quarta-feira, 4 de novembro de 2015

RASTAQUERAS E CHARLATÕES

Brasileiros na vida e na obra de Proust



Os brasileiros eram uns rastaqueras na Paris de Marcel Proust. Não só eles, os latino-americanos todos. 
Com o passar do tempo, a palavra foi empregada em relação aos ibéricos, aos eslavos, aos judeus e a todos os estrangeiros. 
Quem ensina isso é o professor Rubén Gallo, diretor de Estudos Latino-Americanos da Universidade Princeton. Ele nasceu no México, formou-se em Yale, doutorou-se em Columbia e é da diretoria do Museu Freud, em Viena. No ano que vem, lançará o livro .

Gallo esteve no mês passado no Brasil e falou numa palestra na Universidade de São Paulo sobre os rastaqueras. À beira do desuso, a palavra no português oral é sinônima de fuleiro, pouca porcaria, tranqueira. Já no Aurélio e no Houaiss o seu sentido é semelhante ao francês: o indivíduo que chama atenção pelos gastos extravagantes e pela ostentação. O significado não é idêntico nos dois idiomas porque, na Paris da Belle Époque, o rastaquera vinha dos trópicos com maus modos e dinheiro à beça, e o detonava com estrondo.

Rubén Gallo achou um rastaquera brasileiro n’A Prima Bette, romance de Balzac que integra A Comédia Humana. É o barão Henri Montes de Montejanos, um tipo sulfuroso e selvagem como o país de onde veio. Um segundo personagem foi criado por Jacques Offenbach, compositor dos mais populares na França da segunda metade do século XIX. Ele se chama Brasileiro e figura na opereta-bufa A Vida Parisiense. Num rondó, ele canta o que pode ser traduzido assim:

Cheguei do Rio há uma hora

E Paris é toda minha agora!
Já vim aqui duas vezes antes,
Mas trago agora na bagagem
Ouro em penca e diamantes.
Quanto irá durar a sacanagem?
Pois durou umas seis amantes,
Uns duzentos amigos elegantes,
Poucos meses de porres galantes.
Ó Paris só de comerciantes!

O brasileiro novo-rico, que passa por malandro em casa, é um otário depenado inapelavelmente em Paris. 
O rastaquera sabe disso, já que ele mesmo diz: “Vim para que vocês me roubem tudo o que roubei là-bas”, no Brasil.

Tanto A Prima Bette como a primeira versão de A Vida Parisiense foram feitos antes de Proust nascer, em 1871. Mas é possível que ele tenha tido contato com o romance e a opereta, e não apenas porque fizeram sucesso. 
Ainda que não estivesse entre os seus escritores prediletos, Proust certa vez publicou um pastiche hilariante de Balzac. E um dos autores do libreto de A Vida Parisiense era pai de um colega e amigo seu, Daniel Halévy.

A palavra “rastaquera” se firmou no vocabulário francês mais para o final do século, num contexto vivido pelo autor de À Procura do Tempo Perdido. 
Ela passou a designar políticos latino-americanos que foram destronados e, podres de ricos, se exilaram em Paris. É o caso de dois presidentes, o venezuelano Antonio Guzmán Blanco e o mexicano Porfirio Díaz.

Na conferência na usp, Gallo perguntou à plateia se algum político brasileiro poderia caber na galeria. Mas ele sabia muito bem que dom Pedro II, ao ser derrubado pela República, exilou-se na França. Também viveram lá André Rebouças e Joaquim Nabuco, abolicionistas e monarquistas.

Como não era xenófobo, Proust estava alheio ao universo rastaquera e raramente empregava a palavra. 
Francês arraigado, ele não falava outras línguas e foi ao exterior só em curtas temporadas, para visitar Veneza, ir a estações de água alemãs e ver quadros na Bélgica e na Holanda. Mas tinha algo de estrangeiro, de esquerdo: burguês, queria entrar no mundo da aristocracia; judeu, sofreu antissemitismo; homossexual, viveu num meio machista; seu primeiro namorado, e amigo por toda a vida, foi o venezuelano Reynaldo Hahn; pediu à mãe que fizesse traduções literais de John Ruskin para verter o crítico inglês para o francês.

Embora não haja evidências, é plausível que Proust soubesse de dom Pedro II. O imperador, afinal, era um sangue azul de boa cepa, um Habsburgo. 
E também porque o seu genro, o Conde d’Eu, foi um Orléans que viveu o exílio no seu castelo na Normandia, região que o romancista percorria em férias de verão.

Proust pode ter se interessado pelas aventuras francesas de Santos Dumont. O inventor frequentava salões semelhantes aos descritos pelo escritor, que por sua vez era fascinado por novidades tecnológicas como o telefone, os automóveis e sobretudo os aviões. 
Quando seu grande amor, o chofer Alfred Agostinelli, ameaçou abandoná-lo, Proust prometeu comprar-lhe um aeroplano.

Pagou um curso para que ele aprendesse a pilotar. Foi com milhares de francos nas mãos que Agostinelli perdeu o controle do aviãozinho numa das aulas. 
Para horror de quem o via da praia, caiu no Mediterrâneo e se afogou. O chofer serviu de modelo para a Albertine de Tempo Perdido, cujo centenário da publicação do primeiro volume, como lembrou o professor Gallo, se comemora agora, em 14 de novembro.

Há apenas um brasileiro no romance de Proust. Ele é mencionado em O Lado de Guermantes, e sua aparição é tão fugaz que nem nome ele tem. 
É apenas “um médico brasileiro” de sorriso pusilânime e meigo, um “ar de interrogação tímido, interessado e suplicante”. 
Esse médico, a quem o narrador recorre para tratar de sufocamentos asmáticos, lhe receitou “inalações absurdas de essências vegetais”. Não era um rastaquera. Mas levava jeito de charlatão.


04 de novembro de 2015
Mario Sérgio Conti

Nenhum comentário:

Postar um comentário