terça-feira, 27 de setembro de 2011

EDUCAÇÃO É COMO MESA PARA A ESCADA

Alguma vez você já parou para pensar que valores motivam ações? Não estou falando da campanha do Betinho não: estou falando da vida rotineira de qualquer um de nós – homo erectus, homo tortus, homo agrárius, homo criminosus, homo lattes, homo lavamaisbrancus…

"olha o que você fez: mau designer, mau designer" "que cretino! Ô Bob, você nunca vai conseguir educar ele desse jeito. Você tem que pegar ele no ato!"

Vejamos um exemplo mais próximo de mim: o homo lattes. É uma tribo interessante de homo: pergunte o que ele faz e a resposta será “mestrado”, “doutorado”, “pós-doutorado” ou uma variação disso. No seu cérebro aquela pergunta se converte em algo como “Em qual degrau você está dA Escada?”. Quando a resposta vier do tipo “eu estudo os efeitos de x em…” ou “eu pesquiso as conexões entre y e…” com cenho franzido de quem tenta traduzir uma língua exótica, você pode ter certeza de que está em presença de um deslocado da comunidade dA Escada. O homo lattes é um homem de títulos.

O homo lattes olha com desdém os membros deslocados dA Escada. Alguns desses deslocados são dignos de pena: eles ficam por anos e aaaanos tentando subir os Degraus com uma manobra esquisita que só dificulta a subida – são um tipo demente de quem é melhor ficar longe. Mas alguns deslocados dA Escada alcançam os degraus mais altos muito rapidamente. Esses devem ser odiados, pois decerto vêm de uma família que está nA Escada por gerações, e com toda certeza, eles jogaram uma corda pra ele. Ou então esse deslocado vem de uma das poucas famílias com acesso a helicópteros: com certeza eles deram uma carona ao deslocado para o topo dA Escada.

O homo lattes não vê diferença entre títulos: são equivalentes gerais, como disse Marx sobre a moeda. Assim como uma mesa é uma mesa, igual a qualquer mesa por sua função, independente da arte que se use para fazê-la. Ele só vê função, e essa função é ao mesmo tempo seu valor de uso e seu valor de troca. De seu ponto de vista uma mesa cuja feitura usa tecnologias de materiais que demoraram séculos para serem desenvolvidas e conceitos de design que tem uma história bonita, ou uma mesa que é feita toda a partir de uma brilhante estratégia de engenharia desenvolvida por alguém brilhante que teve que esculpir demoradamente peça por peça é uma pura perda de tempo e recursos, pois não é diferente de uma mesa feita com uma tábua e 4 paus colados com pra quê prego: estando firme é funcional – é uma mesa como as outras.

Como dizia um outro motoqueiro (1), um indivíduo só pode compreender sua própria experiência (e avaliar as possibilidades de seu próprio destino) entendendo sua posição na história, em sua cultura e em sua classe. O espírito dA Escada não surgiu do nada: suspeito que surgiu da FAPESP, uma entidade de uma só vez terrível e magnífica, como o Deus de Abraão (2).

A ética lattes, é uma ética classe-média. Como qualquer outro homo classe média (mesmo os não lattes), o que ele quer na vida é continuar a ser classe média (diferente das várias tribos de homo miserabilis, que querem ser outra coisa). Educação é como a mesa – tem essa função: Por meio dela ele ganha as ferramentas para sua subsistência como membro da classe. Faz parte dessa ética a noção de self-made-man. Essas tribos de homo frequentemente não vêem que a sua posição financeira e familiar classe média constituem um chão pelo qual é possível chegar À Escada. Mas eles são capazes de enxergar – e com um ressentimento de classe já suspeitado por Nietzsche (3) – que os membros dA Escada oriundos da tribo homo abastadus abastadíssimus trazem consigo no mínimo um tênis ergonômico (daqueles feitos pra aumentar o seu impulso) quando chegam À Escada. Com que tecnologia eles construíram a sua mesa não importa: essas noções sucumbem frente ao ódio de classe.

Mas a minha preocupação é com o homo miserabilis. O espírito das discussões políticas de nossa época sai da tribo lattes, que é classe média. Há membros dessa tribo que ao invés de subirem A Escada, sobem A Folha (ou outra instituição dessa Árvore aos pés dA Escada: Veja, alguns dos pertencentes À Escada não deixam nunca de cuidar dela, Isto É, regá-la, colocar fertilizante e de jogar um pouco de sua luz nA Árvore, para alimentar aqueles homo que como lagartas crescem, e viram lindas borboletas, algumas vezes voando para o lindo Exterior).

E o homo miserabilis? O homo lattes realiza um supremo sacerdócio – sacrificado pra caramba – de tentar fazê-lo entender que ele é feio – feio mesmo, mas muitos miserabilis são cabeça-dura. Não se trata apenas de uma estética do visível (claro que muitos dos miserabilis não são zarcos, nem bem tratados, às vezes torcem pro Corinthians e faltam-lhes uns dentes (4) sua estética equivocada não é A Estética que aparece impressa nAs FolhaS).

Mas, para além disso, trata-se de uma questão mais profunda: muitos deles não são dotados da capacidade que lhes permite ler A Árvore, e isso é por culpa deles mesmos, da forma que se portam nA Vida. A Vida é dura, e pra eles subirem nA Vida eles precisam penar, como penaram os que subiram nA Escada, e a via destes sacros suplícios é a educação, ou seja, conseguir galgar pelo menos a escadinha que chega no chão que leva À Escada.

A Vida é dura. E os membros da classe que subiu A Escada entendem que tanto a escadinha como A Escada são suplícios que justificam que os que passaram por elas com sucesso são uma espécie de santos e devem ganhar salários no mínimo umas vinte vezes maiores que aqueles que nem a escadinha conseguiram galgar (5), como compensação justa por seus esforços nA Vida.

Mas o homo miserabilis, em especial o brasiliensis, apesar de muitas vezes concordar com o homo lattes, é um Macunaíma preguiçoso que tem que aprender uma lição dura: é nada mais nada menos que o justo que o homo classe- média brasiliensis pague ao miserabilis por semana menos do que a metade do que o homo classe-média gasta no supermercado comprando fandango e barrinha de cereal por semana, para que ele limpe o chão da habitação do homo classe-média brasiliensis (e lave sua privada).
Valores motivam ações e ele age assim todo dia.
O homo médiaclasse brasiliensis sabe da existência do homo trabalhatoris europeu e canadensis, por exemplo, e que é diferente do miserabilis: é uma coisa briguenta, dada a passeatas, coisa que ele não compreende nem gosta.
O homo classe-média brasiliensis é um pacifista de ocasião: ele sabe que na sua tradição de pensamento brasiliensis, que é herdeira tanto de Aristóteles quanto de Miranda de Azevedo (ver a partir de pag 89), o mundo é muito mais claro do que querem esses membros deslocados dA Escada, e que A Vida é pão pão, queijo queijo (apesar de que o queijo não é considerado essencial por ele, pelo menos não como ingrediente necessário na mesa do miserabilis).

Notas:

(1) Wright Mills, sociólogo deslocado. Em sua produção militante imaginava ser a Imaginação Sociológica a capacidade que traria ao homem forças e ferramentas para modificar suas condições de existência, um dos últimos e mais valiosos frutos do iluminismo, portanto, junto com os teóricos da escola de Frankfurt. Diz-se dele que era uma figura, andava de jaqueta de couro na sua Harley Davison, e foi impedido pelas estruturas da universidade de ter seguidores (orientandos). Seus livros, no entanto, (assim como sua audácia), foram um grande sucesso de público e inspiraram várias gerações de sociólogos. “Outro” motoqueiro, por que como motoqueira e socióloga, quando penso nele me sinto em boníssima companhia. Um dos meus amigos imaginários mais queridos.

(2) O Deus de Abraão pediu-lhe que oferecesse seu único filho em holocausto como prova de amor (ao Deus, não ao filho). Mais sobre os desenvolvimentos disso, sugiro “Temor e Tremor” de Kierkegaard, que é leitura apaixonante. Nada me tira da cabeça que, impedido pelo anjo de sacrificar seu filho, Abraão não deixa de ser um assassino.

(3) Pela idéia da transvaloração dos valores, Nietzsche procura desvendar o alicerce do interesse material e de classe, poderia-se dizer, que está na base dos valores passados às verdades da filosofia. É o primeiro filósofo anti-filósofo a inaugurar em sua própria disciplina estudos críticos sobre a mesma. Segundo ele, a transformação de conceitos políticos da prominência (e, portanto, podemos ler, de dominação) num conceito psicológico é regra. É assim que ele analisa o surgimento, desde sua etmologia, dos conceitos de bem e mal. Assim como ocorre com sua análise da moral de raiz judaica – que contém elementos de uma vingança simbólica de um povo vencido – creio que é possível olhar da mesma forma para a noção da classe média acerca de educação como um bem (tanto como justificadora de seu status, e como remédio para a pobreza brasileira, que parece querer dizer que quando todos os pobres tiverem estudado deixarão de ser o que são para se tornarem como eles – classe média – não levando em conta e mesmo sendo contrários às políticas distributivas que visam atingir o que poderíamos chamar de estruturas sociais da pobreza). A noção de educação que vem da classe média é vingativa tanto contra as classes mais baixas quanto contra as classes mais altas, onde é possível perceber o seu ressentimento contra aqueles mais poderosos que triunfam justo em seu bosque, que é a academia.

(4) Circulava nos anos 90 um questionário que um povo achava muito muito engraçado pra ver se você é mesmo corintiano. Uma das questões era se lhe faltavam dentes. Fui vítima do mesmo questionário, aplicado por alguém de quem deixei de ser amiga na mesma data, para saber se eu era mesmo petista. A mesma pergunta constava, Mas não consigo recordar, tanta a emoção, se me perguntava também se algum dedo me faltava.

(5) A educação pela dureza, na análise de Adorno em “Educação após Auschwitz”, aponta para a tendência de os duros consigo mesmos se acharem no direito de serem duros contra os outros e de se vingar dos outros pelos sacrifícios pelo qual passou. A análise de Adorno acerca do totalitarismo também não caberia ao caso brasileiro? Para muitos membros da classe média educação é vista como sacrifício necessário (e raramente como gozo), capaz de justificar a diferença entre aqueles que foram capazes de se submeter a ela (e duros consigo mesmos, perseveraram) dos macunaímas que “fugiram” a ela (não o bastante duros consigo mesmos, são seres humanos menos merecedores dos louros).


Postado por Flavia em Ideologia no dia 18 de April de 2009

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