O belo
em Beckett é que o vazio se torna um bordado
Um homem se ergue e parte. A princípio, uma luz externa o ilumina. Logo ela se apaga e se instala a escuridão. O homem se entrega. “Talvez soubesse muito bem o que ficava embaixo e não desejava vê-lo de novo”. Ver o quê? Ver a si mesmo, nivelado ao chão. O homem se ergue para se movimentar, mas o movimento é também repetição. É imobilidade. Eis a solidão maior: mesmo movendo-se, ele não pode se mover. Mesmo lutando para chegar ao outro, retorna sempre a si.
Falo de “Sobressaltos”, talvez o mais agudo relato de “Companhia e outros textos”, de Samuel Beckett (Editora Globo). O texto que empresta seu título ao livro, “Companhia”, é uma conhecida viagem através da solidão. Um homem, deitado no escuro, ouve uma voz cuja origem desconhece A voz o perfura, derramando uma mistura gosmenta de sonho e memória. Aos sobressaltos, lutando para ignorar a voz, mas por ela arrastado, o homem se apega a fios que pendem, frágeis — últimos sinais de uma cabeleira —, de sua mente. Mas em “Sobressaltos” não há nem mesmo essa voz que, mal ou bem, ainda é uma esperança de companhia. O homem leva sustos consigo mesmo e com sua incapacidade de se mover. Não é que não se mova; move-se, mas isso é inútil e não o leva a lugar algum.
Nesse sacolejar, defronta-se com seus próprios sentimentos, que são incompreensíveis e não o levam a lugar algum também. Por exemplo: tem vontade, mas ao mesmo tempo tem medo de sumir. Antagônicas, as duas ideias se anulam. Resta o ruído estridente de um atrito.
Como viver com sentimentos que se esmurram em nosso interior? Como conferir sentido a uma vida que
se desenrola, ao mesmo tempo, em dois sentidos opostos, de modo que um sentido anula o outro? Esse impasse deixa o homem “meramente esperando”. Não que não se mexa, mas dá no mesmo. Caminha por estradas ermas, arrasta-se em uma paisagem escura. Habita um cenário (uma Natureza?) que de nada lhe serve. “Nada a mostrar que não o mesmo”, ele diz. Se a paisagem se repete, tudo se anula. É como se viajássemos em um carro que fizesse voltas intermináveis em torno da mesma praça. Na repetição que se acumula, a paisagem afunda em um buraco. Uma boca que nos engole.
Beckett — como todo escritor — está falando da literatura. A literatura não tem “solução”. Não há direção, ou destino. Na frente do ônibus pode estar a placa: “Destino”. Mas isso nada nos assegura. Esse girar em torno da mesma praça — do mesmo poço — transforma a escrita de Samuel Beckett em um gaguejar. Sua escrita evoca a sílaba que os gagos repetem, em aflição, buscando a sílaba seguinte que nunca lhes chega. Há uma dor — mesmo que se aceite a dor. Há um silêncio (uma pausa) — mesmo que, ao fim, algo se expresse. Escrita rota, aos farrapos, aos frangalhos. Aos sobressaltos.
Por vezes o homem (o e s c r i t o r ) e m e rg e d o mundo exterior e volta a si. Reencontra-se. Reencontra-se? Há um sentimento de reencontro e nada mais. Nada mais. Beckett poderia, quem sabe, repetir as palavras de Nietzsche em “Ecce Homo”: “Naquela época meu instinto decidiu-se de maneira inexorável contra a continuação da condescendência, do seguir-aos-outros, do enganar-a-mim-mesmo”. Há uma (tentativa de) ruptura. Há uma volta a si — como alguém que, de repente, se levanta de um desmaio. Mas, se em Nietzsche esse erguer-se, mesmo tosco, e ainda que aterrorizante,
se converte em potência, em Beckett ele é só um desdobramento da imobilidade. Uma espera ainda.
O homem, então, se vê em um campo de relva. Mas até o campo acolhedor se converte, l o g o , e m o b s t á c u l o .
“Pois ele não conseguia se lembrar de nenhum campo de relva no coração mesmo do qual nenhum limite de nenhum tipo pudesse ser descoberto”. Também os campos de relva estão delimitados (encarcerados) por grades, canteiros, cercas, muros. Mesmo a mais romântica liberdade é uma prisão. Precisa fazer algo disso, mas o problema está aí: faz e, no entanto, nada se altera. O que não impede de fazer (de escrever). É o ato — fazer, escrever — que lhe salva.
Resta-lhe, por fim, apenas a memória, em cuja barriga escura vasculha o homem restos, resíduos, sobras que construam algum sentido — que lhe sirvam de bengala! Nada encontra. Inclina a cabeça, então, em posição de meditação, que é a desistência de pensar para entregar-se ao vazio.
Constata que está vazio de desejos e sabe que, ainda que os tivesse, de nada lhe serviriam. É um escritor: planeja, organiza, deseja, mas a escrita é sempre outra coisa. Sai de si para entregar- se a esse outro e sua luz efêmera; mas isso também não o salva e, por fim, (fechado o livro), está, mais uma vez, sozinho. As palavras (as luzes) tagarelam. A elas, ainda assim, se apega.
O belo em Beckett é que o vazio se torna um bordado. Costurado com uma linha inexistente, ainda assim ele traça uma forma. Somos, nós leitores, arrastados por essa ilusão de cura pela beleza que em nenhum momento elimina nosso mal. Chegamos então — o personagem de Beckett chega — ao “tanto faz”. Mas atenção: é desse “tanto faz”, que apesar de tudo é tanto, que algo fazemos. Alguma coisa que nos console, como nos diz o homem, “do horror de tudo ter fim”. Ele ainda exclama: “Oh tudo ter fim”. Nem essa frase, que se parece com um fecho, dá conta do que ele sente.
A literatura, para muitos, é só um deserto. Algo inútil, porque vazio e sem sentido — sem senso de direção. A literatura: uma embriaguez? Algo em que algo (o principal) sempre falta.
É como recordar Vladimir e Estragon à espera infinita de Godot. Seu amado Godot não chega e tudo o que o lhes resta é a espera. Beckett: autor da espera. Como se estivesse em uma gravidez que jamais conduzisse a um parto e que, por fim, fosse apenas peso e angústia.
Algo deslocado de seu centro: de repente, olhando com mais cuidado, vemos nossa espinha que, à distância, nos acompanha. O homem de Beckett está deslocado de si. Vagueia, insiste, “até nada sobrar do fundo desse dentro!” As frases se enroscam, são gatos preguiçosos, que só querem o silêncio. Ainda assim, nos acariciam.Ainda assim, nos consolam.
Ainda assim estão ali.
Um homem se ergue e parte. A princípio, uma luz externa o ilumina. Logo ela se apaga e se instala a escuridão. O homem se entrega. “Talvez soubesse muito bem o que ficava embaixo e não desejava vê-lo de novo”. Ver o quê? Ver a si mesmo, nivelado ao chão. O homem se ergue para se movimentar, mas o movimento é também repetição. É imobilidade. Eis a solidão maior: mesmo movendo-se, ele não pode se mover. Mesmo lutando para chegar ao outro, retorna sempre a si.
Falo de “Sobressaltos”, talvez o mais agudo relato de “Companhia e outros textos”, de Samuel Beckett (Editora Globo). O texto que empresta seu título ao livro, “Companhia”, é uma conhecida viagem através da solidão. Um homem, deitado no escuro, ouve uma voz cuja origem desconhece A voz o perfura, derramando uma mistura gosmenta de sonho e memória. Aos sobressaltos, lutando para ignorar a voz, mas por ela arrastado, o homem se apega a fios que pendem, frágeis — últimos sinais de uma cabeleira —, de sua mente. Mas em “Sobressaltos” não há nem mesmo essa voz que, mal ou bem, ainda é uma esperança de companhia. O homem leva sustos consigo mesmo e com sua incapacidade de se mover. Não é que não se mova; move-se, mas isso é inútil e não o leva a lugar algum.
Nesse sacolejar, defronta-se com seus próprios sentimentos, que são incompreensíveis e não o levam a lugar algum também. Por exemplo: tem vontade, mas ao mesmo tempo tem medo de sumir. Antagônicas, as duas ideias se anulam. Resta o ruído estridente de um atrito.
Como viver com sentimentos que se esmurram em nosso interior? Como conferir sentido a uma vida que
se desenrola, ao mesmo tempo, em dois sentidos opostos, de modo que um sentido anula o outro? Esse impasse deixa o homem “meramente esperando”. Não que não se mexa, mas dá no mesmo. Caminha por estradas ermas, arrasta-se em uma paisagem escura. Habita um cenário (uma Natureza?) que de nada lhe serve. “Nada a mostrar que não o mesmo”, ele diz. Se a paisagem se repete, tudo se anula. É como se viajássemos em um carro que fizesse voltas intermináveis em torno da mesma praça. Na repetição que se acumula, a paisagem afunda em um buraco. Uma boca que nos engole.
Beckett — como todo escritor — está falando da literatura. A literatura não tem “solução”. Não há direção, ou destino. Na frente do ônibus pode estar a placa: “Destino”. Mas isso nada nos assegura. Esse girar em torno da mesma praça — do mesmo poço — transforma a escrita de Samuel Beckett em um gaguejar. Sua escrita evoca a sílaba que os gagos repetem, em aflição, buscando a sílaba seguinte que nunca lhes chega. Há uma dor — mesmo que se aceite a dor. Há um silêncio (uma pausa) — mesmo que, ao fim, algo se expresse. Escrita rota, aos farrapos, aos frangalhos. Aos sobressaltos.
Por vezes o homem (o e s c r i t o r ) e m e rg e d o mundo exterior e volta a si. Reencontra-se. Reencontra-se? Há um sentimento de reencontro e nada mais. Nada mais. Beckett poderia, quem sabe, repetir as palavras de Nietzsche em “Ecce Homo”: “Naquela época meu instinto decidiu-se de maneira inexorável contra a continuação da condescendência, do seguir-aos-outros, do enganar-a-mim-mesmo”. Há uma (tentativa de) ruptura. Há uma volta a si — como alguém que, de repente, se levanta de um desmaio. Mas, se em Nietzsche esse erguer-se, mesmo tosco, e ainda que aterrorizante,
se converte em potência, em Beckett ele é só um desdobramento da imobilidade. Uma espera ainda.
O homem, então, se vê em um campo de relva. Mas até o campo acolhedor se converte, l o g o , e m o b s t á c u l o .
“Pois ele não conseguia se lembrar de nenhum campo de relva no coração mesmo do qual nenhum limite de nenhum tipo pudesse ser descoberto”. Também os campos de relva estão delimitados (encarcerados) por grades, canteiros, cercas, muros. Mesmo a mais romântica liberdade é uma prisão. Precisa fazer algo disso, mas o problema está aí: faz e, no entanto, nada se altera. O que não impede de fazer (de escrever). É o ato — fazer, escrever — que lhe salva.
Resta-lhe, por fim, apenas a memória, em cuja barriga escura vasculha o homem restos, resíduos, sobras que construam algum sentido — que lhe sirvam de bengala! Nada encontra. Inclina a cabeça, então, em posição de meditação, que é a desistência de pensar para entregar-se ao vazio.
Constata que está vazio de desejos e sabe que, ainda que os tivesse, de nada lhe serviriam. É um escritor: planeja, organiza, deseja, mas a escrita é sempre outra coisa. Sai de si para entregar- se a esse outro e sua luz efêmera; mas isso também não o salva e, por fim, (fechado o livro), está, mais uma vez, sozinho. As palavras (as luzes) tagarelam. A elas, ainda assim, se apega.
O belo em Beckett é que o vazio se torna um bordado. Costurado com uma linha inexistente, ainda assim ele traça uma forma. Somos, nós leitores, arrastados por essa ilusão de cura pela beleza que em nenhum momento elimina nosso mal. Chegamos então — o personagem de Beckett chega — ao “tanto faz”. Mas atenção: é desse “tanto faz”, que apesar de tudo é tanto, que algo fazemos. Alguma coisa que nos console, como nos diz o homem, “do horror de tudo ter fim”. Ele ainda exclama: “Oh tudo ter fim”. Nem essa frase, que se parece com um fecho, dá conta do que ele sente.
A literatura, para muitos, é só um deserto. Algo inútil, porque vazio e sem sentido — sem senso de direção. A literatura: uma embriaguez? Algo em que algo (o principal) sempre falta.
É como recordar Vladimir e Estragon à espera infinita de Godot. Seu amado Godot não chega e tudo o que o lhes resta é a espera. Beckett: autor da espera. Como se estivesse em uma gravidez que jamais conduzisse a um parto e que, por fim, fosse apenas peso e angústia.
Algo deslocado de seu centro: de repente, olhando com mais cuidado, vemos nossa espinha que, à distância, nos acompanha. O homem de Beckett está deslocado de si. Vagueia, insiste, “até nada sobrar do fundo desse dentro!” As frases se enroscam, são gatos preguiçosos, que só querem o silêncio. Ainda assim, nos acariciam.Ainda assim, nos consolam.
Ainda assim estão ali.
07 de abril de 2012
José Castello
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