Quase tudo se disse sobre Ivo Pitanguy, sobretudo como um homem da beleza. Lembro-me dele principalmente como um homem da vida, o cirurgião da vida. É o que ele foi:
“A experiência que marcou mais fortemente a minha vida foi o tratamento das vítimas do incêndio do Gran Circo Norte-Americano, ocorrido no dia 17 de dezembro de 1961, em Niterói”.
O que presenciei naquele dia superou os mais terríveis pesadelos. Uma multidão de 2.500 pessoas – na sua maioria crianças – sucumbiu ao fogo e à falta de atendimento adequado às gigantescas proporções do desastre. O dramático saldo registrou cerca de quinhentos mortos e outras tantas vítimas irremediavelmente desfiguradas.
Lembro-me como se fosse hoje. Estava indo para a Santa Casa quando ouvi no rádio do carro a notícia da tragédia. Desviei meu roteiro, tomei a barca e, junto com Odir Aldeia, Adolfo, Ronaldo, Ramil e outros colegas que já se encontravam em Niterói, comecei a organizar um pequeno time que pudesse nos ajudar, naquele ambiente de desespero que se apossou da cidade. Era preciso controlar a multidão, dar ordem ao caos, reabrir o Hospital Antonio Pedro, fechado por uma greve de funcionários, e criar um sistema de atendimento a todos aqueles queimados.
Fiquei impressionado com o caso de um menino de 11 anos. Havia surgido subitamente da espessa fumaça que formava uma muralha em torno do capitel em chamas. Estava gravemente queimado em 80% do corpo, mas parecia indiferente a seus ferimentos. Com as roupas em farrapos, sua única preocupação era olhar todos os outros feridos como se procurasse alguém.
– Meu amigo…
Seus lábios tremem tamanho o pavor que havia sentido antes de poder escapar da fornalha. Com o olhar alucinado, ele procura seu amigo:
– Ele continua lá no fogo!
Sem que ninguém possa interferir, tão fulminante é sua decisão, o menino se arremete na direção do inferno.
Os apelos são inúteis. A pequena silhueta é novamente tragada pela armadilha de fumaça. Petrificados, estamos convencidos de que ele não escapará mais. De repente, as pessoas começam a gritar e correr. Urrando de terror, um elefante que arrasta em seu dorso panos incandescentes do circo, rasga uma passagem entre as chamas. Aproveitando-se do buraco, espectadores conseguem escapar:
– Olhem! O menino está ali…ali!
Uma enfermeira é a primeira a vê-lo e se precipita em sua direção para socorrê-lo. Ele caminha penosamente. Está no fim de suas forças. Mas carrega seu amigo quase desmaiado. Em seu rosto fino, inchado pelas queimaduras, seus olhos brilham loucamente com um indizível orgulho. Seu amigo está salvo.
A intrepidez e a abnegação desse menino marcaram-me para sempre. Arriscar a vida pelo outro é o mais nobre ato de um ser humano. O jovem herói chama-se Pablo. Livre de seu fardo vivo, ele cai a nossos pés. Lembro-me também desse momento exato. Enquanto eu e um assistente o instalamos cuidadosamente sobre uma maca, olho o céu que o incêndio avermelha E juro que vamos salvá-lo.
Pablo está moribundo. As chances de mantê-lo vivo são quase inexistentes. Durante mais de seis meses nós nos revezamos à sua cabeceira, prodigalizando-lhe os cuidados que nos são possíveis.
Entre todos os nossos pacientes, Pablo conserva uma dignidade que chama nossa atenção, e seguimos a lenta evolução de seu estado como se fôssemos seus parentes. Muitos de nossos queimados morrem. Um lençol branco recobre corpos martirizados.
Pablo sobreviverá? Nós o alimentamos com produtos dietéticos destinados a substituir os sais minerais que seu organismo perdeu. E no terceiro mês, tendo seu estado geral progredido, podemos praticar naquele corpo frágil e supliciado, os enxertos autógenos, utilizando as zonas onde a pele ainda está intacta.
Terra de crendices, de superstições e de fé, o Brasil é sensível aos signos e aos presságios. Certa manhã, uma religiosa vem ao meu encontro com seus passos miúdos, toda exaltada. Mãos juntas como para uma prece:
– Pablo vai sobreviver, doutor.
– De onde vem essa sua certeza, irmã?
Suavemente a religiosa entreabre a porta. Sobre o parapeito da janela, como a contemplar Pablo adormecido, uma pomba branca permanece imóvel.
– Deus a enviou para anunciar a sua cura! – murmura a religiosa.
Deus ou nossos cuidados? Ou Deus e nossos cuidados? Pablo se cura. Cresce. Seu corpo guarda cicatrizes do passado”.
O cirurgião Ivo Pitanguy embelezou a humanidade.
10 de agosto de 2016
Sebastião Nery
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