sábado, 7 de abril de 2012

ACASO E NECESSIDADE

Sintomas, como problemas, não se resolvem, mas se dissolvem: na marra


Se houvesse uma eleição da melhor abertura de romance de todos os tempos, eu votaria nessa, de “O amanuense Belmiro”, de Cyro dos Anjos: “Ali pelo oitavo chope chegamos à conclusão de que todos os problemas eram insolúveis. Florêncio propôs, então, um nono, argumentando que outro copo talvez trouxesse uma solução geral.” Com efeito, se não todos os problemas, o problema do todo certamente não pode ser resolvido. O que fazer, então? Esquecê-lo, agir como se ele não existisse. Os problemas que não podem ser solucionados podem contudo deixar de existir. Essa é a função do nono chope na filosófica abertura transcrita acima: não resolver, mas dissolver o problema. Chamo essa abertura de filosófica porque a questão do acaso e da necessidade, à qual ela remete, é uma das mais tradicionais da filosofia. É ela que quero abordar aqui, por meio de um grande filme.

Refiro-me a “Um conto chinês”, do diretor argentino Sebastian Borensztein. É um desses filmes que conseguem tratar de enormes questões filosóficas sem qualquer grandiloquência. “Um conto chinês” tem como prólogo uma situação absurda. Dois jovens chineses estão num barquinho, num cenário idílico da China rural. Ritualizam ali seu noivado. O jovem vai buscar as alianças para colocar no dedo de sua plácida amada — quando, de repente, uma vaca cai do céu, destroça o barco e mata a noiva.

Corta para Buenos Aires. Um homem de meia-idade, Roberto (o sempre brilhante Ricardo Darín), trabalha numa pequena loja de ferragens, herdada de seu pai. Roberto é rabugento, metódico e obstinadamente solitário. No ano anterior conhecera Ana, irmã de seu único amigo (ou o mais próximo disso que ele consegue se permitir). Eles transaram numa noite, ela desde então quis se juntar a ele, que por sua vez mantevese aferrado a sua solidão. Um dia, Roberto vê um chinês ser assaltado na rua. O chinês é pobre, não fala espanhol e veio de seu país procurar um tio. Roberto o ajuda, mas o tio vendeu sua loja e não deixou rastro. Roberto se vê então obrigado a abrigar o chinês em sua casa. Para a exasperação de seus sintomas, os diaspassam e nada de o tio do chinês ser localizado.

Em meio a essa narrativa, conhecemos melhor Roberto. Ele é honesto e corajoso. Revolta-se com a fábrica de parafusos, que lhe vende caixas com menos peças do que o indicado na embalagem. Revolta-se também com fregueses que duvidam de sua honestidade. Revolta-se com um policial que abusa de seu poder.
Roberto tem por hábito colecionar notícias absurdas, golpes quase inverossímeis do acaso, que colhe de jornais de diversas proveniências. Enquanto isso, Ana continua a procurá-lo e tentar demovê-lo de sua solidão fechada, opaca para o amor ou qualquer relação com o outro.

Após inúmeros atritos com o pobre chinês, que apenas por estar ali atingia em cheio o sintoma de Roberto, finalmente a embaixada chinesa localiza o tal tio. Nessa noite, por estar aliviado pela iminente partida de seu hóspede indesejado, Roberto se permite conversar com ele pela primeira vez. Tendo como tradutor um entregador de comida chinesa, fazem perguntas um ao outro. O chinês quer saber o que são aqueles recortes de jornal que ele coleciona. Roberto conta que seu pai era um italiano que imigrou fugindo da guerra. Mas, ao chegar na Argentina, acabou por ter que ceder seu filho como combatente à guerra das Malvinas. O pai de Roberto morre por desgosto com esse acaso. O filho passa então a colecionar notícias absurdas, como o pai que foge de uma guerra e cai em outra.

Pausa para interpretar. Roberto é paralisado pelo acaso, que é a causa mortis filosófica de seu pai. Sua vida se mantém atrelada a isso, condenando-o a uma posição melancólica, de inação. Ora, a melancolia tem uma forte relação com o acaso: se a vida é gratuita, se existir não faz sentido, para que agir? A honestidade rigorosa de Roberto parece ser uma tentativa de dar algum sentido às coisas; e sua revolta volta-se contra os que não colaboram com os pactos, com a ordem, instaurando um caos que remete ao acaso que o melancoliza.

Roberto está narrando algumas das notícias absurdas dos jornais para o chinês, quando lhe
conta aquela , mais absurda entre todas, de um chinês que tinha sido atingido por uma vaca que veio do céu. Os olhos do chinês se enchem de lágrimas, e o tradutor traduz: “Era ele quem estava naquele barco.” No dia seguinte, após ter deixado o chinês no aeroporto, Roberto retorna à sua casa e encontra uma imensa vaca pintada, pelo chinês, na sua parede. Ele pega o carro e parte para a província onde mora Ana. Liberou-se, e o filme acaba.

O acaso de o chinês da notícia ter vindo parar, por uma trama improvável, em sua vida, não precisa ser compreendido como um “sinal” (de uma lei oculta, metafísica) de que há necessidade “por trás” dos eventos aleatórios. Mas sim que o acaso podeformar acontecimentos cheios de sentido, com estrutura de sentido. Um chinês perde a noiva num golpe infeliz do acaso, e acaba, por outra volta do acaso, cumprindo o papel de enfrentar o sintoma — uma doença da gratuidade — de um melancólico solitário. Sintomas, como problemas, não se resolvem, mas se dissolvem: na marra, por meio de um encontro inesperado. O mesmo acaso que originou a melancolia de Roberto também lhe impôs um término. Não há necessidade, há finalidades sem fim. Não há necessidade, mas é preciso agir como se houvesse. Antes que uma vaca caia do céu e cumpra o único evento necessário.

 
07 de abril de 2012
francisco bosco

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