Na iconografia cristã, os grandes mestres da pintura sempre deram relevada importância em registrar com talento, criatividade e interpretações diversas, o episódio da Natividade (o nascimento de Cristo) com seus personagens – a Virgem Maria, São José, o Menino Jesus, os animais, os pastores e os Reis Magos. Essas imagens, um dos temas mais comuns na arte cristã, mormente na Idade Média e no Renascimento, estão sempre impregnadas de símbolos, como ressaltam Emile Male e seu discípulo Louis Réau, em livros iconográficos que decodificam a poética dos artistas.
A Virgem, o Menino Jesus e São José, personagens principais do ato passado na estrebaria, o Nascimento de Cristo, conforme a época e os pintores, a cena, bastante conhecida, sofre variações de um para outro artista. No Retábulo Portinari, do flamengo Reoger der Weuden, ou na Natividade, do alemão Hans Baldung, há uma inovação: a do Menino iluminado, adorado por seus pais e os pastores.
“Do corpo do pequeno Cristo irradia intensa luz que ilumina a face extasiada dos personagens”, diz Emile Male. “Não é apenas um menino comum, que jaz no chão ou na manjedoura, reverenciado por Reis Magos e Pastores, olhado e farejado com certa indiferença por dois animais principais: o asno e o boi”.
OUTROS SERES – Neste painel, outros seres ainda podem ser acrescentados, como na pintura da brasileira Rosina Becker do Vale: pavões, leões, corujas, borboletas, além de anjos cantores. “E com tal fidelidade são estes seres representativos do Renascimento que, na Natividade de Piero Della Francesca, identificam-se as palavras do canto gregoriano que pronunciam pelo formato de suas bocas”, afirma Emile Male.
Os livros iconógrafos relatam que tudo na arte cristão medieval possui caráter simbólico, testemunhos da divindade de Cristo e das verdades do Novo Testamento. E, por isso, existe um verdadeiro zoológico nos quadros primitivos flamengos, nos renascentistas e no de alemães e espanhóis.
Segundo os especialistas, as fontes do bestiário vieram, principalmente, da Bíblia, dos Salmos e da Lenda Dourada, a hagiografia dos santos (história dos santos) tão consultada pelos artistas da Idade Média. Nelas os animais não são classificados por espécies, família e gênero, como fez Carlos Lineu, no início do século XVIII, e sim por suas virtudes ou malefícios morais.
OS SIGNIFICADOS – “Na Idade Média”, diz Emile Male, “tudo é signo e o visível só vale porque esconde o invisível. Logo, temos o significado de alguns animais que sempre aparecem em quadros de mestres que pintaram o tema Natividade”.
O Cordeiro (Agnus Dei), por sua mansidão ante a morte inevitável, geralmente, simboliza Cristo e seu sacrifício pela humanidade, sobretudo quando aparece imóvel, salienta Emile Male. “Mas também pode significar a Ressurreição do Cristo. Todavia, devemos nos lembrar que Ele não simboliza, exclusivamente, a imagem de Jesus imolado ou ressuscitado. Ele pode ser o símbolo místico do Apocalipse que se aproxima, ou a inocência dos santos”.
O asno e o boi são animais inevitáveis em todas as Natividades. O asno, que mais tarde ajudará a Sagrada Família a fugir para o Egito, na iconografia do Natal tem vários significados. Humilde o doce, ele era chamado “o cavalo do pobre” e tem sempre um papel simpático na Bíblia. Na gruta natalina, ele esquenta com seu hálito o Menino Jesus na manjedoura.
POVO JUDEU – O asno, entretanto, tem também seu lado perverso, constata Emile Male. “Iconograficamente, ele simboliza a ignorância, a obstinação e até a lubricidade. Sua teimosia simboliza o povo judeu que, mantendo-se fiel a sua milenar crença, não quis seguir Jesus Cristo. No caso, o asno é o símbolo da Sinagoga que renegou o Messias Cristão. E foi o asno que carregou Cristo para Jerusalém no Dia da Páscoa”.
Já o boi, como São José, tem um papel humilde de Natalidade. Seu hálito também ajuda a acalentar o Menino na noite de inverno natalino. Ele, iconograficamente, simboliza ainda o sacrifício de Jesus, assimila a ideia de reprodução humana e é a vítima nos sacrifícios religiosos. Por isso, o boi não tinha boa reputação na Bíblia, que condenava o sacrifício dos animais aos deuses. Foi aproveitando a ausência de Moisés que os judeus adoraram o Bezerro de Ouro ao pé do Monte Sinai.
RIQUEZA DO MUNDO – Os cavalos dos Reis Magos, ricamente, adornados, significam a riqueza do mundo em comparação à do Filho de Deus, explica Emile Male. “A este bestiário luxuoso, vários artistas como Ticiano, Rubens e Veronese, acresceram outros animais simbólicos: pomba, pavão, cervo, galo e leão, além dos anjos que evoluem como símbolos da pureza velando pela Sagrada Família”.
A pomba, símbolo da paz que reinará um dia sobre a humanidade após o Juízo Final, foi a emissária da Anunciação e do término do Dilúvio Universal. “Signo do Espírito Santo, da alma do penitente purificada pela morte, ela se opõe ao negro corvo, encarnação do Diabo. A pomba também simboliza a Igreja nascida no Pentecostes”, sustenta Emile Male.
OUTROS ANIMAIS – O cervo, segundo o Salmo 41, após beber no regato, brame pela presença do Messias. Ele é também o matador da serpente tentadora. Já o pavão de caudas é um breve contra o mau olhado. “Os cristãos primitivos o reverenciavam ainda como símbolo da redenção e da vigilância contra o pecado. Mas em pintura, era também um animal que permitia vivas combinações de cores”, constata Emile Male.
O galo não significa apenas o símbolo da regeneração e do remorso de São Pedro, é também a imagem de Cristo que, no terceiro dia, ressurgiu das trevas para a Ressureição. Seu canto matinal não apenas acorda o homem para o trabalho, mas serve para lembrá-lo que mais um dia passou e a morte se aproxima.
E o leão, símbolo da coragem e da força, paradoxalmente, significa a sepultura, tal como a baleia, onde um dia os restos mortais irão repousar. Emile Male revela que além desses símbolos iconográficos da Natividade, outros foram adotados para significarem o bem ou o mal. “Na Idade Média e, desde a Arte Cristã Primitiva, o importante das imagens não eram suas qualidades físicas, mas seu conceito metafísico, pois a metafísica, no mundo medieval, era a única filosofia que explicava o Universo”.
Paulo Peres
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