Capa do livro 'Inconfissões – Fotobiografia de Ana Cristina Cesar'A arte e a vida de Ana Cristina Cesar – a homenageada da FLIP 2016, que começa nesta quarta, 29, e vai até domingo, 3 – foram breves. Como se sabe, a escritora, deprimida, cometeu suicídio aos 31 anos, em outubro de 1983, atirando-se da janela do apartamento dos pais, no sétimo andar de um prédio em Copacabana. Deixou uma obra pequena, mas cultuada e cercada de uma aura mítica, acentuada pela morte precoce. Mais que isso, a releitura atenta de “A teus pés” sugere que a sombra de Ana Cristina se projeta, para o bem e para o mal, sobre muitas poetas brasileiras em atividade. Ela instaurou, de certa forma, a dicção que ainda prevalece na nossa poesia feminina – na tematização informal da intimidade, mas também na conjugação da prosa e do verso, do pop e da alta literatura, da invenção e da confissão, da originalidade e do intertexto. Traços dessa se manifestam nos versos e na fala de poetas jovens como Alice Sant’Anna, Annita Costa Malufe, Laura Liuzzi e Marilia Garcia – as três últimas integrantes da mesa de poesia deste ano da FLIP. Todas, de alguma maneira e por vias diversas, seguiram as pegadas literárias de Ana Cristina Cesar.
“Inconfissões”, fotobiografia organizada por Eucanaã Ferraz que será lançada no dia 30, na Casa do Instituto Moreira Salles, em Paraty, reforça essa impressão de permanência da autora. Além de um ensaio de Eucanaã – rico em citações a Roland Barthes e em digressões intrigantes sobre a relação entre o texto, a vida e a fotografia, mas sem maiores insights sobre a vida ou a obra de Ana Cristina – o volume reúne textos curtos de evocação e/ou homenagem de amigos e herdeiros literários, motivados por determinadas imagens e entrelaçados com uma organização um pouco assistemática de fotografias e reproduções de manuscritos (veja exemplo na imagem abaixo), páginas de diários e capas de edições originais. Graficamente atraente, “Inconfissões” carece contudo de densidade e ordem: é objeto de desejo indispensável para os fãs incondicionais de Ana Cristina, mas pouco acrescenta a quem busca um aprofundamento crítico de sua obra ou a compreensão da interrupção absurda de sua trajetória, tema deliberadamente ignorado. 
Manuscrito de Ana Cristina CesarTambém fazem falta referências ao escritor Caio Fernando Abreu, que dedicou a Ana Cristina um conto de “Morangos Mofados” e lhe escreveu inúmeras cartas, trocando confidências e cultivando uma intensa relação de amizade. Há quem diga, aliás, que parte dessa correspondência foi censurada pela família da poeta, particularmente cartas que citavam relações homoafetivas (por exemplo, Josué Rowstock em “Decifrando a esfinge da poesia marginal”), tema sobre o qual não faria mais nenhum sentido manter qualquer sigilo hoje em dia. Caio poderia ter condimentado um pouco o volume, que parece demasiadamente plácido e inofensivo, como um álbum de família onde só entram as imagens e lembranças agradáveis à vista e à memória de parentes e amigos. (Me vem à cabeça a palavra “gourmetização”, um processo que sofistica mas também pasteuriza e tira o sangue e a vida, que transforma subitamente em assépticos ídolos de consumo da classe média autores transgressores como Leminski e Ana Cristina, ideia a ser desenvolvida em outro texto).
Nascida em Niterói em 1952, Ana Cristina Cesar emergiu na onda da “geração mimeógrafo”, na segunda metade da década de 70, e tem seu nome geralmente associado à Poesia Marginal. Filha de um sociólogo e uma jornalista, estudou na Inglaterra antes de se dedicar integralmente à poesia e à tradução, publicando em edições caseiras, alternativas e independentes até o lançamento de “A teus pés” pela editora Brasiliense, em 1982. Sua poesia é fortemente marcada por elementos autobiográficos e pelo tom confessional e coloquial – mas também por um permanente ar blasé, que hoje me incomoda um pouco, mas que no contexto cultural dos anos 70 e 80 fazia sentido. Isso reforça minha opinião de que determinados poetas – por exemplo, Waly Salomão, além do já citado Leminski  e da própria Ana Cristina – perdem força sem a devida contextualização, já que sua poesia estava tanto (ou mais) na vida quanto na página impressa. Desinseridos dos conflitos e impasses políticos e comportamentais do final dos anos 70 e início dos 80 em que Ana viveu – e “Inconfissões” não se preocupa muito com essa inserção – os poemas, fragmentos de textos e cartas e páginas de diários de Ana Cristina parecem um pouco anêmicos.
Além de “Inconfissões” e do lançamento recente da antologia “Ana Cristina Cesar – Poética” pela Companhia das Letras, a poeta ganha uma reedição de bolso de “A teus pés” e volumes de textos críticos e correspondência. Seu acervo, herdado pelo amigo e também poeta Armando Freitas Filho, entrevistado por este blog no domingo passado, hoje pertence ao Instituto Moreira Salles.A poeta Ana Cristina Cesar
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Uma dica para quem vai à FLIP mas não quer se limitar à programação intensa (e às filas) da tenda principal é acompanhar as atividades da Casa Cais, que vai reunir nomes como Pilar del Río, Miguel Gonçalves Mendes, Marina Lima, Pedro Luís e José Eduardo Agualusa, em debates, exposições e espetáculos musicais. Fica na Rua Fresca, ao lado da Capelinha. A Casa Cais surgiu em 2015 como expansão do Cais (cais.ato.br), site que convida artistas de diferentes vertentes a expor obras de língua portuguesa em processo. No ano passado, pela primeira vez na FLIP, a Casa Cais contou com artistas como Adriana Calcanhotto e Gonçalo M. Tavares.

02 de julho de 2016
in máquina de escrever