sábado, 7 de abril de 2012

O CÁRCERE DE BLAU

A vida “natural”, que Blau persegue, não precisa de expressão. Ela apenas é


Entre os aforismos de Elias Canetti, existe um, que se refere ao escritor austríaco Robert Musil (1880-1942), que me interessa em particular. Anota Canetti: “Musil me fascina por um tipo de uniforme. Teria que defini-lo como o uniforme da claridade?” Autor do monumental “O homem sem qualidades”, romance em que o pensamento — a claridade — se sobrepõe à ficção, Musil, evocado por Canetti — vejam que caminho tortuoso! — me ajuda a ler “A vida obscena de Anton Blau”, o dilacerante romance de Maria Cecília Gomes dos Reis (Editora 34). Por que Canetti? Por que Musil?

Por que os dois me levam aos nervos de Blau? Tento explicar. Nunca lemos só o que um livro nos diz. As palavras são faróis: elas iluminam também nossos próprios pensamentos, reverberam e se deformam em nossa mente. Vamos a Anton Blau. Ele vive retido no eterno presente. A condenação reflete — ou é efeito? — da escrita de Maria Cecília, que trabalha seu romance sem se apegar às ilusões dos vínculos e da perspectiva. Ilusões? É talvez isso, um tanto de sonho, o que falta a Blau. O que o aprisiona.

Romance estranho — aviso logo. Que se lê com dificuldades. Ou, se não são dificuldades, são incômodos, como se algo muito fino nos espetasse. Na aparência, Anton Blau é um homem dominado pelo desleixo, pela preguiça, pela autoindulgência. Um homem comum; um homem sem qualidades, exatamente como o célebre personagem de Robert Musil. Mas insisto: tudo na aparência. Na verdade, Maria Cecília nos oferece uma visão fatiada de Blau. Ela o pega em momentos distintos de sua vida, na perspectiva de observadores e encarnações diferentes. Se não é isso o que faz, simula isso. Falta-lhe aquilo que define, por excelência, a claridade de que fala Canetti: o foco. Já na abertura do livro, o leitor recebe a seguinte advertência: “A verdadeira experiência consiste em restringir o contato com a realidade e aumentar a análise desse contato”. Em outras palavras: quanto mais limitamos nosso olhar, mais a claridade aumenta. Ao contrário: quanto mais o alargamos, como a autora faz, mais opaca se torna a existência.

Blau, contudo, é um homem das miudezas. Procura “as impressões que ninguém está interessado em descrever”. Procura o desprezível. As sobras, dejetos: o lixo. É na direção dos restos que Blau se vira. Quando se tira tudo de um homem, quando nada mais lhe resta, o que ainda assim lhe resta: ele está aqui. Ele “é” o presente. Clarice Lispector viajou na mesma direção: arrastou seus personagens rumo à Coisa — aquilo que ela, às vezes, chamou de “it”. Claro: o instante. A claridade do instante, tão breve, tão frágil, que logo no instante seguinte já não é mais. Blau busca o que está aqui e mais nada. Não se interessa por antecedentes, tampouco por consequências. Não quer saber da história, ou do futuro. Ele é. Ele é a Coisa de que nos fala Clarice.

Todos nós somos, só que nos agasalhamos na ilusão — lonas protetoras do passado, coletes
imaginários do futuro. Blau está emparedado. O romance fala de sua imobilidade. Ele nem chega a ser um personagem: ele é o amigo imaginário da menina Marta. Prisioneiro do disperso, resta-lhe atuar. Não precisa do pensamento — que um escritor como Musil desdobrou em centenas e centenas de páginas. Nele, a claridade está em não pensar, em não ver, em não refletir. Deseja livrar a vida dos invólucros que a adornam. “A vida prejudica a expressão da vida”. Dizendo de outra maneira: a vida “natural”, que Blau persegue, não precisa de expressão (literatura). Ela apenas é.

Cruel traição: tudo isso se passa, contudo, em um romance, que de natural nada tem. Sim, a vida precisa de expressão, ainda que seja para falhar no inexpressivo. A cada manhã, Anton Blau desperta para sua vida comum, que se caracteriza não pela dor, ou pelo terror, mas pelo “desconforto difuso”. Viveu a infância “entre a neblina e cumes de recordação”. A adolescência, entre “sombras e pequenas dissimulações”. Teatro fracassado, a vida humana é só um disfarce. O presente não se interessa por encenações. Tampouco se importa com o disfarce. O presente grita. Clarice dizia que o presente era um grito.

Mas logo não se trata de Anton, e sim de Jamil, o terceiro filho de uma mulher chamada Lia. As presenças se desdobram, mas ainda é sempre o presente. O meu presente, o seu presente, o presente alheio: todos comprimidos no mesmo instante e, ainda assim, tão distantes uns dos outros. Também não se trata, agora é Jamil quem nos adverte, da aposta no “mundo interior”. Observa o mundo e conclui: “Sou algo ínfimo diante disto tudo, um indivíduo qualquer plantado no planeta, um móvel em trajetórias grudado à superfície do globo”. Maria Cecília, a autora, usa sua imaginação para destruir qualquer possibilidade de imaginação. Ao escolher o presente perpétuo, é como se ela dissesse a seu leitor: “Suporta, aguenta firme, isso basta”.

Não basta, e o próprio livro é um desmentido das teses que Anton Blau encarna. De repente ele é Klaus, e sua única esperança é não ser processado por uma ofensa. Ou seja: é permanecer (preso) onde já está. É Klaus quem nos diz: “O homem experimenta uma forma complexa de ser: ‘estar’ e ‘não estar’ ao mesmo tempo”. Uma forma contrária, portanto, ao princípio de não contradição. Somos contradição pura, Klaus e seu séquito de nomes nos mostram. Vivemos estagnados no que somos, mas é exatamente essa estagnação que nos fornece um ponto de partida e que nos permite enfim nos desdobrar. Prossegue Klaus (ou será Blau?): “A identidade de cada pessoa é dada por seu veio circunstancial — único e mesmo”. Ao mesmo tempo, afirma: “A pessoa é variação sob variação. E também variação (sujeito) ante variação (objeto)”. Chega-se aqui ao horror: até a variação é um efeito da repetição.

Maria Cecília nos oferece um romance que se parece com um charco. Sob as águas mórbidas, contudo, alguma coisa se mexe. Esse mexer-se — amar, gerar filhos, escrever livros — pode ser repetição pura. Ainda assim, e seu livro nos mostra isso, só ele é capaz de produzir as coisas que em nós mesmos nos espantam.
07 de abril de 2012
josé castello

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