sábado, 20 de agosto de 2011

O TEMPO DA DOR


Quando senti a boca latejando, imaginei que o pior estava por vir. Havia mais de um mês o dente se quebrara quando, em vez de pipoca, mastiguei um milho. E eu protelava ao máximo a ida ao dentista.

Passava a língua e sentia a cratera formada. E tinha sempre a preocupação de dar uma boa escovada, como se isso bastasse para manter a casa limpa... Mas quando senti a gengiva pulsando, percebi que minhas festas de fim de ano poderiam ser tenebrosas. Nada como o incômodo e pontiagudo dedo do destino para me fazer caminhar.

A dor, quando não dói tanto, passa a ser muleta. Mas quando é dor doída, vira esteira, pois faz a gente sair do lugar. Assim é nas dores do corpo e da alma; tanto quanto maior o impacto e o sofrimento, maior a possibilidade de evoluir e se transformar.

Tinha também uma outra dorzinha que estava me incomodando já havia mais de ano; esta, no ombro. Mas era dor morosa, intermitente, que não me atinava a fazer coisa alguma. Só me servia de desculpa, e nunca de estímulo. Foram necessários doze meses até que eu fosse ao ortopedista me consultar. E mais um mês até que eu fizesse os exames necessários, e ainda outros dois até que eu os levasse ao doutor para escutar o diagnóstico: Tendinopatia Subescapular no ombro esquerdo. Receituário: antiinflamatório e fisioterapia. – “Não se preocupe, pois é um tratamento revolucionário, extracorpóreo”, disse o homem de branco.

O tempo passou sem que a dor o seguisse, preferindo o aconchego do meu ombro. Junto a mim, além de não ser incomodada, ganhara ainda a companhia da dor do dente quebrado.

Resolvi agir. Marquei a primeira das três sessões e descobri que o tratamento revolucionário era patenteado por um israelense sádico. Afinal, o que dizer de uma máquina que emite choques contundentes durante intermináveis 15 minutos? Não era nada comparado à via-crúcis de Cristo, mas não perdia em nada para um Rambo em mãos vietcongues.

Após a primeira sessão - não vou mentir - deu um alento danado! Fiquei feliz por perceber que as coisas mudam quando nos esforçamos para tal; até meti um sorriso na cara! E resolvi encarar o buraco no dente.

O sorriso logo se transformou em testa franzida ao escutar a avaliação da dentista: “- Ih... Quebrou até a gengiva e esse molar é muito grande; não tem como fazer nova obturação. Vou fazer um canal.”

Enquanto ela falava sobre canais e tais, não percebi o menor remorso em suas palavras. Ao contrário, senti que ela até se excitou com essa possibilidade. Com certeza era daquelas cedeéfes que gostavam de resolver cálculos complicados e que achavam História e Geografia “coisa de aluno vagal”. Era uma mineirinha feiosinha de uns 45 anos – daquelas com cara de quem sente muito prazer; de dia trabalhando; de noite gozando.

Coincidência ou não, foram necessárias três sessões para extirpar até o último nervo de meu ex-sólido molar. Ora estava na cadeira da dentista, entre anestesias e angústias, ora estava na cadeira do fisioterapeuta, entre eletro-choques e enfermeiras sorridentes. O doutor Roberpaulo parecia muito interessado na máquina de tortura israelense, pois olhava para ela com uma doçura que não dispensava às moças. Já na segunda sessão, me elogiou e disse, calmamente, que aumentaria a voltagem: - “Já podemos começar com o 'nível II', pois você resistiu bem!...”, exclamou! “Acho que dá para chegar ao quinto nível ainda hoje!”

- O senhor é de Minas?, perguntei.
- Não, mas fiz minha especialização em Belo horizonte. Nasci em Piracanjuba, no Goiaz...
- Conheço! Próximo a Caldas Novas. Tem uma pracinha bonitinha, com coreto e charrete para os turistas, não é? Ambiente tranqüilo...
- Já foi assim. Hoje tá cheia de maconheiro... Depois que a droga chegou lá, a meninada só que fazê fumaça.
- Normal...

De vez quando, a máquina se irritava e soltava uma carga elétrica duas, ou até três vezes mais potente! Aquilo doía. Dava vontade de bater em alguém, de tanta raiva. Mas o Doutor Roberpaulo olhava para sua máquina com tanto apreço que eu me compadecia e logo esquecia, voltando ao conversê sobre o fumacê.

Pensava em chegar ao fim do ano “novinho”, sem problemas de saúde, reciclado. Mas fatos novos apareceram para enaltecer minha provação.

Era dia de festa, churrasco e bebedeira. Música de qualidade. Pôr do Sol. Fotos lindíssimas de reflexos solares e sombras inebriadas. De repente, o som, o batuque na madeira, a excitação e um maldoso prego de ponta-cabeça na palma da mão. Sangue, decepção.

Hospital, espera, injeção.

Não há de ser nada. Ademais, eu havia de estar preparado e bem disposto para fazer a mudança. Dois amigos, no entanto, não foram suficientes para amainar o peso do fogão – um legítimo Brastemp, 6 bocas, de 35 primaveras. O mal jeito me pegou bem, e minha coluna amanheceu enferma. Logo a dor de alojou entre as costelas e bastava respirar para que eu visse estrelas. Sorte que o antiinflamatório do Doutor Roberval ainda fazia efeito: servia para o ombro bichado, para o dente estragado, para a mão perfurada e, agora, para a coluna entrevada.

Uma dor me fazia esquecer a outra. Mas esta nova, a da costela, me deixava triste, de querer chorar e chamar pela mãe. Logo eu, que sempre adorei dar um espirro gutural, não podia sequer pensar em bocejar! Parecia a seta do demônio rasgando minhas vísceras!

Logo, surgiu a idéia de que poderia ser gazes. O remédio que comprei era gostosinho – de framboesa – e me fez soltar um monte de puns. Mas a dor permaneceu ainda por uma semana. Perdi boas horas de sono por conta dela.

Então, de repente, não mais que de repente. Todas elas sumiram! O dente está restaurado, a mão curada, o ombro recuperado e a costela enjeitada.

Um novo ano se avizinha, e ainda que eu não tenha a mesma empolgação de menino, estou com o espírito renovado. Não somente em 2010, mas em 2000 e sempre, estarei presente; mais contente e resistente. Não por conta do corpo, que padecerá inexoravelmente, mas pela experiência vivida, pelas coisas passadas e aprendidas.

Viver dói, mas é gostoso demais.

Vislumbrado por O Maltrapa

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