quarta-feira, 28 de outubro de 2015

AS ESPETACULOSIDADES

Tempos de estupefação, de engodos, mentiras... Tempos de charlatães.
Viver é difícil. Respirar é difícil. Há nojeiras por toda parte. Já não podemos mais crer, sob pena de cair nas armadilhas dos traiçoeiros que mandam, desmandam e comandam toda sorte de horrores e barbaridades.
Um tempo morno, em que nada se define, e onde todos os caminhos perderam-se nas infindas curvas. Tempos sem horizontes. Tempos de cegos guiando cegos. 
Leio em Mario Vargas Lhosa, no seu livro "A civilização do espetáculo", o certeiro diagnóstico do que aconteceu e se perpetua, até que nada mais sobre, até que todos os Nortes estejam perdidos.
Tempos de estardalhaços, afogados que estamos nos intermináveis entretenimentos que sufocam o espírito, que o afogam na mediocridade, que lhe roubam o futuro, hora após hora, dia após dia, num carrossel incessante, entorpecedor, como se tivéssemos uma vida inteira pela eternidade, nos fazendo esquecer que a vida é um relâmpago entre dois abismos, entre dois silenciosos estados de eternidade.
Refletindo sobre o que diz Mario Vargas Lhosa, descobrimos o abismo em que caímos.
Que simplesmente abolimos as fronteiras entre a cultura e a incultura. Assim, como se não precisássemos de um divisor.
Conferimos dignidade relevante ao inculto, a boçalidade, a mediocridade, a vulgaridade.
Com medo de incorrer no "politicamente incorreto" desmanchamos os limites entre Cultura e incultura. Hoje ninguém mais é inculto, ou melhor, somos todos cultos...
Se passarmos os olhos num jornal, ou numa revista, com o que nos deparamos? Com a "cultura da pedofilia", a "cultura da maconha", a "cultura punk", a "cultura estética do neo-nazismo" e outras assemelhadas. Banalizou-se a natureza dos gêneros. Podemos escolher o que desejamos ser ainda em tenra idade: masculino ou feminino? Homem ou mulher?
Agora somos todos cultos, pertençamos ou não a alguma 'tribo'. Agora somos todos cultos, mesmo que não tenhamos lido livro algum. Mesmo que sejamos analfabetos funcionais, somos todos cultos.
Não ter ido a uma exposição de pintura, assistido a um concerto, adquirido alguns conceitos básicos de humanidades, científicos ou tecnológicos da  cultura que organiza o  conhecimentos do nosso mundo, ainda assim, somos todos cultos.
Um poeta como T.S.Eliot e um romancista como James Joyce, podemos afirmar ser uma leitura para poucos, ou para uma elite intelectual. Já Ernest Hemingway, ou o poemas de Walt Whitman são acessíveis aos leitores comuns. 
Temos aí uma fronteira. Aboli-la, significa extinguir, pela lei do menor esforço, Eliot e Joyce. O que fizemos...
E ainda assim, no atual estágio em que nos encontramos de vulgarização e vulgaridade, o exemplo já não cabe como fator de distinção entre cultura e incultura (já que seria um exagero considerar Hemingway um "passatempo" inculto). Basta perguntar: quem leu Hemingway? Ou melhor quantos ainda lêm Hemingway? E teremos a resposta.
Tempos de tsunami político, social, cultural, estético, filosófico. Uma grande onda está varrendo a cultura ocidental, e entre os destroços, sobram as tais "culturas". Agora é um tempo de valorizarmos o corpo com tatuagens, não a inteligência. Agora é um tempo de sobrevivermos tribalmente, de abandonarmos a identidade, o singular, e cairmos no plural, no politicamente correto.
Radicalizamos. Liquidamos a elite pelos ideais igualitários, E como Pirro, tivemos a nossa vitória. Para o diabo a cultura clássica! De que nos serve conhecer a história de Roma? Ou Suetônio? Ou os moralistas franceses? Ou o iluminismo?
Já ouço alguém dizer que nunca na história da humanidade alcançamos tão altos patamares científicos e tecnológicos. Nunca se publicou tantos livros. Nunca tivermos tanto acesso aos Museus como agora...  Para não falarmos  na internet.
Como é possível falar num mundo sem cultura, numa época em que as naves espaciais viajam pelo espaço entre as estrelas? Num tempo histórico em que se reduziu drasticamente o analfabetismo?
Mas tudo isso não é obras da cultura, mas da especialização.
Entre cultura e especialização há uma distância milenar, semelhante a do homem de Cro-Magnon e os sibaritas neurastênicos de Marcel Proust.
Pesa pouco o maior número de alfabetizados no nosso tempo histórico, visto que os aspectos quantitativos não servem à cultura, cujo parâmetro é qualitativo.
Estamos falando de coisas diferentes...
A extraordinária especialização científica que alcançamos, nos permitiu construir um arsenal de armas de destruição em massa, com a qual poderemos destruir muitas vezes o planeta. O que possivelmente acontecerá, pelo andar da carruagem.
Trata-se de uma incrível façanha científica e tecnológica, de que nos orgulhamos e que nos aproxima da barbárie que assistimos nos telejornais. 
Uma incrível façanha que nos distancia da cultura e nos aproxima da anticultura.
Cultura é - ou era, quando existia - uma bússola que nos guiava na escuridão buscando organizar prioridades e clarezas. Edificação do quintal humano. Construção de um corredor de comunicação com outras culturas, povos, civilizações.
Na era da especialização, derrubou-se a cultura, destruiu-se as hierarquias, o fundamento essencial da organização humana.
O especialista é um ser unidimensional, solitário, isolado dos seus semelhantes pelo seus conhecimentos.
Vivemos um tempo que ignora a estética, a beleza, que ignora a arte, que ignora a clássica idéia de cultura. Um tempo de dissolução. Um tempo de desperdício da vida, dos sentimentos, do amor. Vivemos um tempo de promiscuidade.
T.S.Eliot disse que cultura não pode ser identificada
 com o conhecimento. Ele via nos valores da religião cristã a base do saber e da conduta humana, que ele chamava de cultura.
A partir de diferentes trincheiras, operamos o desmonte e contestamos o corpo social que regia o nosso grupamento humano. Era demasiado "conservador" para os "progressistas". Quebramos a coluna das hierarquias e ficamos corcunda.
Destruímos os valores morais, os saberes, os costumes, a elegância intelectual, o bom gosto e mergulhamos de cabeça no caos. Mergulhamos na confusão e no desnorteamento. Destruímos os caminhos. Não há mais sequer veredas. Criamos o vale-tudo.
Vou lembrar Drummond: 
"E agora, José? 
Que a festa acabou, 
a luz apagou, 
o povo sumiu, 
 noite esfriou, 
e agora José?"

28 de outubro de 2015
m.americo
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