domingo, 13 de dezembro de 2015

O MAIS ASSUSTADOR É NÃO VER SORRISOS, DIZ MEMBRO DA MSF


Em entrevista ao site de VEJA, Michiel Hofman, especialista em assuntos humanitários da organização Médicos Sem Fronteiras (MSF), fala sobre o trabalho na organização nos cantos mais remotos e hostis do planeta


Michiel Hofman, especialista em assuntos humanitários da ong Médicos Sem Fronteiras (Massoud Hossaini/AP)

Ao longo das últimas duas décadas, o holandês Michiel Hofman, especialista em assuntos humanitários da organização Médicos Sem Fronteiras (MSF), participou de missões da organização nos mais remotos cantos do planeta. No final da década de 90, veio à Amazônia brasileira durante um programa de controle e tratamento da malária com populações indígenas por dois meses. Hofman já esteve cara a cara com o poder de destruição da guerra e com a extrema pobreza, mas uma de suas experiências mais memoráveis foi conviver com a sisudez dos norte-coreanos.

Em outubro, um bombardeio americano destruiu o hospital do MSF em Kunduz, no Afeganistão, deixando ao menos 42 mortos, incluindo 14 profissionais da organização. Hofman está entre os membros da MSF que reivindicam uma investigação independente sobre o incidente - uma petição assinada por mais de 547 mil pessoas foi entregue à Casa Branca, pedindo o consentimento para a investigação.

Em entrevista ao site de VEJA, Hofman explica como a MSF tenta garantir a integridade de seus profissionais em meio ao fogo cruzado de países em guerra e fala sobre os recentes ataques a hospitais da organização, no Afeganistão e no Iêmen.

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A organização Médicos Sem Fronteiras possui instalações em zonas de conflito. Quais são as medidas de segurança tomadas para oferecer segurança e bem-estar aos médicos, funcionários e pacientes nesses hospitais? A única segurança que realmente importa é convencer todas as partes do conflito de que nosso trabalho é importante, para que eles concordem em não nos atacar.

Como isso é feito? Muito raramente um conflito tem só dois lados. Em geral, lidamos com quatro, cinco até sete grupos diferentes, de forças governamentais e exércitos da oposição a pequenas milícias locais. Precisamos encontrar o líder militar de todos os lados e convencê-los de que eles têm interesse na nossa clínica ou hospital, caso contrário nenhuma outra medida de segurança - muro alto, arame farpado, câmeras - faz sentido. Desse modo, eu diria que 90% do trabalho de segurança envolve esses acordos.

O que seriam os outros 10%? Bom senso. Em uma zona de guerra, não é aconselhável sair às ruas depois que escurece ou circular com itens que demonstrem riqueza. Além disso, nós temos de saber onde cada membro da equipe está, e todos são orientados a reportar qualquer deslocamento. Essas medidas não nos protegem da violência da guerra, mas ajudam a evitar roubos e um dos principais crimes que sofremos em áreas de conflito, que é o sequestro. Nossa principal medida de segurança contra isso é a imprevisibilidade, como não manter equipes fixas, por exemplo. Quando somos previsíveis, gangues têm mais facilidade para organizar sequestros.

Onde os médicos e funcionários moram durante o período de trabalho nessas regiões de conflito?Como o médico de emergência está mais suscetível a cometer erros, tentamos criar um ambiente de descanso confortável e seguro fora do ambiente de trabalho, não muito distante do hospital, onde ele possa se desligar de suas funções. Ninguém se beneficiaria de uma equipe médica cansada demais para se concentrar. Mas quando a situação é perigosa, pedimos a nossos funcionários que permaneçam dentro do hospital. Foi o caso de Kunduz, por exemplo. [em outubro, um bombardeio americano destruíu o hospital da MSF em Kunduz, no Afeganistão, deixando 14 funcionários da organização mortos] Duas semanas antes do bombardeio, solicitamos que ninguém deixasse o hospital por questões de segurança.

Uma investigação militar dos Estados Unidos concluiu que o ataque em Kunduz foi causado por falhas humanas, mas a MSF quer uma investigação independente. Por quê? A investigação feita pelos Estados Unidos não nos deu nenhuma resposta. Eles dizem que nós cometemos erros com suas regras de participação, mas não informam quais são essas regras. Quer dizer que nós devemos administrar nossos hospitais de acordo com as regras de participação dos EUA, e não segundo as leis internacionais? Nós tínhamos os acordos fechados de forma explícita com todas as partes do conflito. Por isso nós não estamos satisfeitos.

A MSF também acusou a coalizão liderada pela Arábia Saudita de bombardear um hospital no Iêmen. Qual é a posição da instituição sobre esse incidente? A localização do hospital do Iêmen foi claramente informada ao comando militar dessa coalizão, de acordo com as normas internacionais. Por isso, mais uma vez, nós precisamos saber por que esse hospital, apesar de todos os acordos, foi bombardeado. Mas há uma diferença entre os dois casos. Em Kunduz, o único local atingido pelas bombas foi o hospital do MSF, por isso não temos dúvidas de que o prédio foi alvo direto e deliberado. No Iêmen, o ataque não foi direcionado apenas ao hospital, mas sim a diferentes localizações próximas.

Existem hospitais da MSF na Síria ou no Iraque em áreas próximas ao Estado Islâmico? Neste momento, não existem instalações da MSF na Síria, apenas hospitais sírios administrados pelo Ministério da Saúde do país ou pelas associações de médicos locais que estão sendo auxiliados por nossa organização. No final de 2013, cinco médicos da nossa equipe foram sequestrados pela milícia do Estado Islâmico no norte da Síria.

Nós não fomos capazes de resolver esse problema com o EI, embora as pessoas tenham sido libertadas. E como não havia garantias de que isso não aconteceria de novo, tivemos de fechar os hospitais nas áreas controladas pelo EI. E, assim como não conseguimos negociar um acordo com o Estado Islâmico, também não conseguimos com o governo sírio, que se recusa a dar permissão para a MSF trabalhar nas regiões controladas pelo Estado. A situação no Iraque é bem diferente, pois o Estado Islâmico controla uma parte muito menor do país. Em todas as outras regiões, incluindo as controladas pelo governo, nós temos total permissão para atual.

A MSF é impedida de trabalhar em áreas controladas por outros grupos terroristas? Para nós, a noção do que é ou não um grupo terrorista é completamente irrelevante, pois são sempre grupos armados que controlam territórios. Nós negociamos com todos os grupos armados e com alguns deles conseguimos chegar a um acordo. Auxiliamos hospitais em regiões do Iraque controladas pela Al-Nusra, por exemplo, designada como grupo terrorista por listas internacionais.

Você já esteve em áreas de extrema pobreza e zonas de conflito. Que locais foram mais impactantes? O genocídio em Ruanda, em 1994, foi um período particularmente ruim pelo enorme número de pessoas que morreram e ainda morrem no país. Sentíamos que estávamos nadando contra a maré, porque não importava o que fizéssemos, as pessoas continuavam morrendo ao nosso redor.


A destruição provocada pela guerra também me impressionou em duas regiões: Chechênia, em 2001, e a antiga Iugoslávia, em 1995. Grozny, na Chechênia, estava no mapa, mas, quando chegamos, descobrimos que 90% das construções estavam parcial ou completamente destruídas. Em Vukovar, na ex-Iugoslávia, os prédios mais antigos foram destruídos com pessoas dentro. Foi chocante. Mais recentemente, o nível de destruição na Síria também impressiona. 

Não sobrou quase nada de pé em cidades grandes como Homs e Aleppo, com meio milhão ou um milhão de habitantes. Mas a experiência mais assustadora foi a temporada que passei na Coreia do Norte. Morei duas semanas lá e em momento algum eu não vi uma pessoa sorrir. Mesmo em lugares miseráveis há sempre pessoas contando piadas ou rindo de alguma coisa. 
Estar cercado por milhares de pessoas e, por duas semanas inteiras, não ver ninguém sorrir é uma das coisas mais assustadoras de se viver.

Imagem divulgada pelo 'Médicos Sem Fronteiras' mostra hospital da organização danificado por um incêndio na cidade afegã de Kunduz após ter sido atingido por um ataque aéreo (Foto: Dan Sermand/MSF/Divulgação) 





Atendimento ao Hospital de MSF de Kunduz antes do bombardeio (Foto: Michael Goldfarb/MSF/VEJA) 


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13 de dezembro de 2015
Julia Braun
VEJA

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