensilvânia, lhe propôs 1,3 milhão de dólares – cerca de 4 dólares por exemplar –, mas Becker não abriu mão de manter a coleção no Brasil.
Na lateral do prédio em que funciona a pousada, numa parede que dá para a mata, ficam permanentemente instalados um lençol branco e uma lâmpada de mercúrio. (Becker já identificou 5 mil espécies de lepidópteros na Serra Bonita, mas acredita que o número possa aumentar bastante com estudos mais sistemáticos.) Numa noite de lua nova, disse, o pano pode amanhecer preto, com centenas de espécimes.
Pedi ao anfitrião que deixasse a luz acesa durante a última noite que passei na Bahia, para ver a armadilha luminosa em ação. Enquanto seguíamos rumo à pousada, ele previu que a noite não seria muito produtiva – continuava chovendo sem parar, e o termômetro de seu carro marcava 18 graus. “Com esse tempo não vai chegar praticamente nada”, vaticinou. “Umidade até que é bom, mas está ventando e muito frio.” Evoquei os versos de Adoniran Barbosa: As mariposa quando chega o frio/ Fica dando vorta em vorta da lâmpida pra si isquentá. Becker sorriu e decretou: “Está tudo errado”, disse ele, com a língua estrilando no céu da boca. “Para começar, elas não voam no frio, não são atraídas pela lâmpada e não vão se esquentar”, disse ele, cantarolando uma estrofe do samba. “O Adoniran era uma figura.”
Na manhã seguinte, fui conferir o butim da coleta antes do nascer do sol: não havia um inseto sequer, conforme Becker tinha antecipado. Durante o café da manhã, antes de tomarmos a estrada para Ilhéus, relatei a ele o fracasso da empreitada. O entomólogo não se mostrou surpreso. “Se eu não soubesse, depois de cinquenta anos trabalhando com isso, melhor seria mudar de atividade.”
8 de setembro de 2015
BERNARDO ESTEVES
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