quarta-feira, 4 de novembro de 2015

A XANGRILÁ DOS DESCONTENTES

Carta da Flórida
Cenas da comunidade brasileira em Miami


O movimento começou por volta da uma da tarde. Fazia um calor úmido, o sol estava a pino, a luz refletia no asfalto e nos arranha-céus espelhados. Homens, mulheres, jovens, crianças, idosos e até cachorrinhos usavam tons de verde e amarelo. Alguns agitavam bandeiras, outros erguiam cartazes escritos à mão, bebês seguravam balões. A profusão de , paus de selfie e celulares estrategicamente posicionados denotava um clima familiar, quase festivo. De longe, o grupo lembrava um esquenta pré-Copa do Mundo.

Na praça em frente à avenida arborizada por palmeiras, uma mulher bonita – de legging e camiseta preta – empunhava um megafone. “Vocês estão vendo o que está acontecendo no Brasil? O que estão falando no Facebook, nas redes sociais, na televisão?”, indagou à plateia de umas 100 pessoas. Uma delas gritou: “Censura!” E ela: “É! Mas aqui a gente pode falar! Lá, eles tentam esconder, abafar, mentir. Mas aqui é democracia! Estamos nos Estados Unidos”, disse. Houve palmas e assobios. “Vamos mostrar que quem está fora também se importa com o Brasil! Queremos um país melhor porque sabemos o que é um país melhor! Fora, Dilma! Fora, PT!”

Era o começo da tarde de 15 de março, data marcada para os protestos contra a presidente Dilma Rousseff tanto no Brasil como no exterior. Estávamos em frente ao Bayfront Park, em Miami, a maior cidade da Flórida, onde 92% da comunidade brasileira votou em Aécio Neves no segundo turno das eleições. Nenhuma outra cidade deu ao candidato tucano votação tão expressiva quanto à registrada nos Estados Unidos.

Ali estavam expatriados com visto de estudante, com visto permanente, sem visto; os que estão esperando o green card e os que nunca vão tê-lo; os que imigraram há trinta anos e os que acabaram de chegar; os que vieram de avião e os que atravessaram a fronteira a pé; os que produzem e os que só gastam; os que vão voltar para casa e os que nunca mais. Em comum, todos que adotaram a América e queriam Dilma Rousseff fora do governo já.

O segundo mandato da presidente contava apenas 75 dias e ela já amargava uma fase de cão. Uma pesquisa do Datafolha indicava que a aprovação do governo atingira 13%, o pior índice de um presidente da República desde a desvalorização do real, em 1999. Mais de 60% dos brasileiros consideravam o governo ruim ou péssimo. Naqueles dias, o dólar batera à porta dos 3,30 reais – a maior alta dos últimos doze anos –, as prisões da Operação Lava Jato seguiam a todo vapor e os rumores sobre o impeachment ganhavam corpo nos conchavos políticos.

A 7 mil quilômetros de distância, os brasileiros externavam suas queixas: contra a corrupção, o escândalo da Petrobras, a segurança, a saúde, a educação, a presidente, o Partido dos Trabalhadores, o ex-presidente Lula. Um homem de cavanhaque e camisa polo amarela brandia um cartaz duvidando da lisura das eleições: “Urna eletrônica real: Aécio 62% e Dilma 38%. Hackers contratados pelo Planalto fraudaram o resultado.” A seu lado, uma mulher pedia “intervenção militar já”. Ela balançava uma cartolina em que se lia: “Presidente Figueiredo tinha doze ministérios, negou a Copa do Mundo do Brasil por excesso de gastos. Era considerado ditador. Morreu pobre.”

O brasileiro de cavanhaque dizia ter cidadania americana. Pedi que me contasse sobre a fraude nas urnas. Ele explicou que o governo segurou o anúncio do resultado das eleições com a desculpa do horário de verão no Acre – uma história que havia corrido pelas redes sociais durante meses. “Foi para ganhar tempo e manipular os dados. O Aécio estava ganhando até a hora que começaram a apurar o Acre. Aí ela passou na frente”, disse, enfático. A acusação não teria ido adiante porque “a imprensa no Brasil é toda comprada”. “Mas aqui nós conseguimos denunciar.”

No extremo oposto da praça, uma mãe tentava capturar a imagem do filho com os amiguinhos à frente da turma canarinho. “Vamos tirar uma foto dos brasileirinhos do futuro”, disse, convocando outros pais. Uma mulher erguia um cartaz dizendo que era melhor lavar privada em Miami do que “viver na merda do Brasil”. Era uma resposta à imagem que na véspera havia sido publicada pelas redes sociais durante um ato a favor do PT, em São Paulo. Nela, um jovem aparecia com o pôster: “Odeia o Brasil? Vai lavar privada em Miami!”

A moça do megafone continuava: “Assim como eu, todos aqui fomos exilados. Seja pela violência, pela falta de oportunidade, pela corrupção. Cada um de nós tem uma razão para estar aqui hoje!” O motorista de um carro preto cruzou o protesto com a mão enfiada na buzina. Mais palmas. E a moça puxou o coro: “Dilma, no more!” Flagrei um casal comemorando a desvalorização do real. Comentavam entre si que os 200 dólares que mandavam para a família estavam valendo muito mais.

Nas horas que seguiram, bradou-se também contra fantasmas de tempos idos: comunismo, ditadura de esquerda, socialismo. Cuba, Venezuela, União Soviética e até a cor vermelha – tudo era evocado como num ritual de expiação. Com a ajuda da mãe, de boné com o logo da Seleção, um garotinho carregava um cartaz endereçado à presidente: “Nossa bandeira jamais será vermelha, sua anta vagabunda!”

Houve fotos em grupo, pintura de rosto com um risco verde e outro amarelo, hino nacional entoado a capela, bordões recitados em uníssono (“Lula cachaceiro, devolve meu dinheiro!”). Quando o sol começou a pinicar, a maioria se abrigou sob uma árvore frondosa. Às seis da tarde, o grupo se dispersou. De acordo com a organização, ao longo do dia 1 500pessoas passaram por lá. No Brasil, a grita contra o governo reuniu 1 milhão de pessoas em 160 cidades do país.

OMinistério das Relações Exteriores estima que haja entre 250 mil e 300 mil brasileiros vivendo na Flórida. O número é impreciso porque a imigração ilegal ainda é alta. De acordo com o Itamaraty, a comunidade brasileira é extensa, variada e dispersa. Só para se ter uma ideia, menos de 23 mil patrícios registraram-se para votar nas eleições. Uma pesquisa feita pelo consulado com 1 276 brasileiros – patrocinada pela Odebrecht, Banco do Brasil e Embraer – revela que a maioria dos imigrantes tem baixa escolaridade, trabalha como autônoma, ganha pouco e possui casa própria. Em torno de 25% deles são ilegais. “É uma amostragem restrita, mas outros dados apontam a diversidade da comunidade brasileira. Vai desde o trabalhador que veio ‘fazer a América’ até o empresário mais próspero”, disse o embaixador Hélio Ramos Filho, um sujeito falante e simpático, em seu gabinete decorado com obras de Romero Britto.

Esse contraste entre a Miami de praias, festas e imóveis de luxo com a Miami dos ilegais, dos operários, da mão de obra bruta seria, segundo o embaixador, único. Em comum, porém, o grupo acabaria apresentando algumas características. “É hoje uma comunidade de classe média, que se inteira de tudo sobre o Brasile mantém seus vínculos com o país: não acompanha a CNN, mas assiste ao Jornal Nacional, às novelas e ao futebol pelo pay-per-view”, afirmou.

Recentemente, estatísticas sobre a procura de imóveis por brasileiros na Flórida e o aumento dos pedidos de visto permanente passaram a corroborar a impressão de que Miami seria o destino final de uma novíssima diáspora: a dos indignados com o governo. Reportagens exaltando o estilo de vida local (“o Rio que deu certo”), os imóveis baratos (“valor de uma casa no Guarujá”), a segurança impecável (“dá para sair à noite sem medo”), as praias limpas ou as regras de trânsito seguidas à risca alimentaram o mito.

Durante a campanha eleitoral, Miami foi mencionada como rota de fuga caso o Partido dos Trabalhadores continuasse no poder. O cantor Lobão ameaçou se mudar, mas desistiu. Já o colunista Rodrigo Constantino, da revista Veja, fez as malas. “Nós vamos é para a Flórida mesmo, como tantos brasileiros decentes têm feito, cansados desse clima de subversão de valores em nossa sociedade, de doze anos ininterruptos de incompetência e roubalheira escancaradas sob a conivência de boa parte da população”, comunicou no final de fevereiro.

OApogee é o edifício mais cobiçado de Miami. Localizado na área nobre de Miami Beach chamada South of Fifth, é um quadrado envidraçado com varandas e uma vista espetacular para o oceano e a Fisher Island. Com 600 metros quadrados, pé-direito alto, cada unidade já vem com uma adega para 132 garrafas, o banheiro lembra um spa e há uma “cozinha de emergência” na suíte principal. Dos 68 apartamentos, 22 pertencem a brasileiros com bala para desembolsar cerca de 10 milhões de dólares pelo imóvel, e outros 15 mildólares de condomínio mensal.

Entre os proprietários, estão os paulistanos Cristiana e Marcos Machado. Outro condômino, o empresário João Carlos Camargo – dono da 89 FM e Nativa FM –, desfruta do imóvel nas férias. Ele transformou uma das garagens em uma adega adicional, uma das mais invejadas da cidade.

Morando em Miami há mais de trinta anos, Cris e Marcão – como são conhecidos – são os anfitriões da elite brasileira local. O Réveillon organizado por eles, que chega a contar com 300 convidados, reúne habitués de colunas sociais, como Kiki Garavaglia, Bebel Malzone e o chef José Hugo Celidônio. Em uma reportagem de 1992, eles já eram identificados como os “embaixadores brasileiros” na Flórida.

Na casa dos 50 anos, Cristiana é uma loiramignon que fala pausadamente. Filha de uma família de donos de cartório, ela e o marido, do ramo da construção civil, chegaram a Miami fugindo do governo Collor. Ao longo dos anos, fermentaram a fortuna graças aos infortúnios da natureza. Representante da cerâmica brasileira Eliane, Machado forneceu revestimentos para a maioria dos prédios arrasados pelos furacões que destruíram a cidade.

Em uma tarde de março, estávamos na sala de seu apartamento no Apogee, decorado com objetos de arte e uma tela enorme do artista plástico Juarez Machado. O cachorrinho Schmoop, um havanese cinza, corria de um lado para o outro. Um navio turístico cruzou a baía e tomou todas as janelas do apartamento. “Vamos lá ver que beleza”, Cristiana convidou. Na varanda, passou a apontar os edifícios e seus proprietários brasileiros: o Continuum, onde o publicitário Roberto Justus tem um apartamento de 2 mil metros quadrados; o Portofino, que acolhe o árbitro Arnaldo Cézar Coelho. No outro extremo da cidade, no Saint Regis, se refugiam os empresários João Dória e Carlos Alberto de Oliveira Andrade, o Caoa; o apresentador Faustão; o ex-ministro Walfrido dos Mares Guia. Corretora de imóveis na Cervera, Cristiana sabia de cor números, nomes e metragens. “Até porque o clima aqui é de cidade pequena, todo mundo se conhece”, comentou.

A vida do casal, ela contou, era animada, sempre com jantares, shows ou boates. “É o espírito de Miami. Aqui é como se fosse uma São Paulo com praia e onde tudo funciona”, explicou. A conversa enveredou para a política. Para ela, os brasileiros de Miami tiveram razão ao votar maciçamente em Aécio Neves. “Aqui nosso voto não é o da cesta básica. O PT só ganhou por causa do voto dos pobres”, disse. Perguntei se o voto da comunidade em Miami seria mais consciente. “Claro! Bem mais esclarecido do que o do pessoal que vive no Nordeste com Bolsa Família”, afirmou. Em sua avaliação, o que o governo fez foi uma “lavagem cerebral” entre os mais necessitados, condicionando o desempenho nas urnas à entrega de benefícios sociais. “Mesmo quem é mais pobre em Miami vê a diferença. Como as coisas aqui funcionam, escola pública, saúde; como o dinheiro dos impostos é usado para melhorias na comunidade.”

Enquanto conversávamos, a empregadada família, a paulista Gercília Santos, ofereceu café. “Conta para ela, Gê, como é sua vida”, sugeriu a patroa. Aos 51 anos, aparentando um pouco mais, Gercília trabalha com os Machado há vinte. Nesse período, comprou uma casa de 250 mil dólares, trouxe o filho, adquiriu um “carro excelente”, passou a frequentar academia de ginástica antes do trabalho. “Eu tenho passaporte americano e nem falo inglês”, disse. “Mas falo espanhol.”

Casada com um carioca que trabalha na construção civil, não pensa em voltar ao Brasil “nem a passeio”. Também tinha críticas contumazes ao governo, sobretudo no que diz respeito ao Bolsa Família, que chamou de “isca para votos”. Com um salário mensal de 3 500 dólares, ela trabalha quatro vezes por semana, cinco horas por dia. “Não é a praxe, mas ela está com a gente há vinte anos, então é da família”, disse Cristiana. Por lá, a média salarial de uma empregada disponível seis horas por dia varia entre 700 e 800 dólares por semana. “Quando no Brasil eu ia ter isso?”, indagou a doméstica.

Acidade de Miami é um retângulo na costa do sul da Flórida, de onde saem pontes que ligam o continente a Miami Beach – uma tripa de terra com 20 quilômetros de praias e temperatura amena o ano inteiro. O condado de Miami-Dade tem 2,6 milhões de habitantes, dos quais 65% sãolatinos – o que faz do espanhol a língua dominante nas ruas. Uma piada diz que um alemão chegou a Miami Beach e perguntou quem era americano. Do mar chegou-lhe um grito: “Yo, yo!”

Os brasileiros estão por toda a parte. “Eles procuram um lugar parecido com o local em que moram ou gostariam de morar no Brasil”, disse-me o mineiro Alan Araujo, corretor de imóveis da One Sotheby’s, cuja carteira de clientes tem quase metade de patrícios. Em analogias com Rio e São Paulo, é como se morar em Coral Gables fosse morar no Jardim Botânico; já Key Biscayne é tipo Angra; Sunny Isles é a Barra da Tijuca; Fisher Island é um condomínio chique na ilha da Gigoia; a engravatada Brickell é a Cidade Jardim; Miami Beach é o Leblon.

O turismo é o motor econômico da cidade. Quase tudo vem de fora, incluindo as palmeiras (Trinidad e Tobago), os flamingos e o aterro da areia da praia (Bahamas). Nos últimos tempos, Miami se converteu num enclave estratégico para empresas latino-americanas e é o segundo centro financeiro mais importante do país, só atrás de Nova York. Um levantamento da Universidade da Flórida mostrou que 1 300 multinacionais, entre bancos e empresas, estão instaladas na cidade. O porto é enorme e recebe 40% das exportações para a América Latina. Miami também aninha a indústria de entretenimento e mídia, sediando os escritórios dos principais canais de televisão latinos.

Em contraste com o mar cor de limonada, os arranha-céus radiantes, os neons que nunca apagam, salta aos olhos a Miami dos pobres, dos imigrantes ilegais, dos refugiados que fazem a cidade figurar entre as mais carentes dos Estados Unidos. Em 2012, a revista Forbes disse que, apesar de ser o centro financeiro latino, a cidade ocupava o primeiro lugar no ranking de pobreza no país. A vinte minutos de Miami Beach, Little Haiti é o bairro mais pobre, com uma paisagem degradada, mendigos, usuários de crack, filas perenes de distribuição de sopa e comida rápida de baixa qualidade. Em Little Havana, multiplicam-se os refugiados nicaraguenses, haitianos e jamaicanos.

Na área abastada, veem-se gruas e tapumes por todo lado, com uma trilha de som de britadeiras e o trânsito desviado por funcionários uniformizados. O aeroporto cresceu, construiu-se um metrô, há muitos lançamentos de condomínios de luxo. Pelo menos cinco arquitetos premiados com o Pritzker – o Nobel da arquitetura – têm obras espalhadas pela cidade.

Desde 2002, a Art Basel, uma das maiores feiras de artes plásticas do mundo, se transferiu para Miami, calando a fama de deserto cultural que se atribuía à cidade. Na onda, surgiram preciosidades como a New World Symphony, uma orquestra de jovens musicistas cuja sede fica num edifício projetado pelo arquiteto Frank Gehry, bem como o Pérez Art Museum, o PAMM, projeto de 220 milhões de dólares, parte doada por um mecenas cubano-argentino.

O grosso dos brasileiros, porém, passa ao largo da neófita vocação cultural da cidade. Embora 800 mil deles tenham desembarcado no ano passado, apenas 4 300 visitaram o museu. De acordo com Alexa Ferrara, relações-públicas do PAMM, os brasileiros somaram 14% do total de visitantes “A vocação de Miami é frívola, hedonista. Ainda é a cidade dos excessos, da mundanidade”, disse Anthony Maingot, professor da Universidade Internacional da Flórida e autor do livro Miami: A Cultural History. Por ter apenas 100 anos, uma população flutuante e forte migração, é um posto sem tradição ou hábitos arraigados. Não teria a nobreza cínica de Nova York, a frieza oficialesca de Washington ou a força cosmopolita de Chicago. “É ninho das celebridades, da moda, da droga, da festa, dos tipos mais estranhos. Está no DNA”, disse. Os teatros apresentam mais musicais da Broadway do que balés, óperas ou concertos. “Quando acaba a Art Basel, por exemplo, a cidade volta ao seu normal: festa, celebridades, moda, baladas”, comentou a diretora de Redação da revista Vogue, Daniela Falcão, que edita anualmente um número dedicado a Miami.

Um dos reis da locomotiva noturna na cidade é o carioca Beto Biscaia. Aos 46 anos, vive no exterior há quase trinta e é conhecido como o “prefeito de South Beach”. Qualquer brasileiro com um pé na grã-finagem tem o celular dele e manda mensagem para perguntar “qual é a boa” do momento.

Olhos verdes, pele bronzeada, cabelo meio bagunçado, Biscaia exibe no antebraço uma tatuagem com seu sobrenome. Ouve mais do que fala, e quando fala é simpático e gentil. Começou a carreira como modelo. Por anos foi o garoto-propaganda de uma marca de vermute, o que lhe valeu o apodo de “Homem Martíni”. Mudou-se para a Europa – Itália, França, Ibiza, Saint-Tropez –, onde transformou em negócio o pendor pela badalação. É um bem-sucedido promoter, relações-públicas e empresário da noite. No final do ano passado, reuniu 1 700 pessoas (“Noventa por cento brasileiros”, disse) numa festa de Réveillon cujo ingresso custava mil dólares para mulheres e 1 500 para homens.

“Ano-Novo aqui não tem tradição. Eu quero imprimir a cultura do show de fogos, pular ondinha, usar branco”, disse Biscaia numa tarde recente no calçadão da Lincoln Road, o Centro da cidade que não tem centro. Não é uma Croisette de Cannes, mas é onde turistas e locais se sentam para acompanhar o trottoir de Miami.

Estatísticas da prefeitura registram que um sábado típico atraia 15 mil pessoas aos oito quarteirões de lojas ao longo do calçadão. Pseudocelebridades, mulheres só de biquíni e salto alto, gays superproduzidos, famílias caretinhas e uma fauna de meia-idade. Em Miami, cinquentões e sessentões jamais serão rotulados como senhoras sem noção ou tios Sukita. Independentemente da idade, as brasileiras, sobretudo, usam roupas justas, shorts com salto alto, relógio dourado bem grande e cultivam o comprimento do cabelo bem abaixo dos ombros. Os homens, não importa de que geração, estão sempre bronzeados, deixam uns três botões da camisa abertos e saem à noite com chinelos de grife. Percebe-se sem esforço a mãozinha da medicina estética estampada em faces e corpos.

“Aqui o top é ficar no Segafredo”, disse Beto Biscaia, guiando-nos para uma mesa com ombrelone. O ambiente da franquia italiana de café era simplório. “Segredo de bar e restaurante é ver e ser visto”, ele disse. “Aqui é o melhor lugar. É igual a balada: tudo depende de quem você põe na mesa de quem.”

Estava acompanhado do sócio, o paulista Marcelo Goulart, e de mais duas meninas, jovens e bonitas, que estudavam inglês na cidade. Uma delas contou que o desafio era não cair na noitada diariamente. Entre os brasileiros, a agenda social é bem definida. Segunda é dia de folga; terça, de balada no Favela Chic; quarta é no Bâoli, na festa “My Boyfriend is Out of Town”; quinta no Bagatelle; sexta na Myntlouge; e nos fins de semana há oferta variada, mas o brunch do Seaspice seguido de dança é disputado. Os atuais restaurantes da moda são o oriental Zuma, o asiático Juvia e o italiano Casa Tua. Todas as vezes em que os visitei, estavam coalhados de conterrâneos.

Biscaia se estabeleceu em Miami há quinze anos. Há pouco tempo, ampliou os negócios de promoção de festas e baladas montando a Concept ID, uma empresa que oferece um amplo pacote de facilidades focado para brasileiros de passagem ou residentes. Há um pouco de tudo: de indicações de imóveis a reservas em restaurantes. “É uma espécie de concierge high end”, explicou. Por uma anuidade que varia entre 5 mil e 20 mil dólares, o cliente tem o apartamento faxinado, a geladeira abastecida antes de sua chegada, garantia de reservas de restaurantes e boates. E mais: o serviço inclui o que chamou de “vender experiências”. Dar o que o cara não pode comprar – ir à casa do Emerson Fittipaldi, por exemplo, e dirigir com ele. Ou descolar uma pool party no recém-inaugurado The One, em South Beach. “O tipo de balada que todo mundo da cidade vai ficar sabendo, mas só poucos vão poder entrar.” Quase 100 brasileiros já assinavam o serviço.

Na nossa mesa, sentou-se Elo, uma celebridade inglesa conhecida só por esse nome, dono do London Motor Museum – que reúne carros raros de todos os tipos e épocas. Negro, rastafári, vestido com um moletom com capuz, ele conversava animadamente com um sujeito que havia inventado um joystick para comandar um carrinho de golfe. Biscaia cochichou: “Esse é o cara que tem grana, mas não parece. É o cara. Top. Supercool”, disse.

Perguntei se os brasileiros de Miami eram cool. “Depende”, disse. Para ele, discrição não era a palavra exata para definir o morador de Miami nem a maioria dos turistas. “Quem é cool não quer ser o Rei do Camarote.” Além disso, o brasileiro mantém alguns vícios, como tentar entrar sem pagar, molhando a mão do porteiro ou por se julgar vip. “Mas com o tempo ele vê que isso não rola aqui.” Uma nova moda entre os brasileiros, ele contou, é curar a ressaca com injeções de plasma, conhecidas como Recovery. E me forneceu o contato do dono do negócio, um ex-empresário da noite recém-liberado da prisão, onde cumpriu pena por assassinato.

Às oito e meia da manhã, na casa de Myrna Monteiro de Carvalho Domit, em Miami Beach, o movimento de crianças e empregados era intenso. A jornalista e herdeira do Grupo Monteiro Aranha ocupa uma ampla casa com os dois filhos e o marido, o libanês Souheil Salloum – dono de uma fábrica de cabos de aço –, que também já viveu no Brasil. O casal, que poderia morar em qualquer lugar do mundo, estava satisfeito com Miami pela tranquilidade e facilidade do cotidiano.

Sentado na varanda, que dá para um píer onde um barco está ancorado, Salloum discorria sobre os brasileiros na cidade. “Só andam em tribo, como no Brasil. Saem, viajam, almoçam juntos. Não se interessam em se integrar à sociedade americana, não têm amigos americanos. São habitués dos mesmos lugares, querem que o garçom os reconheça”, disse.

Além de frequentarem as mesmas baladas, quando vão à praia os conterrâneos também se concentram num mesmo trecho de areia, na altura da rua 3, em Miami Beach. Ali, jogam frescobol e futevôlei, bebem cerveja gelada. É um dos poucos lugares em que se veem homens de sunga e não de bermuda de tactel até o joelho.

A experiência de ir à praia em Miami é como estar num resort particular – o que agrada a maioria dos brasileiros em busca de mordomia. “A areia é de rico, não gruda no pé”, me disse uma vez, em tom de troça, o empresário carioca Paulo Marinho, proprietário de um apartamento de mil metros quadrados em Fisher Island, aonde só se chega de balsa ou lancha. Nos longos trechos de areia branca, não há vendedores, pedintes, camelôs ou cachorros. “Mas VIP não vai à praia. Sai de barco, ancora em algum lugar e fica por lá”, esclareceu Marinho.

Entre os brasileiros a tendência é contratar os serviços de umbeach butler, um mordomo de praia. No verão passado, entraram para os anais de Sunny Isles as férias do lobista Milton Lyra, ligado ao PMDB. Uma enorme barraca branca foi montada na areia, serviu-se à farta caviar, foie gras e champanhe. Do mar, Lyra chamava o mordomo Juan, que, com água até o peito e equilibrando uma bandeja, aplacava a sede do anfitrião com champanhe em copos de plástico.

“Há um certo provincianismo”, continuou Souheil Salloum. Ele acredita que em Miami a elite brasileira se livra das amarras que a prendem no Brasil: lá eles ostentam, gastam, esbanjam sem pudor. Outro traço paroquial é cultivar a rivalidade Rio e São Paulo. Ouvi de alguns paulistas que os cariocas exageravam na informalidade. “O cara vai para o Zuma com a camisa do Flamengo e havaianas. Não dá, né?”, me disse uma moça. Para os cariocas, o paulistano de Miami é risível: toma banho ou se maquia antes de ir à praia.

A vizinhança, mais do que as facilidades do empreendimento, é decisiva para a compra de imóveis. “As tribos vão se seguindo. Onde o Victor Malzoni comprou? Aí, vai um pessoal atrás. Onde o fulano comprou? Aí, vai outro. A classe média-alta segue a alta, a média segue a média-alta, a baixa segue a média-baixa, e assim Miami vai se povoando de brasileiros”, explicou o libanês.

Salloum mora na cidade há 24 anos, ao longo dos quais acabou por criar uma teoria própria a respeito da atração dos brasileiros pelo local. “Aqui tem o que paulista adora: shopping. E o que carioca adora: praia. Eles falam de segurança, facilidades, mas isso tem em qualquer país desenvolvido. A diferença é que aqui você não precisa falar inglês”, disse. Como se contasse um segredo, emendou: “E você sabe que a elite brasileira não fala inglês.”

Myrna trouxe café e o assunto se encaminhou para os protestos contra o governo de Dilma Rousseff. “O Lula vai voltar, claro. A elite ganhou muito dinheiro com ele”, comentou Salloum. Ao contrário da maioria de seus amigos, ele tem uma visão particular dos protestos. “Quando o Lula estava no poder, a China bombando, a economia bombando, exportando commodities a valer, ninguém reclamava. Agora, a economia dá uma freada e tudo vira só roubalheira”, concluiu. “O mais louco desse país é eleger a Dilma no meio de um escândalo desses. O Brasil não tem jeito, não.”

Dois dias depois do encontro com Beto Biscaia na Lincoln Road, ele me chamou para conhecer a noite. Como era quinta, a melhor balada era a do Bagatelle, onde um grupo de italianos o esperava. Do lado de fora, parecia um restaurante normal, mas quando a porta se abriu me senti numa das festas loucas de Jep Gambardella, o jornalista com a melhor vida do mundo, retratado no filme A Grande Beleza. Mulheres loiras e magras com microvestidos e salto agulha dançavam em cima dos sofás. Homens de blazer e pele tostada sacolejavam os corpos em meio a garçons que transitavam com bandejas de champanhe, relativamente estáveis graças aos braços esticados até o teto. A faixa etária ia dos 18 aos 70 anos, a música era bate-estaca, altíssima. Os clientes gritavam “uhuuu”, assobiavam com dois dedos na boca, outros dançavam em grupos, aos pulos. Empoleirada num sofá, uma morena levantava a saia, deixando a calcinha preta à mostra. Ainda em pé na porta, Biscaia virou-se para mim, deu um sorriso e disse: “Bem-vinda a Miami.”

Sentamos à mesa do designer italiano Antonello Radi, cuja família produz há séculos o papel das Bíblias do Vaticano. Os sete convivas comiam, balançavam os ombros sentados na cadeira, ordenavam o vai e vem de garrafas de champanhe e vinho branco datilografando o ar em direção ao garçom. Ao meu lado, um sujeito de topete se abaixou e, com a cabeça sob a mesa, fungou algo de um cilindro azul, ergueu a coluna num estalo e saiu dançando na pista. Era um êxtase coletivo no qual cada um tinha sua própria agenda: ninguém conversava com ninguém, dançava-se sozinho, ninguém se beijava.

Um brasileiro comentou: “Paulista vem aqui, vê isso e faz igualzinho lá”, disse. De fato, num restaurante homônimo nos Jardins, eu já havia presenciado a mesma cena, com um pouco mais de comedimento: loiras em pé no sofá, champanhe sorvida no gargalo, a arvorezinha nos copinhos de tequila, um foguinho emanando do espumante, os gritinhos de “uhuuu”.

De lá, fomos a mais duas boates. Em cada uma delas meu cicerone cumprimentava o leão de chácara pelo nome, colocava todo mundo para dentro e providenciava bebida de graça. Ele próprio não bebia, pouco dançava, sempre de olho no celular. A maratona, Biscaia me disse depois, só foi acabar às cinco da manhã. No dia seguinte começaria tudo de novo.

Até meados do século XIX, a Flórida esteve sob o domínio espanhol. Era uma extensa área agrícola, na qual escravos plantavam limão, cana-de-açúcar e soja. Miami foi a única grande cidade americana fundada por uma mulher – a fazendeira Julia Tuttle convenceu um magnata das ferrovias a construir uma estrada de ferro que cruzasse suas terras, e esse foi o pontapé inicial para o desenvolvimento local. Pântanos foram drenados, canais aterrados, vieram bancos, empreendimentos imobiliários, o comércio em geral.

Ainda no começo do século XX, Miami já dava sinais de sua vocação turística. Antes que existisse o conceito de resort de luxo, o empresário Henry M. Flagler ergueu o suntuoso Royal Palm Hotel, que atraiu famílias milionárias como os Rockefeller, os Carnegie e os Vanderbilt. Em pouco tempo a cidade tinha arranha-céus, centros comerciais, joias arquitetônicas de inspiração mediterrânea e mansões que mais pareciam palácios, como a Villa Vizcaya – hoje um museu e cenário de locação de filmes.

A Grande Depressão e um furacão demolidor afastaram os turistas, mas a Segunda Guerra Mundial trouxe de volta o movimento de centenas de soldados instalados nas bases de treinamento à beira-mar. Ao fim do conflito, muitos veteranos resolveram se estabelecer por lá. Houve uma explosão no consumo e no turismo, e uma grande expansão do subúrbio. Mas foi a partir de 1959 – quando Fidel Castro tomou o governo cubano – que Miami começou a mudar de cara. A apenas 170 quilômetros da Flórida, Cuba povoou Miami. Só nos primeiros quinze anos do governo castrista, estima-se que 500 mil cubanos tenham se mudado para a cidade. A lei do solo, que diz que o cubano que conseguir pisar em terra firme americana se torna americano, era o maior atrativo para os refugiados. Até hoje os cubanos representam quase metade da população local.

No começo dos anos 80, Miami, como muitas outras cidades americanas, passou a sofrer com a violência e a alta taxa de criminalidade. Tornou-se um destino de muambeiros, traficantes, aposentados de classe baixa e refugiados. A taxa de homicídios triplicada fez dela a cidade mais violenta dos Estados Unidos. Hotéis faliram, a violência descontrolada levou os turistas a migrar para a Disney e o Caribe. Nessa época, a revista Timepublicou uma reportagem de capa sobre Miami sob o título “Paraíso Perdido”.

O principal problema era o tráfico de entorpecentes. No documentário Cocaine Cowboys, lançado em 2006, o diretor Billy Corben mostra como a cidade se tornou a capital da droga no país e o tráfico deixou marcas profundas na sociedade. Embora seja relevante o papel dos imigrantes na distribuição das drogas, fica evidente que os principais atores da calamidade eram os empresários locais. Para se ter uma ideia, naquela época só o cartel de Medellín movimentava 20 bilhões de dólares por ano em Miami.

A droga vinha das Bahamas em lanchas voadeiras que aportavam tranquilamente em Key Biscayne ou Coral Gables. Miami era o ponto de partida e de chegada do pó, além de uma grande lavanderia de dinheiro. Os bancos na Flórida tinham mais grana do que qualquer outro lugar nos Estados Unidos. A farra da cocaína coincidiu com o boom imobiliário: construções art déco dilapidadas eram reformadas, ruas abandonadas eram reconstruídas. O documentário mostra como os espigões, condomínios e torres de escritórios da avenida Brickell, por exemplo, foram erguidos graças à lavagem de dinheiro. Miami era uma Casablanca subtropical, uma Detroit com praia. Não foi à toa que a emissora NBC lançou o seriado Miami Vice. A cidade era o epítome do crime, da polícia corrupta, da população desenganada.

No começo dos anos 90, Miami começou a chamar a atenção dos brasileiros. Até então era o destino dos imigrantes ilegais que vinham em massa de Governador Valadares e chegavam em bandos pouco escolarizados. Também era local de baldeação para os turistas cujo destino era a Disney. Foi durante o governo Fernando Collor de Mello que o balneário ganhou ares, digamos, glamorosos, com a turma da Casa da Dinda torrando dinheiro em festas e compras.

Nesse momento, fugindo da violência no Brasil, a carioca Claudia Dunin se mudou para Key Biscayne com seu então marido, um próspero empresário do ramo imobiliário. “Ainda assim, Miami era melhor do que o Brasil. O AbílioDiniz tinha sido sequestrado, meu irmão tinha sofrido um assalto, não dava mais”, lembrou. A cidade era um balneário latino, cafona e muito acanhado, “uma espécie de São José dos Campos”, ela disse durante um almoço no Design District, o bairro das galerias de arte. “Não havia restaurante, era um saco, era uma coisa cubana, mas meu marido gostava porque era tranquila e tinha praia.”

Então as agências de modelos, fotógrafos e celebridades descobriram aquela paisagem que, com a fama de gozar da “luz natural mais pura do mundo”, se tornou o cenário preferido de campanhas publicitárias e ensaios de moda. E os gays e seu pink money foram fundamentais para a reinvenção da cidade. “Virou uma festa. Você ia a um restaurante, sentava do lado do Gianni Versace. Ia a uma boate e cruzava com a Madonna, o Sylvester Stallone, o Mickey Rourke. Era festa todo dia, muita loucura, muita droga, muito excesso. A São José dos Campos estava ficando cool”, ela disse, dando uma gargalhada.

No início dos anos 2000, o problema da violência ainda era grave – assalto a turistas, assassinato de civis pela polícia, insegurança nas ruas. Armou-se uma estratégia nacional de recuperação das políticas de tolerância zero e de investigação policial de primeira linha. “Quando começou a melhorar, o povão descobriu Miami e virou carne de vaca”, disse a carioca.

Miami sempre acompanhou os altos e baixos das economias latino-americanas. Peso desvalorizado? Uma onda de argentinos. Fujimori no poder?Uma leva de peruanos. Foi assim com os venezuelanos e Hugo Chávez, com os equatorianos e Rafael Correa, com os colombianos fugindo das Farcs. “Agora estão dizendo que é a onda Dilma”, ela comentou, com sarcasmo. Quando a presidente foi reeleita, Claudia Dunin mandou mensagens de pêsames para os amigos e familiares no Brasil.

Responsável pela página “Brasileiros na Flórida” no Facebook, que tem 13 mil seguidores, o paulistano Bruno Contipelli foi um dos organizadores do protesto em Miami. Aos 52 anos, ele tem pele de ruivo, cabelo esbranquiçado e um tom de voz efusivo. Desembarcou na cidade há dezesseis anos, depois de ter “quebrado duas vezes no Brasil”. A família era dona de três cantinas italianas no Bexiga e ele tinha uma empresa de informática. Vendeu o carro, juntou 5 mil dólares e chegou com visto de turista, sem falar inglês. Lavou prato, foi ajudante de cozinha, cozinheiro, fez frete. Hoje revende carros usados e faz bicos de motorista no serviço de táxi privado Uber. Casou-se por conveniência e conseguiu documentos americanos. No ano passado recebeu o green card.

Na rua Flagler, no Centro de Miami, não havia movimento algum. Como era sábado, com as lojas e escritórios fechados, avistavam-se apenas mendigos, prostitutas e drogados. Contipelli se disse preocupado com os rumos do país. No caso, falava do Brasil. Uma fração de brasileiros estaria sendo influenciada pela propaganda governista, sobretudo contra quem foi ganhar a vida em Miami. “Falam que aqui só tem coxinha, que é elite. Quem está aqui é porque ralou muito e por isso mesmo não suporta ver essa sacanagem toda no Brasil”, disse. Ele sacou o celular do bolso e mostrou a foto do sujeito com o cartaz que fazia menção a lavar privada. “Aqui uma senhora faz duas faxinas por dia e fatura 300 dólares. Esse idiota ganha isso em um mês? Duvido”, disse.

No centro do problema estariam as relações do governo brasileiro com países como Cuba e Venezuela. “O PT faz obra em Cuba, pelo amor de Deus!”, disse, com revolta. “Tem governo de esquerda, eles põem dinheiro e os brasileiros pagando. Isso é um escândalo.” Com uma filha adolescente vivendo no Brasil, ele se disse estarrecido com a “doutrinação” que estaria acontecendo nas escolas. “Professor de história e geografia é tudo de esquerda. Ensinam que Cuba é o máximo, que é o paraíso. Aqui você aprende sobre a verdadeira Cuba”, falou.

Vidrado nas redes sociais e na internet, ele contou que lia com lupa as notícias sobre o país. “Para aprovar a ‘lei dos transgênicos’, o doutor José Dirceu embolsou muito dinheiro da Monsanto”, disse. Pedi que explicasse melhor. O governo não aprovava nada, ele disse, “se não tivesse uma contrapartida em dinheiro”. E arrematou, sem mais: “E o José Dirceu era o ministro da Casa Civil.” Semanas depois, eu o contatei para dizer que não havia achado nada sobre o caso na internet, só rumores. Ele me respondeu por torpedo: “Esse pessoal não deixa rastros.” A seguir, disse que o resultado era que mais de 90% da soja plantada no Brasil hoje era transgênica, o que teria beneficiado a Monsanto. “Se não rolou muita grana nisso, eu corto meu saco”, escreveu.

Nos últimos cinco anos, os brasileiros lideraram a aquisição de imóveis de mais de 1 milhão de reais em Miami, bem como os da faixa entre 300 mil e 500 mil dólares – preço do apartamento comprado pelo ex-ministro Joaquim Barbosa, do Supremo Tribunal Federal.

O estouro da bolha imobiliária de 2008 fez os preços dos imóveis despencarem em média 40%, e os brasileiros fizeram a festa. “O lulismo foi a época de ouro de Miami. O dólar a 1 real e oitenta, a perspectiva da riqueza do pré-sal, Brasil na capa da Economist, todo mundo se achando rico”, comentou a carioca Claudia Dunin. Um levantamento da Miami Association of Realtors revelou que quase 80% dos brasileiros pagam o imóvel à vista. Em Miami, os negócios são bem diferentes do resto dos Estados Unidos. Enquanto 70% dos americanos financiam suas casas, apenas 20% das transações imobiliárias na Flórida envolvem hipotecas. A disponibilidade de negociar em cash sempre levanta rumores. Nos Estados Unidos, os bancos são obrigados a denunciar ao Tesouro se desconfiam de atividades econômicas suspeitas, como transferências de dinheiro. A regra não serve para corretores de imóveis, vendedores de jatinhos ou iates de luxo.

No estrato de imóveis de luxo, a presença de latinos, sobretudo brasileiros, mexeu com a cabeça dos arquitetos e produziu “uma jabuticaba” nas novas edificações: apartamentos com quarto de empregada. Eles são diferentes do que nos Estados Unidos se conhece por DEN: um cômodo sem suíte ou janelas usado como depósito. O quarto de empregada, que costuma abrigar a caixa de luz de todo o apartamento e tampouco recebe luz natural, tem banheiro contíguo.

Em uma tarde, visitei uma unidade no 4º andar do Oceana Key Biscayne, com 379 metros quadrados, no valor de 6,7 milhões de dólares (a do 9º andar custava 8,6 milhões). O prédio é como um resort, com varandas de frente para o mar, piscinas, restaurantes, academias de ginástica. “Você mora aqui e não precisa sair daqui”, disse o carioca Marcelo Agostini, sócio da imobiliária AG Real Estate Advisors. Outro requisito dos brasileiros é privacidade. Ainda há um estranhamento com a cozinha americana. “Brasileiro frita bife e não gosta de empregada ouvindo a conversa”, afirmou Agostini. Garagem também é uma necessidade. “Aqui, os ricos brasileiros podem ter carros incríveis a preços acessíveis, então dispor de várias vagas é uma pré-condição.” Há edifícios com serviços de mordomo para desfazer a mala, passeador de cachorro, concierge para reservas em restaurantes – tudo incluído no condomínio, cuja taxa mensal gira em torno de 10 mil dólares. E o que mais distingue o comprador brasileiro? “Ele pechincha”, disse.

“Eu morria de preconceito. Achava Miami coisa de sacoleiro, brasileirada de outlet. Eu tinha casa em Paris – e posso falar porque tudo meu é declarado. Vendi naavenue Montaigne e comprei aqui. Miami é hoje a melhor cidade do Brasil”, disse o empresário e ex-deputado Ricardo Rique, ao volante de seu Bentley com estofado em couro e painel de madeira. Ele acelerou e foi repreendido pelas passageiras. “Mas de que adianta ter um Bentley e não poder correr? Então pelo menos vamos baixar a capota. Para que eu tenho carro conversível?” Dois toques no painel e a capota se abriu. “Estamos em Miami! Aqui eu posso, porra!”, falou rindo, com os cabelos já ao vento. Essa é uma das frases mais ouvidas em Miami: “Aqui eu posso.” Era o maior atrativo da cidade: mostrar a joia, o carro, o apartamento, o vinho – todos os sinais de pretenso status social. Quis saber qual carro ele usa no Rio, onde mora. “Tudo blindado. Eu, com um desses lá, já estava com um revólver apontado na minha cabeça.”

Neófito de Miami, Rique é um incansável desbravador de restaurantes, festas e boates, nos quais se encontra sempre com amigos brasileiros. “Isso aqui é uma comunidade mesmo. Em vez de estar no Rio, estamos aqui, onde é tudo mais limpo, bonito e organizado”, disse. Ao chegar, contratou os serviços de concierge de Beto Biscaia. “Ele coloca na sua mesa as mulheres mais lindas de Miami. De qualquer nacionalidade. Ele conhece todo mundo, é craque”, explicou Rique, desvendando particularidades dos serviços oferecidos pelo promoter que me eram desconhecidas. “E tem uma participação já combinada com a boate, ganha um tanto de tudo que for consumido na mesa que ele providenciou.”

ABrazilFoundation é uma organização sem fins lucrativos que promove ações e investe em projetos sociais no Brasil. Mas também é onde se encontra a elite brasileira em Miami. Em janeiro, seu Baile de Gala arrecadou 525 mil dólares em doações. Uma das diretoras da entidade é a pernambucana Maria Carolina Tavares de Mello, que lembra a modelo Fernanda Tavares, mas em versão miniatura. “A elite brasileira não tem o hábito da filantropia, como os americanos”, disse num início de noite de março. “Tentamos implantar essa mentalidade aqui.”

Estávamos no coquetel da BrazilFoundation, no pátio de um centro comercial de luxo no Design District. Uma banda tocava ritmos latinos, havia um bar com vinhos branco e tinto, garçons circulavam com bandejas de microporções de comida salgada. O figurino do público, basicamente feminino, era homogêneo: vestidos justos, curtos, salto alto, cabelo liso, clutches numa mão e tacinha de vinho na outra. Poderia ser um evento no átrio do Shopping JK, em São Paulo. “Quando você mora aqui, fica ainda mais revoltado toda vez que volta ao Brasil”, disse Carolina Mello. “Aqui é melhor para todas as classes sociais”, falou. Ela contou que tinha uma empregada, casada com um cubano, que relatava o inferno na ilha de Fidel. “Ele levava mala de comida, eles não tomam café da manhã, fazem apenas uma refeição por dia. Os cunhados são formados em engenharia e ele tem que providenciar até papel higiênico”, contou. A ojeriza ao governo do PT veio logo à tona. “A amizade que a Dilma tem com Fidel, o dinheiro que põem lá, tudo isso é inadmissível”, afirmou.

Aproximou-se do grupo a vice-presidente de um banco francês, a brasileira Vivian Giuliani. “Vejo o país caminhando para se tornar uma Venezuela. Não temos esperança de mudança”, comentou. O mercado ainda estaria inseguro, mesmo depois da nomeação de Joaquim Levy para a Fazenda. Recentemente, ela assistiu a uma palestra do ministro para investidores em Nova York. “Ele ficou elogiando e fazendo propaganda do governo. A plateia esperava alguma coisa diferente, uma autocrítica, foi meio decepcionante.”

Maria Carolina Mello subiu ao palco e fez um discurso de agradecimento, em inglês, aos patrocinadores e convidados. Ao meu lado, o maquiador César Ferrete estava absorto numa ligação que parecia interminável. Vestido com calça de couro e blazer, ele é responsável pelo visual de celebridades brasileiras de passagem por Miami, como Juliana Paes, Adriane Galisteu e Wanessa Camargo. Há dois anos, largou um emprego de maquiador da Lancôme no Rio Grande do Norte e se aventurou na Flórida.

Quando desligou, ele deu uma ligeira bufada. “Brasileiro é dose.” Tinha acabado de falar com uma cliente sua no Brasil, uma noiva que se casaria em Miami dali a algumas semanas. “Sabe que agora Miami virou wedding destination, né?”, disse. Os noivos arcariam com todas as despesas dos convidados – avião fretado, hotel e, naturalmente, a festa. “E ela me liga para dizer que meu preço está caro, pode?”

Em outra rodinha, reinava a corretora de imóveis Rejane de Paula. Alta, magra, vestindo um Missoni colorido, a mineira está há dez anos em Miami e integra um time de centenas de patrícios que trabalham no mercado imobiliário. Ela, no entanto, se destaca de seus pares. No ano passado, vendeu, sozinha, 110 milhões de dólares. Um cálculo rápido, considerando a comissão em torno dos 4%, resulta num faturamento de 4,4 milhões de dólares. Metade de seus clientes era composta de brasileiros. “Essa coisa de brasileiro invadindo Miami acabou. Com o dólar do jeito que está, quem comprou, comprou”, disse.

Segundo a corretora, “atualmente quem está de fato comprando ou se mudando é quem já está dolarizado há muito tempo, quem fez esse câmbio lá atrás e ganhou dinheiro. Não é a classe média que comprou o apartamento de 300 mil, fundos”, pontificou. Ela disse que a desvalorização do real complicou a vida da classe média que se esbaldou quando o dólar estava baixo. E agora, como arcar com os custos de condomínio e IPTU, que em Miami recaem sobre o proprietário, não sobre o inquilino? Uma nova fase de negócios estaria começando a desabrochar no horizonte de brasileiros incautos: a revenda dos apartamentos. “Uma coisa é você comprar com o câmbio bom, outra é pagar 5 mil dólares de condomínio com câmbio ruim.”

No coquetel, ela distribuía conselhos imobiliários aos presentes – como a hora certa de comprar e de vender. Os dolarizados também estavam em outro momento: passaram a investir em prédios, galpões, terrenos. O retorno era de 7%. Foi o caso, por exemplo, da família Géo, dona da construtora AGR, de Belo Horizonte, que arrematou um prédio comercial inteiro na avenida Brickell por 140 milhões de dólares. “Esse é o negócio que o brasileiro está fazendo agora em Miami. O resto é peanuts”, disse Rejane. Alguém comentou como era possível ter tanto brasileiro por lá com dinheiro vivo. Ela brincou: “Eu também não sei. Esse pessoal fala de 300 milhões como se fossem 10 reais! É incrível!”

Naquele dia, ela havia mostrado ao paulistano Marcelo – que estava no coquetel e não quis dar o sobrenome – duas casas, uma delas avaliada em 6 milhões de dólares. “Eu quero tudo que não tenho mais em São Paulo: água, casa sem portão e trânsito livre”, ele me disse. Em sua avaliação, o Brasil ficou inviável. Contou ter sido assaltadodentro do laboratório Fleury, às dez da manhã. “Aí, esse pessoal fica falando de taxar fortunas para resolver o país. O que resolve é não desviar 2 bilhões da Petrobras”, disse.

Ele se afastou para buscar bebida e quando voltou prosseguiu seu argumento: “Olha esse Haddad dando bolsa-travesti. Isso é só para competir com a Marta, porque os gays votam nela”, comentou. Ele se referia ao projeto Transcidadania, da Prefeitura de São Paulo, que, em troca de frequência às aulas, daria 840 reais a 100 travestis e transexuais. Nas próximas eleições, Fernando Haddad deve disputar a reeleição contra a senadora Marta Suplicy, que deixou o PT.

Oescritório de advocacia Kravitz & Guerra ocupa meio andar de um prédio de luxo. É ali que muitos brasileiros se aconselham e contratam os serviços de consultoria imigratória da advogada Genilde Guerra – uma loira magra e alta, olhos azul-piscina, cintura de Barbie, Rolex de ouro no pulso e anéis de brilhantes nos dedos.

Radicada na cidade há trinta anos, formou-se em direito pela Universidade de Miami e é diplomada por Oxford, na Inglaterra. Socialite local, é amiga do rei Albert, de Mônaco, de xeques árabes e políticos americanos. Mais da metade de sua clientela é de brasileiros, que chegam a pagar 25 mil dólares por um visto de residência no país.

Em uma manhã de março, ela falava sobre a procura por vistos de residência – há mais de quarenta tipos nos Estados Unidos. “Conseguir um visto é fácil, o difícil é saber qual é o certo para cada pessoa”, disse. No ano passado, 47 brasileiros entraram com pedido do visto EB-5, que exige do postulante um investimento de 500 mil dólares em um projeto pré-aprovado nos Estados Unidos e que ele dê trabalho a, no mínimo, dez pessoas. “É o visto da classe média-alta”, comentou. “Rico mesmo não quer esse, porque tem muito imposto. Rico sonha com o E-2, que é de investidor, mas não é aplicável a brasileiros. Esse tem um excelente planejamento tributário.”

Executivos que tocavam alguma subsidiária de empresa brasileira no país preferiam o L-1, enquanto o O-1era ideal para chefs de cozinha. Já o F-1, de estudante, era usado indiscriminadamente. “Não tem que pagar imposto nem declarar imposto de renda”, comentou Genilde. O ex-presidente da Confederação Brasileira de Futebol, Ricardo Teixeira, passou anos com o visto de estudante da mulher. “O que mais tem é isso. Gente que fica vinte anos matriculada numa escola”, disse.

Para a advogada, como Miami carecia de trabalho braçal e especializado, valiam ouro “qualquer mecânico, enfermeiro”. Na burocracia da imigração, porém, os mais prejudicados eram sempre os brasileiros de baixo poder aquisitivo. A travessia da fronteira pelas mãos dos coiotes, como são conhecidos aqueles que transportam ilegalmente os imigrantes, ainda era recorrente, além de perigosa. O casamento arranjado, frequente, raspava as economias dos imigrantes – a tarifa atual oscila entre 15 mil e 30 mil reais.

A lei de imigração apresentada pelo governo de Barack Obama tampouco dava sinais de facilitar o processo. Pela proposta, imigrantes com filhos nascidos no país poderiam solicitar o visto permanente, mas o Congresso a vetou. “Obama quis jogar para a plateia. Essa lei nunca vai passar porque ela é, de fato, cheia de ilegalidades”, comentou a advogada.

Distante uma hora de Miami, Pompano Beach é a cidade da Flórida com a maior concentração de brasileiros, que somam quase 30% da população. Letreiros de padarias, farmácias e mercados são escritos em português, as lojas vendem pão de queijo, guaraná, picanha, feijão preto, farinha de mandioca e até balinha 7 Belo. Ali estão os imigrantes considerados de classe média-baixa. São os operários da construção civil, as faxineiras, os pintores de parede, as manicures, os motoristas, que se deslocam diariamente para trabalhar na outra Miami.

Na Flórida, as comunidades latinas, muito organizadas, costumam ter representação política, voz ativa e conexão direta com seus pares. Nos últimos anos, a despeito da forte presença de imigrantes, apenas um brasileiro tentou se candidatar a vereador – sem sucesso. O Itamaraty, com as finanças pela hora da morte, ameaça de greve e uma nonchalance que lhe é peculiar, nunca conseguiu representar os brasileiros no exterior. O último grande evento organizado pelo consulado foi uma exposição da artista plástica Beatriz Milhazes. O pessoal do museu PAMM adorou, mas a turma de Pompano nem tomou conhecimento. Por essas e outras, a organização da comunidade caiu nas mãos das igrejas pentecostais, que ajudam com alimentação, moradia e emprego. Em Miami, estima-se que haja mais de 170 delas. Nos Estados Unidos, são 1 600.

Num domingo, cerca de 1 500 brasileiros aguardavam o início do culto na Primeira Igreja Batista Brasileira do Sul da Flórida, conhecida pela abreviação de PIB Flórida. Em seu comando está o pastor Silair Almeida, um baiano de cabelo domado a gel, vestido informalmente com jeans e camisa social. Fundada em 1994, a igreja ocupa um quarteirão inteiro. São três prédios, um estacionamento amplo e um auditório com moderno sistema de som e telões de LED.

Às nove da manhã, o pastor comandava um batismo coletivo de jovens e adultos. Durante uma hora e meia, dezenove pessoas passaram pelo ritual. Nos jardins da igreja, grupos de homens e mulheres bem-vestidos, de idade variada, conversavam em português. O inglêssó era ouvido entre adolescentes, a segunda geração de imigrantes, cuja maioria nunca visitou o país dos pais.

Às dez e meia, o pastor iniciou o culto. Em vez de uma cantilena infinita, ele prefere um culto rápido, durante o qual costuma falar de política, entre outros assuntos. Como todos os pentecostais, estimula e recolhe o dízimo dos fiéis. Mostrou imagens de um orfanato que voluntários construíam no Haiti, falou sobre inveja e propôs um desafio ao rebanho: um jejum de 21 dias sem mentir ou reclamar. Depois falou sobre a situação no Brasil. “Há muitos políticos comprometidos com Deus, que estão fazendo um trabalho extraordinário no país. Nem todo político é ladrão. Prestem atenção nas pessoas que falam de Deus no Brasil”, afirmou. Na entrada do auditório, foi montado um bufê a quilo que servia feijoada. Ao final do culto, os fiéis, depois de enfrentarem a fila para pesar os pratos, acomodavam-se nas mesas em grupos animados. “É o melhor programa para a comunidade daqui”, disse-me a manicure Maria Soares, que almoçava com a família.

O pastor me chamou para um tour. No estacionamento, mostrou mais de vinte carros usados. “São doações dos nossos fiéis para os novatos”, explicou. “As pessoas chegam sem nada, precisam de um carro, vêm aqui na igreja e pegam. E ficam usando o quanto for preciso, até terem dinheiro para comprar um.” Também encontram roupa, atendimento psicológico, cabelereiro, dentista e médico.

Mais adiante, ele apontou para uma sala fechada. “Esse aqui é nosso supermercado, onde a moeda corrente é o solidário”, disse. Quando os imigrantes ilegais apareciam, costumavam receber cestas básicas da igreja. “Mas era muito humilhante. A pessoa, que já estava naquela situação ruim, ficava achando que estava ganhando esmola”, comentou. Foi quando lhe ocorreu montar um supermercado com os produtos da cesta básica numa das salas da igreja e dar um “salário” em uma moeda própria, sem exigir nada em troca. “Então, o cara chega com x solidário se vai ao mercadinho fazer sua compra. É mais digno.”

Em sua sala de madeira escura, decorada com fotografias e livros, ele definiu seus fiéis como “aquela classe que ficou apertada entre os ricos e os pobres do Bolsa Família”. Uma gente que se sentia desvalorizada, desprotegida e excluída dos planos políticos e sociais do Brasil. “É gente que conhece o que é crise”, disse. Nas semanas anteriores, o pastor havia desencorajado a ida aos protestos. “É muito fácil estar longe e criticar o que acontece no interior de Sergipe. Me poupe. Quer protestar, vote!”

O pastor era o único brasileiro “da Miami pobre” com assento no Centro Cultural Brasil-Estados Unidos, na Flórida. Ele contou que sua entrada foi “um parto”, pois “a elite da cidade não quer saber de Pompano, dos imigrantes, de nada”. Como exemplo da separação entre classes, citou o Baile de Gala da BrazilFoundation, cujo ingresso tinha um preço impraticável. “Por que não fazer algo que incluísse todos os brasileiros? Eles não querem porque acham que aqui é a ralé, mas quem faz e produz na Flórida está aqui, não num restaurante de Miami Beach.”

A impressão reforçava as teses da antropóloga Maxine Margolis, da Universidade da Flórida. Uma das maiores estudiosas da presença brasileira nos Estados Unidos, ela escreveu sobre o preconceito do imigrante brasileiro rico em relação ao pobre. “Ele não quer se misturar e o vê com desprezo”, ela me disse. Em sua avaliação, a dinâmica era tão marcante que o brasileiro nem gostava de se ver incluído no grupo de latinos – para eles, sinônimo de cucarachas pobres, mal-educados e discriminados.

Antes de se despedir, o pastor Silair Almeida insistiu que eu conhecesse o paulista Lúcio Santana, “um caso para mostrar à elite o que é um pobre de Pompano”. Na semana seguinte, num centro comercial de Miami, encontrei-me com Santana, acompanhado de três irmãs suas que estavam de férias.

Há dezesseis anos, Santana largou o emprego de vendedor da Herbalife e desembarcou em Miami, tendo no bolso um visto de turista, o telefone do irmão do cunhado e 1 600 dólares, resultado da venda de um Fusca e de uma moto. Tinha 20 anos. Lavou banheiro, limpou cinemas de madrugada, entregou jornal e pizza, pintou paredes. Durante anos, trabalhou dezoito horas por dia. Depois, passou a comprar celulares e revendê-los, antes de se tornar sócio de uma imobiliária. Com a crise de 2008, perdeu tudo, inclusive a casa em que morava. “Eu ia para o escritório e não sabia o que fazer”, contou. Mesmo com o mercado turbulento, ele voltou a comprar e vender imóveis, com prazos apertados para pagar os empréstimos, arriscando o pescoço no banco. “Não desisti e a economia foi melhorando”, disse. Atualmente, ele é dono de 49 apartamentos espalhados por Miami. “Eu quero ser uma financeira e um banco no futuro”, contou enquanto tomava um suco.

Não votou nas últimas eleições, mas seus amigos e familiares se posicionaram em peso contra o governo Dilma Rousseff. Santana acredita que a meritocracia e as oportunidades nos Estados Unidos permitiram que ele se tornasse um homem rico. Para ele, não havia qualquer perspectiva de melhora no Brasil. “A roubalheira está incontrolável. Votar no Aécio era uma esperança de algo diferente, mas acho que nada vai mudar mesmo.”

Duas semanas depois dos protestos em Miami, encontrei-me com a paulistana Debora Rosenn, que comandou a manifestação pelo megafone. Aos 39 anos, dezesseis em Miami, divorciada e mãe de gêmeos, ela decidiu imigrar depois de sofrer dois assaltos em São Paulo. Foi garçonete, cuidou de cachorros, trabalhou em banco e em hospital. Hoje é autônoma e faz trabalhos eventuais com fotografia.

Estávamos no bar do hotel Delano, em South Beach. Ela pediu um coquetel com martíni e lichia e contou que havia ficado satisfeita com a manifestação. Perguntei o que os havia motivado a se mobilizar contra o governo, uma vez que estavam tão longe e não acalentavam planos de voltar. Ela disse ser “exposta diariamente” aos escândalos brasileiros, pois seus pais e seus irmãos ainda moravam em São Paulo. Sempre que vai ao Brasil, a cada dois anos, se prepara psicologicamente “uma semana antes”. “Já sei que vai sumir mala, que vão poder me assaltar.”

Apesar de não ter um emprego fixo, ela disse levar uma vida confortável de classe média, o que jamais ocorreria no Brasil. “Porque classe média no Brasil é o pobre daqui.” O impeachment, em sua avaliação, serviria de exemplo para outros políticos. Quando comentei que o ex-presidente Fernando Collor, impedido em 1992, era um dos principais articuladores da base governista e estava na lista de investigados da Operação Lava Jato, ela não se fez de rogada: “Para você ver, brasileiro não aprende nada mesmo!”

Antes de nos despedirmos, perguntei se ela realmente acreditava que existia censura no Brasil – como ela havia dito à plateia do protesto. “É claro que sim, mas é algo sutil. É feito com politicagem, manipulação, falta de transparência.” Como exemplo, citou o caso da suposta fraude nas urnas eletrônicas durante a apuração dos votos na última eleição. Eu disse duvidar da tese e ela me olhou com condescendência. “Se a gente soubesse tudo o que esse pessoal é capaz de fazer, seria mais fácil. Mas não sabemos. Eles não têm limites. São ladrões, ladrões.”



04 de novembro de 2015
Daniela Pinheiro

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