O Prosa & Verso, caderno literário do Globo, trouxe no sábado passado um excelente artigo do psiquiatra e psicanalista Orlando Coser.
Ele tratou de um assunto que venho considerando também, já há algum tempo, por um viés, digamos, mais antropológico. Trata-se da invenção de doenças pelo mercado farmacêutico e a indústria médica.
No artigo, Coser, com uma clareza espetacular, analisa a profusão de lançamentos de tranquilizantes, antidepressivos, estabilizadores, neuromoduladores, enfim psicotrópicos que, alardeados como anjos que trazem redenção, acabam por alterar a percepção de médicos, psiquiatras, pacientes, farmacêuticos, entre outros, sobre as enfermidades mentais. A coisa é tão forte, que se chega ao ponto de inventar novas doenças, ao criar nomenclaturas e novas descrições para sintomas.
Coser é muito preciso ao afirmar como medicamentos, inicialmente usados em casos severos de esquizofrenia, se tornaram cada vez mais acessíveis e disseminados. A introdução dos psicotrópicos trouxe, do ponto de vista antropológico, uma inversão importante na gênese dos estados mórbidos ou eufóricos: não é o sintoma que provoca alterações psicoquímicas no cérebro, e sim o inverso.
Difundiu-se, de forma bastante lucrativa para as indústrias que produzem esses remédios, a idéia de que esses distúrbios são tratados e resolvidos mediante o consumo de pílulas guardadas em caixinhas com tarja preta, que milagrosamente vão equilibrar hormônios, deficiências ou excesso de agentes neuroquímicos e, assim, "curar" o paciente.
A Associação Mundial de Psiquiatria, sob forte influência americana, inclusive mudou os nomes das enfermidades: em vez de neurose, psicose etc., agora temos transtorno bipolar ou transtorno disso e daquilo, cada qual associado a uma miríade de medicamentos miraculosos. Criou-se, assim, um mercado que substitui o velho mundo do pobre e ultrapassado alienista.
Como chama atenção em seu artigo, Coser afirma que "o principal efeito desta estratégia mercadológica é o menosprezo à clínica médica. Parte do saber, da ciência, da tradição médica, é substituída pelo convencimento através de ampla ação de marketing, destinada não só a profissionais de saúde como, a partir de comunicação direta, a leigos.” E assim se criam e se apagam doenças na nossa sociedade.
Uma história ilustra processo parecido. Estava conversando com uma amiga na França e, ao mencionar a expressão TPM, fui repreendido por ela:
— Não existe TPM — disse de forma tão categórica, que não me restou alternativa a não ser concordar com ela. — TPM é uma invenção dos americanos para vender remédios.
Bem, muitas amigas minhas aqui no Brasil discordam da francesa, sobretudo quando aparecem determinados sintomas desconfortáveis “naqueles dias”. Mas sendo um pouco indulgente com o raciocínio dela, é verdade que a expressão TPM é relativamente recente para explicar o fenômeno e, de fato, veio do marketing da indústria farmacêutica associando a medicamentos ou absorventes.
“Incomodada ficava sua avó”, apregoa um antigo comercial de TV, nos ensinando como, nos tempos atuais, devemos nos referir ao mesmo fenômeno físico. Só que ao mudar a nomenclatura do fenômeno, mudamos também nossa percepção sobre ele e, muitas vezes sem perceber, incorporamos valores que nos empurram na direção de um consumo questionável. É assim que TPM vira uma doença a ser tratada.
TPM é, portanto, a metáfora de uma situação contemporânea, à qual estão associados valores sociais importantes, como a independência da mulher, que não precisa mais se incomodar, que pode trabalhar e ocupar seu novo lugar na sociedade etc e tal. Mas esse novo lugar da mulher está associado igualmente a um padrão de consumo. Ou seja, com a "liberdade", a "modernidade" etc. vem também o uso de produtos associados, pelo marketing, a essas noções. A liberdade, assim, vira mercado.
Coser acerta em cheio ao se referir a uma nova metáfora no mundo psi: “a categoria ‘transtornos comportamentais’, genérica o suficiente para não ter limites, porém específica o bastante para indicar um problema a ser resolvido.” Um problema a ser resolvido via medicamentos sofisticados, que insinuam que podem “curar” uma perturbação mental simplesmente ajustando os níveis de serotonina. Coser chama a atenção também para a disseminação do uso desses medicamentos, indicados inclusive por não especialistas e sem acompanhamento clínico.
Antes que me joguem pedra, esclareço: não sou contra o uso de medicamentos. E acho inclusive que, em alguns casos, eles são mais do que necessários. Apenas chamo a atenção para como o marketing dessas indústrias tenta incutir nas nossas pobres almas certos valores.
Muitas coisas são terapêuticas em determinados níveis. Ter um cachorro ou gato de estimação tem lá sua função terapêutica; seguir um culto; fazer ioga. Sou de um tempo em que a psicanálise e outras psicoterapias funcionavam muito precisamente para desatar nós que nenhum medicamento sozinho milagrosamente jamais o fará, independentemente dos comerciais na TV.
Postado por ipaco
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