Neste momento, detalhes sobre a biografia e a trajetória literária de Ferreira Gullar já estão disponíveis em diversos artigos e reportagens na Internet – muitos recorrendo, justificadamente, à expressão “perda irreparável”. No caso do poeta maranhense, o clichê se torna exato e verdadeiro como um verso: esta é mesmo uma perda irreparável. A excelência e a consistência de sua produção poética ao longo de mais de seis décadas (seu primeiro livro, “A luta corporal”, começou a ser escrito em 1950), não encontram termo de comparação no Brasil de hoje.
Mas a morte de Ferreira Gullar também tem um impacto simbólico que supera o da partida de outros escritores: ela marca o fim de uma era na cultura brasileira, em dois aspectos igualmente importantes.
Primeiro:
Ferreira Gullar foi o último poeta realmente grande, daqueles que podem ser chamados de “poetas nacionais” – na linhagem de Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade e João Cabral de Melo Neto. Um poeta nacional é aquele que representa, com sua obra, a identidade e os valores de uma cultura; é um artista perene, ao contrário de muitos poetas laureados que ocupam cargos públicos, ou de muitos poetas descolados e cultuados, de forma passageira, em festas literárias.
Não que não existam poetas muito bons em atividade. Mas nenhum deles tem sequer essa ambição. E talvez nem se trate de uma questão de ambição: talvez tenha morrido, antes mesmo de Gullar, uma cultura em que havia espaço para poetas nacionais. Hoje só há lugar para poetas menores e modestos – o que reflete o espaço menor que a poesia passou a ocupar no mundo.
Segundo:
Ferreira Gullar foi o último representante relevante de uma época em que escritores, artistas e intelectuais tinham a obrigação moral de se associar incondicionalmente à esquerda. Não que ele tenha abandonado seus ideais (os que permaneceram esquerdistas de forma acrítica é que abandonaram, ainda que inconscientemente, esses ideais).
Gullar foi um dos poucos que entenderam o que aconteceu no Brasil e no mundo, em termos de ideologia, e pagou um preço alto por sua independência. Crítico contumaz dos rumos que a esquerda tomou no país nas últimas décadas, foi jogado para escanteio pela “inteligência” ligada ao campo no poder. Inatacável em sua poesia e pelo seu passado – ele foi militante do PCB e, exilado pela ditadura militar, viveu na União Soviética, na Argentina e Chile (foi no exílio argentino, aliás, que escreveu o magistral “Poema sujo”, publicado em 1976) – Gullar se tornou uma presença incômoda para muita gente.
Quando, em uma entrevista recente, lhe perguntaram se ele tinha passado para a direita, Ferreira Gullar respondeu:
“Eu, de direita? Era só o que faltava. A questão é muito clara. Quando ser de esquerda dava cadeia, ninguém era. Agora que dá prêmio, todo mundo é.”
COBERTURA COMPLETA: Ferreira Gullar morre aos 86 anos no Rio
29 de dezemb ro de 2016
luciano trigo
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