quarta-feira, 31 de dezembro de 2014

O FRADE E O DEMÔNIO

 


Contos Ancestrais - A Capela do Frade e o Demônio
 
Em uma pequena aldeia europeia, situada nos alpes franceses, há a mais alta concentração de pessoas com mais de cem anos do planeta e quase não se registram mortes por doenças ou acidentes. A população local diz que tudo isso está ligado a uma lenda muito antiga (dizem que da época da Peste Negra na Idade Média) cujos fatos são negados veementemente pela Igreja (ou assim Ela afirma) e ignorados por quase todos os turistas que visitam aquele lindo e pacato aglomerado de construções encravadas numa das mais lindas paisagens que você pode esperar ver.
Os mais moradores da pequena aldeia, ouviram a história (que eles juram ser verdadeira) de seus pais e avós que, por sua vez, a ouviram de seus próprios ancestrais e dos mais ilustres anciãos da aldeia alpina.
A narrativa, que mais tarde se tornaria lenda, tem início pelos idos de 1.349 quando toda a França estava tomada pelo flagelo da Peste Negra e a morte ceifava tantas vidas que o maior cirurgião da época, Guy de Chauliac (médico do Papa Clemente VI), deixou um relato impressionante dos acontecimentos: “A grande mortandade teve início em Avignon em janeiro de 1348. A epidemia se apresentou de duas maneiras. Nos primeiros dois meses manifestava-se com febre e expectoração sanguinolenta e os doentes morriam em três dias; decorrido esse tempo manifestou-se com febre contínua e inchação nas axilas e nas virilhas e os doentes morriam em cinco dias. Era tão contagiosa que se propagava rapidamente de uma pessoa a outra; o pai não ia ver seu filho nem o filho a seu pai; a caridade desaparecera por completo. Não se sabia qual a causa desta grande mortandade. Em alguns lugares pensava-se que os judeus haviam envenenado o mundo e por isso os mataram”.
Dizem os anciãos que nesta época a pequena capela terminara de ser construída pelos monges beneditinos que migraram da Itália e resolveram se estabelecer ali para fundar um monastério. Mas, infelizmente com o avanço da epidemia de peste que assolava o local, a maioria deles morreu durante a construção ou logo depois da conclusão das obras. A capela, que daria origem ao monastério, jamais deixou de ser uma singela capela de pedra e madeira; parecendo destinada a permanecer fechada e abandonada por falta de monges ou padres que aceitassem a indicação para levar conforto e luz aquela comunidade sofrida.
Durante meses, o único habitante da pequena capela era um menino franzino e imundo, que absolutamente nenhum aldeão conhecia ou reivindicava como parente. Mesmo diante de tantas mortes e de tanto desespero, a figura do estranho menino – saído de lugar nenhum – era motivo de discussões, fofocas e maledicências entre os aldeões. Isso, é claro, entre um ou outro lamento, imprecação ou blasfêmia gritada por eles enquanto morriam devorados pela peste.
Em pouco tempo, a figura do menino na capela passou a ser vista como algo sobrenatural e envolto em mistério. Os poucos que ousaram se aproximar dele, mesmo para oferecer carinho, comida e atenção; rapidamente adoeciam e morriam padecendo dos mais horríveis efeitos da praga.
Quando grande parte da população já havia sido dizimada pela peste; uma figura encurvada, baixa, com a pele levemente macilenta e mancando de uma perna chegou às portas da pequena aldeia, vindo do vale logo abaixo.
Era noite; uma noite escura e fria como os braços da morte. O vento soprava violentamente, vindo do coração dos alpes, e feria os que se aventuravam longe de algum abrigo aquecido como se fosse um açoite gelado e impiedoso. Os que ainda viviam naquele lugar maldito nem notaram sua chegada. Apenas os três condenados obrigados a trabalhar dia e noite, desocupando as casas dos mortos removendo os cadáveres que se amontoavam nas habitações, o viram chegar e se instalar na pequena capela.
Por isso mesmo, quase todos se surpreenderam quando a manhã chegou e se depararam com aquele homem de aparência tão insignificante e doentia varrendo o interior da pequena capela, enquanto era observado com evidente curiosidade e contrariedade pelo menino.
O velho coxo se aproximou dos aldeões e os convidou, com um sorriso cativante, a entrar na capela:
- Venham meus filhos. Venham rezar para que Deus nos livre do Flagelo Negro. A Casa de Deus está aberta para todos; basta que entrem, se acomodem, se arrependam de seus pecados e renunciem ao mal.
A pequena multidão que já se aglomerava às portas da capela fez menção de entrar, mas se deteve ao receber um olhar zangado do menino. Do meio daquela gente toda, uma voz anônima gritou quase como se suplicasse por socorro:
- Quem és tu velho? Como chegastes aqui? Se veio de Deus expulsa esse fedelho maldito para que possamos entrar.
O frade respondeu, com o mesmo sorriso cativante:
- Meu nome é Irmão Darius. Sou um frater franciscano vindo dos arredores de Assis. Meus superiores relutaram em me entregar este posto. Só quando revelei ser a ordem de um anjo, vindo até mim num sonho, eles deixaram que eu viesse – Diante do silêncio de todos, continuou – Quanto a expulsar alguém da capela… sinto não poder fazer isso. Todos são bem-vindos na Casa de Deus. Seja quem for e venha de onde vier.
A turba continuou vociferando e xingando o pobre garoto, enquanto se afastavam recusando-se cruzar o limiar da entrada e a pisar no interior da capela.
O velho frade simplesmente sorriu e deu de ombros. Continuou varrendo o chão e limpando os bancos da capela como se nada tivesse acontecido. Em dado momento, aproximou-se do menino e perguntou-lhe se estava com fome. O garoto fez que sim com a cabeça e, sem dizer uma única palavra de agradecimento, esticou os braços para apanhar o naco de pão e de queijo que o frade retirara de um pequeno farnel repousado num banco próximo.
 
Contos Ancestrais - O Frade e o Demônio
 
Em silêncio, ambos comiam e se encaravam como se fossem oponentes se estudando antes do combate. O velho frade, ao contrário do menino, mantinha seu semblante sereno e seus lábios levemente apertados em um sorriso amistoso e cheio de uma compaixão sincera. Em dado momento, o velho resolveu falar direta e sinceramente ao menino:
- Sei quem tu és é e o que fazes aqui. Mas, não tenha medo. Fui mandado para te ajudar.
O menino continuou comendo em silêncio.
- Você acha que punir ou atormentar essa pobre gente supersticiosa e ignorante vai representar alguma vitória para você? Sua incapacidade de compreender que o mal causado aqui, apenas aumenta ainda mais sua angústia e seu desespero e jamais lhe permitirá sentir qualquer satisfação ou amenizará a dor que sente – continuou o velho como se falasse com uma criança birrenta – por estar preso às trevas que tanto odeia. Arrependa-se, fale comigo e se liberte da escuridão de uma vez por todas. Nosso Pai te espera de braços abertos há muito tempo.
Por um instante o menino continuou impassível. Mas, numa explosão de raiva, ele olhou diretamente para o velho frade. Seus olhos estavam dilatados e avermelhados, transparecendo uma fúria ancestral imprópria a uma criança tão jovem. Sua voz soou grave, poderosa e encheu a capela com um misto de raiva incontida, desejo assassino e o mais puro desdém:
- Quem pensa que és, velho? Me toma por um reles maldito que se curva diante de seus encantos recitados e de sua baboseira cristã? Tu apodrecerá e sucumbirá a peste, como todos os outros, enquanto eu me alimento de sua dor e de suas blasfêmias inúteis. Não conseguirá me destruir e nem me devolver ao Abismo. Eu estava aqui antes do seu Mestre escravo e ainda estarei neste mundo muito tempo depois dele ter sido esquecido.
O velho frade manteve o sorriso e, com tranquilidade e fé inabaláveis, sussurrou junto ao ouvido do menino:
- Sei muito bem quem és criatura. Tu és o Terceiro dos Três. O Príncipe dos Demônios. O senhor das Moscas e da Pestilência – e, para surpresa do “menino”, sentenciou gravemente – Tu és Belzebu, o que se curva apenas diante de Lúcifer e de Satan.
Tendo sido exposto em sua verdadeira identidade, mostrou-se surpreso ao ouvir seu nome proferido pelo frade – “Como sabes o meu nome sem que me obrigues a revelá-lo? O que és tu velho? Acaso és um Sentinela (*), posto no mundo por aquele a quem chamam Jesus – o seu mestre escravo – para nos caçar implacavelmente? Vieste mesmo tentar me destruir e atormentar? Mesmo podendo perceber em ti “A Luz dos Justos” não és investido com o poder do Sentinela. Tua real identidade me escapa. Iguala as vantagens e revela-te, de uma vez por todas, espírito luminoso que me persegue” – Falou quase atropelando as palavras e refletindo uma profunda irritação.
O frade não se conteve e riu gostosamente, diante do medo exalado por criatura tão poderosa. Quase sem fôlego; abraçou o demônio ainda na forma do menino e, rindo a valer, pediu que ele se acalmasse: “Não. Nada tenho a ver com um Sentinela. Não vim aqui perseguir-te. Vim apenas conversar contigo; ouvir teus lamentos; tuas dores e oferecer o refrigério que buscas. Estou aqui porque a Casa do Pai é feita para o pródigo; para o pecador; para o imundo e para aquele que cansou de praticar o mal. Estou aqui por você irmão”.
O demônio emitiu um rosnado e depois, completamente transtornado, uma série de maldições que o frade foi incapaz de entender; deu as costas ao velho e resmungou mais irado ainda: “Como te atreves a chamar-me de irmão, reles criatura de carne? Tu serás pó muito antes de eu libertar essa aldeia ou me curvar a tua vontade ou a do escravo a quem chamas de mestre”.
Do lado de fora da pequena capela, os gritos, os urros, as maldições e o enorme barulho que vinha do interior da construção – além de um fedor indescritível – podiam ser ouvidos e sentidos por toda a aldeia. Esquecendo-se de seus sofrimentos por algum tempo, os aldeões se acotovelavam diante da capela e dispensavam sua total atenção ao estranho diálogo que se desenrolava no interior do prédio. Sentados no chão, empoleirados em galhos, de pé na rua ou ajoelhados e unidos numa prece fervorosa, prestavam máxima atenção a cena inusitada e pediam a Deus que os livrassem daquele mal e libertasse o povo da pestilência e daquele demônio tão poderoso.
Conta a lenda que aquela estranha e decisiva conversa se estendeu pela manhã; invadiu a tarde e ultrapassou a noite chegando até a madrugada. O poderoso demônio e o frágil frade franciscano duelando filosoficamente numa batalha entre o bem e o mal como nunca havia sido visto ou sabido antes. Em dado momento, pouco antes do raiar do sol, todos puderam ouvir o velho frade dizer:
- Nosso amado Pai me enviou para oferecer-te a paz e um lugar no Paraíso. Basta que renegue o mal e se arrependa. A mim foi dada a autoridade de mostrar-te um caminho para a luz e de mim tens a esperar apenas uma palavra amiga, compaixão e a amizade pura. Seja qual for a tua escolha neste momento; saibas que aqui sempre terás um refúgio e um abrigo. Velarei por teu retorno e pelo teu arrependimento. Assim como aqueles que virão depois de mim e te aguardarão de braços abertos, com os corações repletos de perdão e a promessa de paz garantida. Lembra-te de que é para seres como tu que a Palavra foi dita.
O demônio, ainda habitando o corpo do menino, dirigiu-se ao velho frade em um tom comedido e cheio de respeito genuíno:
- Velho; se houvessem mais homens como ti, nós estaríamos nos curvando a vontade dAquele que nos baniu do Paraíso por nossos crimes. Tu és justo e bom. A Luz resplandece em ti com poder além do imaginado. Mas, nada fiz de que me arrependa e nada tenho de que me envergonhar. Sou o que sou e construo a obra para a qual fui comandado – e ainda falando com o velho frade, mas erguendo-se e se voltando para a multidão que assistia a tudo, completou – Como resposta a tua bondade, a tua fé e a tua gentileza comigo, de hoje em diante esta aldeia estará livre da pestilência e da morte prematura. Nem eu, nem meus irmãos voltaremos a pisar nesta terra enquanto o sol bilhar e a lua percorrer o horizonte.
Dizendo isso, assumiu sua verdadeira forma grotesca; curvou-se em direção ao frade e sussurrou algo em seus ouvidos para, em seguida, desaparecer no ar tão misteriosamente quanto surgiu.
Imediatamente, todos os que estavam doentes ficaram curados. As dores, os lamentos, as blasfêmias e as feridas pútridas foram silenciados e curados. Um suave perfume de rosas tomou conta da pequena capela onde o velho ainda estava sentado em um banco. Um sorriso iluminava seu rosto e lágrimas rolavam por sua face. Os aldeões invadiram aquele solo, agora santificado, e perguntaram ao velho frade o que o demônio sussurrara em seus ouvidos.
Chorando copiosamente, o frade franciscano voltou-se para os que o interrogavam e respondeu:
- Ele disse que um dia, quem sabe, talvez fizesse o que eu lhe pedira.
Desde aquele dia, ninguém mais adoeceu ou morreu antes de seu tempo, naquela fria aldeia perdida no meio dos Alpes Franceses.
 
31 de dezembro de 2014
Arthurius Maximus

Nenhum comentário:

Postar um comentário