Falei há pouco da auto-regulamentação da profissão de astrólogo – doravante denominados cosmoanalistas. Parece que a antiga denominação se desgastou com o tempo. Cosmoanalista soa melhor. Mas se a moda pega, a criatividade tupiniquim terá um vasto campo para exercitar a imaginação.
Me pergunta um leitor: “mas e os psicanalistas também não são auto-regulamentados?” Boa lembrança. Psicanalista não é profissão regulamentada por lei. A rigor, se você não tem profissão alguma nem pai ou mãe que o sustente, você pode pendurar uma plaquinha na porta de seu apartamento e ir tocando a vida. Basta um pouco de lábia ou talvez nem isso. Os psicanalisandos adoram psicanalistas que não falam e os deixam falar. Afinal, estão pagando para serem ouvidos.
Ainda hoje há quem não acredite que a profissão destes gigolôs das angústias humanas não esteja regulamentada. Pois não está e isto nada tem de novo. Levantei a lebre ainda nos anos 70, quando cronicava em Porto Alegre. Escrevi que ser psicanalista dispensava curso universitário. Mais ainda, dispensava qualquer curso.
Na época, em São Paulo, após o curso de cinco anos, ao preço de dez ou quinze mil cruzeiros por mês, pessoas sem o pré-requisito do curso de medicina podiam exercer a profissão de psicanalista. Enquanto 38 alunos faziam o curso, outros cem esperavam na fila.
Na falta de regulamentação legal, os psicanalistas criaram suas igrejinhas, as associações e sociedades psicanalíticas. Teoricamente, só seria psicanalista quem pertence a tais clubinhos. Ocorre que regulamentar uma escola significa marginalizar as demais. Melhor deixar como está. Psicanalista algum tem interesse na regulamentação. Os clubes são tantos que nenhum vigarista pode acusar o colega de estar exercendo ilegalmente a profissão. Não deixa de ser uma auto-regulamentação.
A guilda reagiu com fúria à minha descoberta do óbvio. Um psiquiatra, lembro que chamado Ronaldo Moreira Brum, me acusou nos jornais de nada entender de medicina – como se psicanálise fosse medicina. Ok! Doutor. De medicina nada entendo. Mas entendo de Direito. E psicanalista não é profissão regulamentada. Portanto, qualquer um pode exercê-la. A propósito, tem muito engenheiro e economista desempregado no Brasil, que puseram plaquinha de psicanalista em seus escritórios para ganhar seu pão.
Uma psicóloga e jornalista, Ivete Brandalise, resolveu enfiar sua colher na sopa. Escreveu que devia existir uma lei que regulamentasse a profissão de psicanalista. Que ela, psicóloga, tinha uma lei que regulamentava a sua. Ora, a dita lei era um trenzinho da alegria, no qual embarcaram todos os licenciados em Filosofia. De filósofos, vaga e suspeita ocupação, viraram psicólogos. Ora, lei tem número e data. Desafiei a Brandalise, e também o Dr. Ronaldo, a me citar o número e a data da lei que regulamentava a profissão. Nunca tive resposta. Nem poderia ter.
A cada semana, começava minha crônica: “Enquanto o Dr. Ronaldo não nos fornece o número e a data da famosa lei que regulamenta a profissão de psicanalista...” Nunca forneceu. Soube mais tarde que propôs, em uma reunião da Amrigs (Associação dos Médicos do Rio Grande do Sul), que a entidade me processasse por calúnia. Ou talvez difamação, já não lembro. Prudentemente, a Amrigs decidiu que não iria dar atenção a “um jornalista em busca de sensacionalismo”.
De fato, os novéis cosmoanalistas seguiram caminho já trilhado. Mas, como os psicanalistas, jamais conseguirão acusar um colega de exercício ilegal da profissão. Vigarice, por milagre, ainda não está regulamentada no Brasil.
MAIS INTELIGENTES
OU MENOS COVARDES?
As pessoas religiosas seriam menos inteligentes do que os ateus, diz um estudo feito por uma equipe liderada por Miron Zuckerman, da Universidade de Rochester, EUA. Até pode ser. Mas isto vai depender do que se entende por pessoa religiosa, inteligência e ateísmo. Se se entende pessoa religiosa como pessoa que diz crer em Deus, a pesquisa não tem valor algum. Crer em Deus muito crêem, em falta de resposta melhor. O mundo está cheio de católicos que sequer sabem o que é dogma. Ser religioso é diferente. Religioso é o homem que pratica a fé que deposita em um deus.
Quanto à inteligência, há muitas formas de conceituá-la. Para efeitos meus, costumo distinguir duas espécies de inteligência, a inteligência burra e a inteligência inteligente. Por inteligência burra, entendo a de um engenheiro que domina o cálculo infinitesimal e não consegue gerir sua vida. Ou a de um cirurgião, que é um virtuose do bisturi mas nada entende do mundo que o cerca.
Já a inteligência inteligente seria aquela de um homem que, além de ser competente em seu ofício, conhece o mundo e a história do mundo em que vive, a meu ver a maneira mais eficaz de conhecer a si mesmo e aos que nos rodeiam. A esta inteligência não se chega lendo livros técnicos. É preciso ler história, filosofia, literatura. Este homem não precisa ser um erudito nestas três áreas: ninguém o é. Mas deverá possuir um conhecimento mínimo dos grandes momentos da aventura humana.
Zuckerman faz uma longa análise das crenças de um grupo de 1.500 crianças superdotadas - com QI superior a 135 -, em um estudo que começou em 1921 e continua até hoje. Até que ponto uma criança superdotada é um adulto inteligente é algo discutível. Depende se desenvolveu a inteligência infantil durante a vida. Alguém ainda lembra de Mequinho, o enxadrista que chegou a ser o terceiro melhor do mundo nos anos 70?
Em princípio, ninguém duvidaria de sua inteligência. Só começamos a duvidar quando afirma que, após rezar muito conseguiu a a redução de seu grau da miopia, o conserto da sua geladeira e a cura de uma fratura no dedo. Ora, atribuir a um deus – ou a alguma outra potestade a quem se dirija preces – a tarefa de consertar geladeiras é uma grossa ofensa a qualquer deidade.
Sem falar que Mequinho, apesar de seus feitos, parecia não confiar muito em sua inteligência. "Há jogos em que estou para perder, e Jesus e Nossa Senhora me salvam. Claro, nem sempre escapo, senão já seria o campeão do mundo." Conceber o Cristo como enxadrista imbatível até vá lá, afinal se era Deus era onisciente. Mas a coitada da Maria?
É preciso também definir o que se entende por ateísmo. Se por ateu se entende aquele que não acredita em Deus mas na hora do Jesus-está-chamando acende velas a qualquer santo para salvar-se, a pesquisa tampouco tem valor.
Em suma, não tenho a definição dos conceitos envolvidos no estudo. Na falta destes, qualquer afirmação sobre o mesmo é temerária. O que não me impede de algumas considerações sobre ateus e religiosos.
Religião é obra da família, da escola, do Estado. Ninguém nasce religioso. Nascemos todos ateus. É de menino que se torce o pepino. Já nos primeiros anos, mães, pais e professores começam a falar do tal de Deus. Este ateu que vos escreve foi exceção. Meus pais, gente simples do campo, não tinha nenhuma fé. Havia uma vaga crença de que alguém seria responsável por aquilo tudo, e só. Esse alguém poderia até ser chamado de deus, mas ninguém deitava teologia a seu respeito.
Meus pais iam às missas dominicais na capelinha das Três Vendas, na fronteira seca entre Uruguai e Brasil. Como também o faziam os demais camponeses da região. Mas não para cultuar deus nem ouvir o padre. É que a missa era o point do fim-de-semana. Para meu pai era ocasião de encontrar amigos no bolicho, apostar uns cobres numa suerte clavada na cancha de osso. Minha mãe ia fofocar com as comadres, ouvir os chismes e bandalheiras do Ponche Verde e Villa Indarte. Em geral, a missa coincidia com uma penca, e se havia gaiteiro por perto, salão era o que não faltava para um bate-coxa. O culto ao divino servia apenas como pretexto para a vida social naqueles pagos. Vigário era palavra associada a vigarista.
Deus entrou em minha vida por obra de uma catequista uruguaia, Doña Chichi, que arrebanhava a piazada pela Linha Divisória em sua camionete. Ora, andar de auto naquelas plagas era a suprema ventura. Valia bem uma missa. Acreditei na palavra divina mas foi por pouco tempo, uns cinco anos. Bastou-me ler a Bíblia para jogar a idéia de Deus ao lixo.
Não me pretendo nem mais nem menos inteligente do que quem crê. Mas sou mais curioso. Me agrada saber o porquê das coisas. E nunca entendi por que aquele deus matava e mandava mandar. Em sua versão melhorada, o Filho, mandava para o fogo eterno quem não o seguia. Era óbvio que se tratava de criação humana. Na base do ateísmo está sempre a leitura. Nenhum analfabeto é ateu. Nem poderia sê-lo. O ateu é sempre uma pessoa culta.
Na base das religiões está o medo. Medo da morte. A ressurreição foi o grande achado do cristianismo. Paulo sabia disso. Escreve no I Coríntios: “Onde está, ó morte, a tua vitória? Onde está, ó morte, o teu aguilhão?” Para Paulo, se Cristo não ressuscitou, “nossa pregação e nossa fé são em vão”. O apóstolo dos gentios oferece uma resposta fantasiosa aos curtos de curiosidade: ele ressuscitou, nós vamos ressuscitar. Para quem teme a morte e aceita respostas fáceis, tal esperança é presente caído literalmente dos céus.
Nós, ateus, não conseguimos acreditar em tais muletas. Primeiro, porque fere a razão. Segundo, porque vida sem corpo não é vida. Nem pode ser. Se uma pequena lesão no cérebro nos rouba desde movimentos a raciocínios, que ocorrerá quando nem cérebro houver? Ressurreição dos mortos é resposta para simplórios. Como pode voltar à integridade o que apodreceu? Como dizia Jorge Luís Borges, a Bíblia é a primeira obra na História de literatura fantástica.
Ateus, não tememos a morte. Temos perfeita consciência que vida eterna é eterno tédio. Não estamos preocupados com julgamentos finais, muito menos com castigo ou recompensas no além. Quem viu bem no que consiste a desgraça de ser eterno foi Swift. Em suas Viagens de Gulliver, ao chegar na ilha de Luggnagg, encontra uma peculiar estirpe de habitantes, os struldbrugs, seres que nasciam com uma pinta vermelha e circular na testa, em cima da sobrancelha esquerda, sinal infalível de que nunca iriam morrer.
A princípio, o viajante se entusiasma e louva copiosamente tal circunstância, o prazer de presenciar as várias revoluções, o descobrimento de países ainda desconhecidos, a barbárie que devasta as nações mais civilizadas e a civilização que se apodera das mais bárbaras. As louvações são longas e ocupam quase três páginas.
O mesmo não pensam os luggnaggnianos. Os struldbrugs viviam normalmente até os trinta anos. "Depois dessa idade, eram tomados pela tristeza e pelo desalento, que aumentavam até os oitenta. Quando completavam os oitenta, idade tida em Luggnagg como o limite máximo de vida, tinham não só toda a insensatez e todas as enfermidades dos outros velhos, senão muitas outras, nascidas da medonha perspectiva de nunca morrer. Não somente eram opiniáticos, rabugentos, avaros, impertinentes, tolos, tagarelas, mas também incapazes de amizade, e mortos para todos os afetos naturais, que nunca ultrapassavam os netos. A inveja e os desejos impotentes eram suas paixões predominantes. Mas os objetos principais das primeira são os vícios dos moços e a morte dos velhos. Refletindo naqueles, vêm-se privados de toda possibilidade de prazer; e sempre que assistem a um enterro, lamentam e lastimam que hajam outros chegado a um porto de repouso, a que nunca esperam chegar".
"Aos noventa, perdem os dentes e os cabelos; já nessa idade não distinguem nada pelo gosto, mas comem e bebem o que se lhes apresenta sem prazer nem apetite. As moléstias a que estavam sujeitos continuam, sem aumentar nem diminuir. Ao falarem, esquecem a denominação comum das coisas e os nomes das pessoas, até os dos amigos e parentes mais chegados, Pela mesma razão, nunca podem saborear uma leitura, pois a memória não os ajuda a irem do princípio ao fim de uma sentença; e esse defeito os priva do único entretenimento de que poderiam, de outro modo, ser capazes".
"Como a língua deste país sofre contínuas modificações, os struldbugs de uma época não compreendem os de outra nem lhes é possível, depois de duzentos anos, travarem conversação alguma (além de poucas palavras gerais) com os seus vizinhos, os mortais; e têm assim a desvantagem de viver como estrangeiros em própria terra".
Tudo que respira fenece. Ateus, temos perfeita consciência disto. Talvez não sejamos mais inteligentes que os crentes. Mas certamente somos menos covardes.
Me pergunta um leitor: “mas e os psicanalistas também não são auto-regulamentados?” Boa lembrança. Psicanalista não é profissão regulamentada por lei. A rigor, se você não tem profissão alguma nem pai ou mãe que o sustente, você pode pendurar uma plaquinha na porta de seu apartamento e ir tocando a vida. Basta um pouco de lábia ou talvez nem isso. Os psicanalisandos adoram psicanalistas que não falam e os deixam falar. Afinal, estão pagando para serem ouvidos.
Ainda hoje há quem não acredite que a profissão destes gigolôs das angústias humanas não esteja regulamentada. Pois não está e isto nada tem de novo. Levantei a lebre ainda nos anos 70, quando cronicava em Porto Alegre. Escrevi que ser psicanalista dispensava curso universitário. Mais ainda, dispensava qualquer curso.
Na época, em São Paulo, após o curso de cinco anos, ao preço de dez ou quinze mil cruzeiros por mês, pessoas sem o pré-requisito do curso de medicina podiam exercer a profissão de psicanalista. Enquanto 38 alunos faziam o curso, outros cem esperavam na fila.
Na falta de regulamentação legal, os psicanalistas criaram suas igrejinhas, as associações e sociedades psicanalíticas. Teoricamente, só seria psicanalista quem pertence a tais clubinhos. Ocorre que regulamentar uma escola significa marginalizar as demais. Melhor deixar como está. Psicanalista algum tem interesse na regulamentação. Os clubes são tantos que nenhum vigarista pode acusar o colega de estar exercendo ilegalmente a profissão. Não deixa de ser uma auto-regulamentação.
A guilda reagiu com fúria à minha descoberta do óbvio. Um psiquiatra, lembro que chamado Ronaldo Moreira Brum, me acusou nos jornais de nada entender de medicina – como se psicanálise fosse medicina. Ok! Doutor. De medicina nada entendo. Mas entendo de Direito. E psicanalista não é profissão regulamentada. Portanto, qualquer um pode exercê-la. A propósito, tem muito engenheiro e economista desempregado no Brasil, que puseram plaquinha de psicanalista em seus escritórios para ganhar seu pão.
Uma psicóloga e jornalista, Ivete Brandalise, resolveu enfiar sua colher na sopa. Escreveu que devia existir uma lei que regulamentasse a profissão de psicanalista. Que ela, psicóloga, tinha uma lei que regulamentava a sua. Ora, a dita lei era um trenzinho da alegria, no qual embarcaram todos os licenciados em Filosofia. De filósofos, vaga e suspeita ocupação, viraram psicólogos. Ora, lei tem número e data. Desafiei a Brandalise, e também o Dr. Ronaldo, a me citar o número e a data da lei que regulamentava a profissão. Nunca tive resposta. Nem poderia ter.
A cada semana, começava minha crônica: “Enquanto o Dr. Ronaldo não nos fornece o número e a data da famosa lei que regulamenta a profissão de psicanalista...” Nunca forneceu. Soube mais tarde que propôs, em uma reunião da Amrigs (Associação dos Médicos do Rio Grande do Sul), que a entidade me processasse por calúnia. Ou talvez difamação, já não lembro. Prudentemente, a Amrigs decidiu que não iria dar atenção a “um jornalista em busca de sensacionalismo”.
De fato, os novéis cosmoanalistas seguiram caminho já trilhado. Mas, como os psicanalistas, jamais conseguirão acusar um colega de exercício ilegal da profissão. Vigarice, por milagre, ainda não está regulamentada no Brasil.
terça-feira, agosto 13, 2013
OU MENOS COVARDES?
As pessoas religiosas seriam menos inteligentes do que os ateus, diz um estudo feito por uma equipe liderada por Miron Zuckerman, da Universidade de Rochester, EUA. Até pode ser. Mas isto vai depender do que se entende por pessoa religiosa, inteligência e ateísmo. Se se entende pessoa religiosa como pessoa que diz crer em Deus, a pesquisa não tem valor algum. Crer em Deus muito crêem, em falta de resposta melhor. O mundo está cheio de católicos que sequer sabem o que é dogma. Ser religioso é diferente. Religioso é o homem que pratica a fé que deposita em um deus.
Quanto à inteligência, há muitas formas de conceituá-la. Para efeitos meus, costumo distinguir duas espécies de inteligência, a inteligência burra e a inteligência inteligente. Por inteligência burra, entendo a de um engenheiro que domina o cálculo infinitesimal e não consegue gerir sua vida. Ou a de um cirurgião, que é um virtuose do bisturi mas nada entende do mundo que o cerca.
Já a inteligência inteligente seria aquela de um homem que, além de ser competente em seu ofício, conhece o mundo e a história do mundo em que vive, a meu ver a maneira mais eficaz de conhecer a si mesmo e aos que nos rodeiam. A esta inteligência não se chega lendo livros técnicos. É preciso ler história, filosofia, literatura. Este homem não precisa ser um erudito nestas três áreas: ninguém o é. Mas deverá possuir um conhecimento mínimo dos grandes momentos da aventura humana.
Zuckerman faz uma longa análise das crenças de um grupo de 1.500 crianças superdotadas - com QI superior a 135 -, em um estudo que começou em 1921 e continua até hoje. Até que ponto uma criança superdotada é um adulto inteligente é algo discutível. Depende se desenvolveu a inteligência infantil durante a vida. Alguém ainda lembra de Mequinho, o enxadrista que chegou a ser o terceiro melhor do mundo nos anos 70?
Em princípio, ninguém duvidaria de sua inteligência. Só começamos a duvidar quando afirma que, após rezar muito conseguiu a a redução de seu grau da miopia, o conserto da sua geladeira e a cura de uma fratura no dedo. Ora, atribuir a um deus – ou a alguma outra potestade a quem se dirija preces – a tarefa de consertar geladeiras é uma grossa ofensa a qualquer deidade.
Sem falar que Mequinho, apesar de seus feitos, parecia não confiar muito em sua inteligência. "Há jogos em que estou para perder, e Jesus e Nossa Senhora me salvam. Claro, nem sempre escapo, senão já seria o campeão do mundo." Conceber o Cristo como enxadrista imbatível até vá lá, afinal se era Deus era onisciente. Mas a coitada da Maria?
É preciso também definir o que se entende por ateísmo. Se por ateu se entende aquele que não acredita em Deus mas na hora do Jesus-está-chamando acende velas a qualquer santo para salvar-se, a pesquisa tampouco tem valor.
Em suma, não tenho a definição dos conceitos envolvidos no estudo. Na falta destes, qualquer afirmação sobre o mesmo é temerária. O que não me impede de algumas considerações sobre ateus e religiosos.
Religião é obra da família, da escola, do Estado. Ninguém nasce religioso. Nascemos todos ateus. É de menino que se torce o pepino. Já nos primeiros anos, mães, pais e professores começam a falar do tal de Deus. Este ateu que vos escreve foi exceção. Meus pais, gente simples do campo, não tinha nenhuma fé. Havia uma vaga crença de que alguém seria responsável por aquilo tudo, e só. Esse alguém poderia até ser chamado de deus, mas ninguém deitava teologia a seu respeito.
Meus pais iam às missas dominicais na capelinha das Três Vendas, na fronteira seca entre Uruguai e Brasil. Como também o faziam os demais camponeses da região. Mas não para cultuar deus nem ouvir o padre. É que a missa era o point do fim-de-semana. Para meu pai era ocasião de encontrar amigos no bolicho, apostar uns cobres numa suerte clavada na cancha de osso. Minha mãe ia fofocar com as comadres, ouvir os chismes e bandalheiras do Ponche Verde e Villa Indarte. Em geral, a missa coincidia com uma penca, e se havia gaiteiro por perto, salão era o que não faltava para um bate-coxa. O culto ao divino servia apenas como pretexto para a vida social naqueles pagos. Vigário era palavra associada a vigarista.
Deus entrou em minha vida por obra de uma catequista uruguaia, Doña Chichi, que arrebanhava a piazada pela Linha Divisória em sua camionete. Ora, andar de auto naquelas plagas era a suprema ventura. Valia bem uma missa. Acreditei na palavra divina mas foi por pouco tempo, uns cinco anos. Bastou-me ler a Bíblia para jogar a idéia de Deus ao lixo.
Não me pretendo nem mais nem menos inteligente do que quem crê. Mas sou mais curioso. Me agrada saber o porquê das coisas. E nunca entendi por que aquele deus matava e mandava mandar. Em sua versão melhorada, o Filho, mandava para o fogo eterno quem não o seguia. Era óbvio que se tratava de criação humana. Na base do ateísmo está sempre a leitura. Nenhum analfabeto é ateu. Nem poderia sê-lo. O ateu é sempre uma pessoa culta.
Na base das religiões está o medo. Medo da morte. A ressurreição foi o grande achado do cristianismo. Paulo sabia disso. Escreve no I Coríntios: “Onde está, ó morte, a tua vitória? Onde está, ó morte, o teu aguilhão?” Para Paulo, se Cristo não ressuscitou, “nossa pregação e nossa fé são em vão”. O apóstolo dos gentios oferece uma resposta fantasiosa aos curtos de curiosidade: ele ressuscitou, nós vamos ressuscitar. Para quem teme a morte e aceita respostas fáceis, tal esperança é presente caído literalmente dos céus.
Nós, ateus, não conseguimos acreditar em tais muletas. Primeiro, porque fere a razão. Segundo, porque vida sem corpo não é vida. Nem pode ser. Se uma pequena lesão no cérebro nos rouba desde movimentos a raciocínios, que ocorrerá quando nem cérebro houver? Ressurreição dos mortos é resposta para simplórios. Como pode voltar à integridade o que apodreceu? Como dizia Jorge Luís Borges, a Bíblia é a primeira obra na História de literatura fantástica.
Ateus, não tememos a morte. Temos perfeita consciência que vida eterna é eterno tédio. Não estamos preocupados com julgamentos finais, muito menos com castigo ou recompensas no além. Quem viu bem no que consiste a desgraça de ser eterno foi Swift. Em suas Viagens de Gulliver, ao chegar na ilha de Luggnagg, encontra uma peculiar estirpe de habitantes, os struldbrugs, seres que nasciam com uma pinta vermelha e circular na testa, em cima da sobrancelha esquerda, sinal infalível de que nunca iriam morrer.
A princípio, o viajante se entusiasma e louva copiosamente tal circunstância, o prazer de presenciar as várias revoluções, o descobrimento de países ainda desconhecidos, a barbárie que devasta as nações mais civilizadas e a civilização que se apodera das mais bárbaras. As louvações são longas e ocupam quase três páginas.
O mesmo não pensam os luggnaggnianos. Os struldbrugs viviam normalmente até os trinta anos. "Depois dessa idade, eram tomados pela tristeza e pelo desalento, que aumentavam até os oitenta. Quando completavam os oitenta, idade tida em Luggnagg como o limite máximo de vida, tinham não só toda a insensatez e todas as enfermidades dos outros velhos, senão muitas outras, nascidas da medonha perspectiva de nunca morrer. Não somente eram opiniáticos, rabugentos, avaros, impertinentes, tolos, tagarelas, mas também incapazes de amizade, e mortos para todos os afetos naturais, que nunca ultrapassavam os netos. A inveja e os desejos impotentes eram suas paixões predominantes. Mas os objetos principais das primeira são os vícios dos moços e a morte dos velhos. Refletindo naqueles, vêm-se privados de toda possibilidade de prazer; e sempre que assistem a um enterro, lamentam e lastimam que hajam outros chegado a um porto de repouso, a que nunca esperam chegar".
"Aos noventa, perdem os dentes e os cabelos; já nessa idade não distinguem nada pelo gosto, mas comem e bebem o que se lhes apresenta sem prazer nem apetite. As moléstias a que estavam sujeitos continuam, sem aumentar nem diminuir. Ao falarem, esquecem a denominação comum das coisas e os nomes das pessoas, até os dos amigos e parentes mais chegados, Pela mesma razão, nunca podem saborear uma leitura, pois a memória não os ajuda a irem do princípio ao fim de uma sentença; e esse defeito os priva do único entretenimento de que poderiam, de outro modo, ser capazes".
"Como a língua deste país sofre contínuas modificações, os struldbugs de uma época não compreendem os de outra nem lhes é possível, depois de duzentos anos, travarem conversação alguma (além de poucas palavras gerais) com os seus vizinhos, os mortais; e têm assim a desvantagem de viver como estrangeiros em própria terra".
Tudo que respira fenece. Ateus, temos perfeita consciência disto. Talvez não sejamos mais inteligentes que os crentes. Mas certamente somos menos covardes.
16 de agosto de 2013
janer cristaldo
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