quarta-feira, 11 de abril de 2018

ALEIJADINHO, UM MITO?

Livro mostra como a história adotou uma falsa imagem do escultor, ícone da brasilidade

Polegares na mesma posição dos outros dedos, olhos amendoados, furo no queixo, nariz afilado, maçãs salientes, bigodes bem delineados e barba partida no queixo. 
Para o historiador francês Germain Bazin (1901- 1990), essas seriam as características que identificariam o estilo de Aleijadinho entre tantos mestres esquecidos do barroco mineiro. 
O próprio Bazin atribuiu a ele a autoria do Cristo Flagelado, hoje pertencente ao acervo do Museu da Inconfidência, em Ouro Preto. Errou feio, justo quando se fixava o padrão estilístico do "Michelangelo mineiro". 
Esse Cristo não tem furinho no queixo e os fios de sua barba não são tão certinhos quanto gostaria Bazin, que depois reconheceu a falha. Ele, contudo, não foi o primeiro nem será o último a errar. Guiomar de Grammont, a autora do livro O Aleijadinho e o Aeroplano (Editora Civilização Brasileira, 322 págs., R$ 45), defende que não só os métodos de análise atributiva são equivocados como as provas documentais a respeito do escultor são insuficientes para atestar a autenticidade de qualquer uma de suas obras. 
Todo esse esforço para sobrevalorizar Aleijadinho é inútil, diz ela. Aleijadinho não foi um. Foram vários. A tese da escritora caiu como uma bomba em território mineiro. Ela passou o último mês enfrentando olhares oblíquos de críticos e colecionadores que, de uma hora para outra, viram cair por terra seu herói colonial disforme. 
A imprensa mineira viu com antipatia o estudo da acadêmica, professora de Filosofia da Universidade Federal de Ouro Preto, sobre esse ícone da brasilidade, a ponto de um jornal de Belo Horizonte estampar na manchete "Ela quer matar Aleijadinho". 
Exagero, claro. Orientada pelo francês Roger Chartier, do Collège de France, e pelo professor João Adolfo Hansen, da USP, Guiomar de Grammont só queria estudar a construção de Aleijadinho como mito brasileiro. Acabou comprando uma briga dos diabos ao dizer que Antônio Francisco Lisboa (1730-1814), o herói cultural barroco, pode não ter sido o artífice que o Brasil conhece, mas um mito inventado pela astúcia do Império, instrumentalizado pela ditadura do Estado Novo e saudado pelos primeiros modernistas, sobretudo por Mário de Andrade, como o herói miscigenado, o gênio da raça, o mulato genial que desafiou os padrões europeus e transgrediu as normas para criar uma arte autenticamente brasileira. 
O protótipo do brasileiro mestiço, doente, que supera suas limitações para mostrar ao mundo sua genialidade sempre serviu aos governos e à construção da chamada identidade nacional, especialmente depois do golpe de Estado de 1937. Não se deve esquecer que o Serviço de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Sphan) foi criado duas semanas depois e investiu com tudo na busca de documentos relacionados à figura de Aleijadinho, que teve sua primeira biografia oficial assinada em 1858, 44 anos após sua morte, por Rodrigo José Ferreira Bretas. 
É a mesma biografia que a professora mineira dissecou para provar que seu autor "incorporou" dados da vida de Michelangelo contada por Vasari em sua fantasiosa obra. A professora questiona desde a paternidade do artista - atribuída ao arquiteto português Manuel Francisco Lisboa para que ele fosse aceito pelo Segundo Reinado -, até a doença contagiosa (sífilis, lepra?) do "Quasímodo brasileiro", por falta de provas documentais. "O que se pode concluir é que a biografia de Bretas foi feita para receber o prêmio do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, outorgado pelo próprio imperador Pedro 2º, e que os documentos posteriormente reunidos pelo Sphan são apêndices da biografia", diz a autora. "Não dá para afirmar que Aleijadinho era filho de Lisboa ou que ele tenha sido arquiteto." 
O escultor é uma invenção romântica e nacionalista de Bretas, defende a autora. Como um Victor Hugo dos trópicos, o biógrafo forjou a imagem desse Quasímodo tropical, que supera sua deformação física para atingir a dimensão espiritual do gênio, uma imagem construída para servir aos interesses políticos de distintas épocas, de Pedro 2º a Vargas. O próprio título do livro brinca com o anacronismo ao associar o Aleijadinho à figura do aeroplano, a exemplo do que fez há um século o conde Affonso Celso, definindo o artista como um visionário capaz de saltar no espaço, à maneira de Santos Dumont, em busca do novo, um Da Vinci pronto para realizar o sonho renascentista em Vila Rica, ao construir igrejas, esculpir profetas em pedra sabão, santos em madeira e miniaturas (com as mãos deformadas?) de madonas. 
O Aleijadinho que todos conhecem seria, portanto, um personagem de ficção criado por Bretas na biografia adotada por outros historiadores. Se os modernistas viram nele o signo da diversidade, o herói étnico fundador da nacionalidade e que canibalizou a arte européia para criar uma cultura híbrida, o Estado Novo Novo fez dele o protótipo do brasileiro que superou as diferenças raciais e culturais. Para Guiomar, no entanto, ele não foi um, mas vários brasileiros. 
A professora rejeita o conceito de autoria - típico do século 19. O escultor simplesmente teria de viver dez vidas para esculpir todas as obras a ele atribuídas. Ou dividir com outros artífices a tarefa, hipótese mais provável. Aleijadinhos há muitos, diz ela. E não apenas nos museus e nas casas dos colecionadores. Ela só "desconstruiu" sua história.

11 de abril de 2018
Antonio Gonçalves Filho, O Estadao de S.Paulo

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