ACASO E NECESSIDADE
Sintomas, como problemas, não se
resolvem, mas se dissolvem: na marra
Se houvesse uma eleição da
melhor abertura de romance de todos os tempos, eu votaria nessa, de “O amanuense
Belmiro”, de Cyro dos Anjos: “Ali pelo oitavo chope chegamos à conclusão de que
todos os problemas eram insolúveis. Florêncio propôs, então, um nono,
argumentando que outro copo talvez trouxesse uma solução geral.” Com efeito, se
não todos os problemas, o problema do todo certamente não pode ser resolvido. O
que fazer, então? Esquecê-lo, agir como se ele não existisse. Os problemas que
não podem ser solucionados podem contudo deixar de existir. Essa é a função do
nono chope na filosófica abertura transcrita acima: não resolver, mas dissolver
o problema. Chamo essa abertura de filosófica porque a questão do acaso e da
necessidade, à qual ela remete, é uma das mais tradicionais da filosofia. É ela
que quero abordar aqui, por meio de um grande filme.
Refiro-me a “Um
conto chinês”, do diretor argentino Sebastian Borensztein. É um desses filmes
que conseguem tratar de enormes questões filosóficas sem qualquer
grandiloquência. “Um conto chinês” tem como prólogo uma situação absurda. Dois
jovens chineses estão num barquinho, num cenário idílico da China rural.
Ritualizam ali seu noivado. O jovem vai buscar as alianças para colocar no dedo
de sua plácida amada — quando, de repente, uma vaca cai do céu, destroça o barco
e mata a noiva.
Corta para Buenos Aires. Um homem de meia-idade, Roberto
(o sempre brilhante Ricardo Darín), trabalha numa pequena loja de ferragens,
herdada de seu pai. Roberto é rabugento, metódico e obstinadamente solitário. No
ano anterior conhecera Ana, irmã de seu único amigo (ou o mais próximo disso que
ele consegue se permitir). Eles transaram numa noite, ela desde então quis se
juntar a ele, que por sua vez mantevese aferrado a sua solidão. Um dia, Roberto
vê um chinês ser assaltado na rua. O chinês é pobre, não fala espanhol e veio de
seu país procurar um tio. Roberto o ajuda, mas o tio vendeu sua loja e não
deixou rastro. Roberto se vê então obrigado a abrigar o chinês em sua casa. Para
a exasperação de seus sintomas, os diaspassam e nada de o tio do chinês ser
localizado.
Em meio a essa narrativa, conhecemos melhor Roberto. Ele é
honesto e corajoso. Revolta-se com a fábrica de parafusos, que lhe vende caixas
com menos peças do que o indicado na embalagem. Revolta-se também com fregueses
que duvidam de sua honestidade. Revolta-se com um policial que abusa de seu
poder.
Roberto tem por hábito colecionar notícias absurdas, golpes quase
inverossímeis do acaso, que colhe de jornais de diversas proveniências. Enquanto
isso, Ana continua a procurá-lo e tentar demovê-lo de sua solidão fechada, opaca
para o amor ou qualquer relação com o outro.
Após inúmeros atritos com o
pobre chinês, que apenas por estar ali atingia em cheio o sintoma de Roberto,
finalmente a embaixada chinesa localiza o tal tio. Nessa noite, por estar
aliviado pela iminente partida de seu hóspede indesejado, Roberto se permite
conversar com ele pela primeira vez. Tendo como tradutor um entregador de comida
chinesa, fazem perguntas um ao outro. O chinês quer saber o que são aqueles
recortes de jornal que ele coleciona. Roberto conta que seu pai era um italiano
que imigrou fugindo da guerra. Mas, ao chegar na Argentina, acabou por ter que
ceder seu filho como combatente à guerra das Malvinas. O pai de Roberto morre
por desgosto com esse acaso. O filho passa então a colecionar notícias absurdas,
como o pai que foge de uma guerra e cai em outra.
Pausa para interpretar.
Roberto é paralisado pelo acaso, que é a causa mortis filosófica de seu pai. Sua
vida se mantém atrelada a isso, condenando-o a uma posição melancólica, de
inação. Ora, a melancolia tem uma forte relação com o acaso: se a vida é
gratuita, se existir não faz sentido, para que agir? A honestidade rigorosa de
Roberto parece ser uma tentativa de dar algum sentido às coisas; e sua revolta
volta-se contra os que não colaboram com os pactos, com a ordem, instaurando um
caos que remete ao acaso que o melancoliza.
Roberto está narrando algumas
das notícias absurdas dos jornais para o chinês, quando lhe
conta aquela ,
mais absurda entre todas, de um chinês que tinha sido atingido por uma vaca que
veio do céu. Os olhos do chinês se enchem de lágrimas, e o tradutor traduz: “Era
ele quem estava naquele barco.” No dia seguinte, após ter deixado o chinês no
aeroporto, Roberto retorna à sua casa e encontra uma imensa vaca pintada, pelo
chinês, na sua parede. Ele pega o carro e parte para a província onde mora Ana.
Liberou-se, e o filme acaba.
O acaso de o chinês da notícia ter vindo
parar, por uma trama improvável, em sua vida, não precisa ser compreendido como
um “sinal” (de uma lei oculta, metafísica) de que há necessidade “por trás” dos
eventos aleatórios. Mas sim que o acaso podeformar acontecimentos cheios de
sentido, com estrutura de sentido. Um chinês perde a noiva num golpe infeliz do
acaso, e acaba, por outra volta do acaso, cumprindo o papel de enfrentar o
sintoma — uma doença da gratuidade — de um melancólico solitário. Sintomas, como
problemas, não se resolvem, mas se dissolvem: na marra, por meio de um encontro
inesperado. O mesmo acaso que originou a melancolia de Roberto também lhe impôs
um término. Não há necessidade, há finalidades sem fim. Não há necessidade, mas
é preciso agir como se houvesse. Antes que uma vaca caia do céu e cumpra o único
evento necessário.
07 de abril de 2012
francisco bosco
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