Eles se reuniram em uma ponte enferrujando em sua ruína. Alguns refugiados judeus, agora no fim dos 80 e começo dos 90 anos, retornaram no início de julho à fronteira entre França e Espanha, para homenagear o esquecido diplomata português que salvou a vida deles no começo da Segunda Guerra Mundial. Mas com a Europa passando por uma crise de refugiados bem diferente, essas pessoas que já passaram por isso vieram ressaltar a necessidade urgente de ação hoje.
No meio de testemunhos emocionados sobre os caminhos que seguiram de Bordeaux para Portugal, os sobreviventes e seus filhos celebraram aquele que os salvou, Aristides de Sousa Mendes, como um exemplo de um indivíduo disposto a ajudar aqueles em necessidade, qualquer que seja o custo.
MORREU NA MISÉRIA – Sousa Mendes, cônsul português destacado para Bordeaux na época, desafiou as ordens de seu governo e forneceu cerca de 30 mil vistos de trânsito no verão de 1940, sendo que quase um terço deles era para judeus refugiados desesperados para escapar de uma França ocupada por nazistas. Em troca, ele fui punido severamente, perdeu seu título diplomático e morreu na miséria em 1954, incapaz de alimentar sua família.
“A maioria das pessoas é avessa a riscos”, disse Olivia Mattis, cujo pai estava entre os refugiados de 1940. “Sousa Mendes não era”. Em 2010, Mattis, um musicólogo treinado, criou uma fundação para preservar a memória do diplomata português, que é gerenciada pelas famílias de Sousa Mendes e de refugiados que ele salvou.
“Você deve se perguntar se você teria feito a mesma escolha”, disse Jerry Javik, que estava acompanhando sua mãe, Lissy Jarvik (93 anos), que recebeu um dos vistos de Sousa Mendes quando tinha apenas 16. “Será que eu sacrificaria o futuro daquelas duas?”, diz apontando para suas duas filhas.
ANTES DE TUDO – Historiadores do Holocausto apontam que o que distingue Sousa Mendes de outros heróis mais conhecidos da época, como Oskar Schindler e Raoul Wallenberg, foi o contexto pouco comum que permeava suas ações. Sousa Mendes deu os vistos no verão de 1940, muito antes de ter entendido o que era a “solução final” de Hitler.
“Ele não sabia que estava salvando as pessoas do genocídio”, disse Edna Friedberg, uma historiadora do Museu em Memória do Holocausto dos EUA. “Ele estava salvando as pessoas da perseguição, e para ele isso era suficiente”.
Quando a França foi dominada pelos nazistas em junho de 1940, Sousa Mendes, então com 54 anos, já era um homem com problemas suficientes: ele e sua mulher tinham 12 filhos para criar com um salário modesto do governo, e a amante dele, uma pianista francesa, tinha anunciado publicamente que estava grávida.
CRISE MIGRATÓRIA – Os problemas de Sousa Mendes aumentariam em breve, quando a cidade burguesa de Bordeaux se encontrou no meio de uma crise migratória de uma escala sem precedentes. Depois dos alemães terem chegado no Norte da França, milhões de franceses e estrangeiros que já tinham buscado refúgio no país antes da sua ocupação rumaram para o sul em busca da segurança dos ainda neutros Espanha e Portugal.
Para se ter uma ideia da magnitude dessa onda de pânico, a França ainda se refere a esse episódio como “êxodo”. O termo bíblico não é um exagero: em um país cuja população não passava de 40 milhões, historiadores estimam que entre 6 e 10 milhões de pessoas foram para as ruas em direção ao Sul.
Muitos dos franceses voltaram para casa, mas judeus e refugiados estrangeiros – que já tinham escapado dos nazistas em outros lugares da Europa – estavam cientes que ficar parados não era uma solução. A ocupação nazista na França significaria a imposição das Leis de Nuremberg na república europeia da igualdade.
BUSCA DESESPERADA – Consequentemente, refugiados – judeus ou não – começaram a lotar os consulados portugueses e espanhóis de Bordeaux, Bayonne e outras cidades da costa, numa busca desesperada por documentos e vistos que lhes garantiriam fugir da França e, eventualmente, da Europa. Nesse sentido, oficiais obscuros como Sousa Mendes se tornaram guardiões cruciais, árbitros do destino.
“Sem Aristides de Sousa Mendes, eu não estaria aqui. É simples assim”, disse Lissy Jarvik, de uma família de judeus holandeses que fugiu para a França logo depois que os nazistas invadiram a Holanda em maio de 1940. “Sem Aristides de Sousa Mendes, eu teria sofrido torturas tão cruéis e prolongadas que a morte se tornaria um alívio. Sem Aristides Sousa Mendes, eu teria perdido três quartos de um século”.
A maioria dos diplomatas espanhóis e portugueses com alguma autoridade seguiram os ordens de seus governos que, apesar de tecnicamente neutros, evitavam acolher refugiados cuja presença poderia estragar suas relações com a Alemanha nazista.
CIRCULAR 14 – Portugal não foi exceção e o então ditador António de Oliveira Salazar editou a Circular 14, que proibia os diplomatas de fornecer vistos para judeus, russos e outras pessoas sem nação. Sousa Mendes, porém, não respeitou o protocolo.
Na ação que foi descrita pelo historiador Yehuda Bauer como “possivelmente o maior resgate feito por um único indivíduo durante todo o Holocausto” – maior inclusive do que a famosa intervenção de Schindler –, Sousa Mendes ofereceu assistência indiscriminada para dezenas de milhares. Os motivos pelos quais fez isso, considerando os sacrifícios profissionais e pessoais que sofreu, continuam um mistério.
Alguns dizem que o fator chave foi a sua amizade com Chaim Kruger, um rabino polonês que escapou da Bélgica para a França e se recusou aceitar ajuda de Sousa Mendes se ele não fizesse o mesmo por outros judeus.
COLAPSO NERVOSO – Em junho de 1940 o diplomata reclamou em uma carta para um de seus cunhados de um “colapso nervoso forte”. Alguns dias depois, porém, seguiu sua fé. “Eu prefiro ficar do lado de Deus contra os homens do que do lado dos homens contra Deus”, disse Sousa Mendes.
Enquanto ele e sua família viveram na miséria – sendo alimentados por um refeitório judeu depois da guerra – muitos daqueles que salvou se tornaram pessoas proeminentes nos EUA ou outros países.
A família do galerista parisiense Paul Rosenberg, agente de Picasso, Braque e Matisse, escapou para Nova York graças a 17 vistos dados por Sousa Mendes. A galeria foi aberta então em Manhattan. Ina Ginsburg, então conhecida como Ida Ettinger, se tornou uma figura influente na vida social de Washington por décadas, colaborando com seu amigo Andy Warhol em artigos conhecidos. Ginsburg morreu em 2014 com 98 anos.
GRATIDÃO E CULPA – Alexandra Grinkrug, agora com 81 anos, recebeu um dos vistos de Sousa Mendes aos 4 anos e lembra pouco daquele verão na França exceto pela vila que seus pais alugaram lá e um passeio de carro, o que não era comum na época.
Ainda que sua família, de proeminentes judeus russos, tenha eventualmente se estabelecido em Los Angeles – onde seu pai produziu o filme “Hotel du Nord” em 1938 – ela voltou já adulta para Paris, onde se estabeleceu como pintora.
Alexandra Grinkrug disse que estava retomando seus passos não por uma vontade particular de aliviar a experiência, mas por uma mistura de gratidão e culpa. “Isso é para dizer obrigada – e por favor desculpe meus pais por não lembrarem o seu nome”. (artigo enviado por Mário Assis Causanilhas)
22 de julho de 2017
James Mcauley
The Washington Post
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