sábado, 20 de agosto de 2011

TELENOVELA: UMA REFLEXÃO SOBRE LITERATURA

“Literatura é profunda, tem seu tempo de preparo. Não creio que novela seja uma forma de literatura. Mas esta comunicação é permanente. E por dialogar com a literatura, a novela contribui muitíssimo para a educação da sociedade também” (Walcir Carrasco).

“Escrever literatura, para mim, entretanto, é um gesto simbólico que traz uma exigência: a de ser de qualidade” (Alcir Pécora).

“Já a literatura mediana não serve para nada. É a negação mesma da literatura, cuja primeira exigência é a de se justificar (justificar a própria presença) face aos outros objetos de cultura” (Alcir Pécora).

A literatura do autor de novelas Walcir Carrasco traz de volta o tema da pobreza, como qualidade. Digo literatura, apesar do próprio autor não considerar escrever novela como sendo literatura. Porém, se não for literatura, será o quê? Seria a negação da literatura, como salienta Alcir Pécora? Seria a novela literatura, pois se justifica pela contribuição para a educação da sociedade? Prefiro entender novela como literatura, simplesmente porque é expressão artística, por meio da palavra escrita. Tecnicamente, pode até não ser tão perfeita, mas a qualidade não está na sua justificação, mas na sua expressão de arte. E arte emociona ou não emociona, independente da melhor técnica.

A “literatura disfarçada”

Há uma frase interessante do escritor Gore Vidal que, além de romancista famoso, escreveu vários roteiros. Vidal afirma: “Cinema é roteiro. Uma coisa é certa: o roteiro é fundamental para o filme. Assim como para o corpo humano, uma boa e simétrica estrutura óssea é que vai permitir ao corpo ser bonito e atraente, no cinema isso é feito pelo roteiro” (Rubem Fonseca).

Cinema é roteiro. Cinema é literatura, assim como a novela.

“Erudito é também quem cultiva a terra. Ou o tocador de pífaros, que conheci em Cocorobo. Ou o romeiro do Padre Cícero. Buscar o diálogo é uma tarefa crucial no Brasil de nosso tempo, não há dúvida alguma. Ouvi uns poetas do Tadjiquistão, falando numa língua própria seus poemas. Não compreendi nada. Mas foi uma das grandes experiências de minha vida. Não entender é uma forma de entender. Era cultura popular. Eram poetas populares. Porque a cultura é eminentemente popular” (Marco Lucchesi).

“Há muita gente interessante pensando o contemporâneo e pensando literatura. Fico imaginando se essa não será uma forma de literatura disfarçada. Uma nova máscara da literatura” (Alcir Pécora).

Os teóricos não fazem arte, precisam da arte mesmo que mediana para construir a sua “literatura disfarçada”. Essa mesma “literatura” deixa de usar máscara quando emociona – agora, então, será expressão artística.

O caminho do trabalho honesto

“São duas linhas de texto que abalam minha autoestima: serei eu competente o suficiente para escrever um artigo? Acredito que sou, se comparado a estudantes do ensino médio, porém não devo ser tão bom ou experiente quanto alguém com doutorado. E agora? Meu texto é um artigo para uns e para outros não? Seria então um comentário?” (João Vicente Kurtz)

“Limitar o texto jornalístico às formas da teoria dos gêneros é cortar as asas do jornalista ou, na melhor das hipóteses, dizer para onde ele deve voar” (João Vicente Kurtz).

“Nas vanguardas não há uma separação de trabalho tipo `o poeta é poeta´, o `teórico é o crítico´. Assim, o poeta experimental é quem faz a melhor teoria da experimentação, enquanto faz a teoria, faz a sua verificação prática, e enquanto cria, faz suas elaborações teóricas” (Renato Barilli).

“Nesse sentido, pode-se lançar mão do conceito do new criticism norte-americano que dizia que a poesia válida é a `inclusiva´, que inclui o mais que pode, e não a `exclusiva´, que elimina as outras formas e linguagens” (Renato Barilli)

Retornando à reflexão, senão terei que mudar o tema. Os personagens pobres das novelas de Walcir Carrasco são leais, dignos e, na maioria, com sabedoria superior, ensinando aos ricos como viver melhor. Tanto em O Cravo e a Rosa, Alma Gêmea, Chocolate com Pimenta, Morde e Assopra como em Caras e Bocas. As protagonistas são pobres ou perderam tudo, porém o importante é a firmeza em reconquistar seus bens pelo caminho do trabalho honesto. É retratada, com muito orgulho, a origem humilde de seus personagens. Inclusive, com exaltação da linguagem peculiar dos personagens, devido ao universo em que vivem.

“O heroísmo de verdade”

Os ricos, na novela do autor Walcir Carrasco, são ridicularizados pelos seus defeitos mesquinhos, mostrados como fracos e dominados pelos vícios, principalmente, ao dinheiro. São os bárbaros. Existe um conflito claro entre as classes pobres e os poderosos. Quando muito, pobres que gostariam de viver como ricos são humilhados por estes. Esta divisão é marcante em suas obras, muito mais do que em qualquer outro autor de telenovelas. Não querendo dizer com isso que não haja personagens ricos e generosos. A maioria não o é. É como se estivéssemos assistindo a sermões de padres tempos atrás. Quando a igreja católica considerava os ricos indignos do paraíso.

Esse resgate da autoestima dos pobres, fazendo com que a pobreza não seja vista como defeito, com culpa ou vergonha por não estar na moda e nem poder participar dos bens de consumo, é socialmente relevante nos nossos dias e em nosso país, tão afeito às aparências e ao tudo posso quando tenho como comprar. Contribui para a educação, como dito no início da reflexão, pela própria declaração do autor Walcir Carrasco.

“A pobreza consiste também num compromisso, numa sociedade secreta, num juramento eterno e mudo. Os pobres não desejam apenas uma vida melhor, não, os pobres desejam autoestima, a consciência de que, por viverem uma grande injustiça, o mundo os respeita como se fossem heróis. E são heróis de fato; agora que envelheço, sei que eles são os únicos heróis, os heróis de verdade. Todo heroísmo diferente é ocasional, imposto ou vaidoso. Porém o fato de uma pessoa ser pobre durante sessenta anos e cumprir sem palavras todas as obrigações que a família, a sociedade, impõem a ela, e, ao mesmo tempo, continuar humana, reverente, quem sabe bem-humorada e piedosa, constitui o heroísmo de verdade” (do livro De Verdade, do húngaro Sándor Márai).

Precisamos reconquistar o sublime

Os valores da classe pobre precisam ser reafirmados como válidos, mesmo em um mundo capitalista. Não significando maldizer a riqueza, mas reconquistando a grandeza também da pobreza, pelos valores morais que ela tem para sobreviver em sociedade. Não estou tratando neste ponto de política, de luta entre classes. Mas, de moral, ética. Reassumir o papel dos pobres como diferencial, referência de viver com alegria, com menos pelo mais em sua fé.

Como glamourizar o ser e não o ter? A meu ver, como faz Walcir Carrasco.

“Quando um povo já não tem nenhum preconceito no sangue, só lhe resta como último recurso, a vontade de desagregar-se. Imitando a música, essa disciplina da dissolução, despede-se das paixões, da dissipação lírica, do sentimentalismo, da cegueira. A partir de então, já não poderá adorar sem ironia: o sentimento das distâncias será para sempre seu atributo” (Emil M.Cioran)

Precisamos resgatar o sentimentalismo? A consciência individual cega, necessário ter certa repulsa ao dinheiro, melhor ao seu excesso, ao vale tudo para obtê-lo. Olhar com menos respeito pelos ricos, sem pregar o preconceito, olhar mais com piedade do que com admiração. Caminhar de volta ao meio, deixar os extremos do antigo preconceito aos ricos ou do atual preconceito aos pobres. Conquistar o equilíbrio entre ter e ser.

“Toda refeição que ultrapassa em duração os escassos minutos e, em iguarias, o necessário, desagrega nossas certezas. O cristianismo apareceu: um só deus – e o jejum. E a era do trivial e do sublime começou…” (Emil M. Cioran)

Perdemos o trivial? Precisamos reconquistar o sublime.

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[Kátia Ribeiro de Oliveira é advogada, Belém, PA]

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