domingo, 18 de agosto de 2013

FALÊNCIA DO MACHO

Descobriu tudo e deu três tiros na mulher. Para bom entendedor, a manchete já disse tudo, nem é preciso ler a notícia. O crime ocorreu sexta-feira passada, na esquina da Sete de Setembro com a João Manoel. Entrei num edifício do centro, o porteiro comentava:

- Nesses casos, a culpa é sempre da mulher. O homem sempre tem razão.

A meu lado, estava o homicida potencial. Em minha pasta de recortes, as notícias sobre maridos que matam mulheres já estão ocupando um espaço excessivo. Ora o marido mata a mulher que o traiu, ora mata o amante da mulher, quando não mata os dois. O fato comporta algumas variantes. Mas a decisão do júri é uma só: absolvição. Defesa da honra, pretextam. Mas que honra é essa que exige sangue para ser lavada?

Vejo algo de mais profundo e sintomático nessa atitude do marido e do júri. Não creio se trate apenas de defesa da honra. Mas sim medo do homem de nossa época ante a nova mulher que surge.

Houve um momento na História em que o Estado encarregava-se de vingar os brios do macho insultado. Antes do surgimento da roda e da máquina, era senhor quem tinha maior força física, ou seja, o homem. O homem erigiu o Estado e as leis eram um reflexo de sua vontade absoluta. A mulher era sua propriedade, o adultério era antes de mais nada um roubo. E o Estado punia esse roubo. Jogava os adúlteros na fogueira. Ou pendurava-os no patíbulo.

Os tempos mudaram. Hoje, força física não alimenta ninguém, exceto ídolos do futebol ou campeões olímpicos. A máquina permite que uma mulher execute o mesmo trabalho de um homem. Não está mais em jogo sua força física, mas sua capacidade mental. Mesmo ainda inferiorizada, a mulher pode hoje prover o seu sustento, decidir, comandar. Em outras palavras, equipara-se ao homem. Se nos primórdios da humanidade a subsistência dependia de músculos rijos, manejo do tacape ou machado, argúcia na caça, hoje subsistência depende de conhecimento, técnica, cultura. Sabemos como vive – ou melhor, sobrevive – quem só dispõe de força física para o trabalho.

A fêmea do homem evoluiu. O macho continua o mesmo.

Posso ser dono de um livro, de um par de sapatos, de um carro. São coisas, objetos. Eu os possuo e deles disponho como bem entender. Mas não posso ser dono de uma mulher, de um outro ser humano com vontade própria. Se minha mulher me troca por um outro homem, creio existirem apenas duas atitudes a tomar. Uma, seria cumprimentar minha mulher, caso tenha encontrado um homem melhor dotado e com mais capacidade de oferecer-lhe amor e compreensão. (Pois é bem possível que eu não seja o mais perfeito e amoroso dos homens, não é verdade?) A outra atitude seria dar-lhe pêsames, por ter-me trocado por um homem inferior e incapaz de oferecer-lhe amor. (Pois é bem possível que eu não seja o mais imperfeito e egoísta dos homens, não é verdade?)

Mas o macho contemporâneo não renunciou à sua condição de senhor. Vê na mulher uma escrava, uma coisa de sua propriedade. Sente-se roubado? Mata. Os jurados o inocentam, numa espécie de alerta: “Cuidado, querida. Se me traíres, te mato. E meus colegas me absolverão”. Chamam a isto defesa da honra.

Os tempos mudaram. A mulher se transformou. O homem ficou parado no tempo. Ao sentir-se traído, só conhece uma forma de diálogo: reage à bala. Isto é, o macho está falido.

*Porto Alegre, Folha da Manhã, 03/11/1975



sexta-feira, agosto 16, 2013
 
QUANDO TINHA
MEDO DA MORTE



Ateus, não tememos a morte – dizia há pouco. Leitor quer saber se nunca tive medo da morte. Claro que tive. Especialmente quando acreditava em deus. Talvez nem tanto em deus, mas na vida eterna. Ou melhor, no castigo eterno. A igreja me ameaçava com as chamas do inferno em caso de morrer em pecado mortal. E o pecado mortal mais ao alcance da mão de um adolescente sempre foi sexo.

A cada falta contra o “templo sagrado de Deus” – que é como os padres chamavam o corpo - entrava em pânico. Via à minha frente as chamas eternas do Hades, onde tudo é choro e ranger de dentes. Me sentia condenado ao convívio com demônios. E para a eternidade.

Arrependia-me, fazia atos de contrição, confessava meus pecados a sacerdotes e recebia a absolvição. Por um dia ou dois, conseguia viver sem pavores. Mas não mais que um dia ou dois. No terceiro, eu já estava pecando de novo. As noites de tempestade eram noites de pavor. Talvez fosse megalomania. Mas cada raio que caía, eu sentia que era dirigido a mim. Confesso que jamais senti tanto medo da morte como naqueles dias.

Não que tenha deixado de temer a morte quando deixei de acreditar em Deus. Jovens, sempre tememos morrer sem ter vivido. Se algo aprendi em meus anos de caminhada, é que com a idade este medo diminui. Não só diminui, como a idéia da Indesejada das Gentes passa até a ser palatável. Aprendi também que este medo é um impulso que nos leva a viver intensamente.

É o antigo carpe diem. Está em Horácio. Para os pagãos, a vida pós-morte nunca foi um ideal. Mais sábio é aproveitar cada dia.

“Tu não indagues (é ímpio saber) qual o fim que a mim e a ti os deuses tenham dado, Leuconoé, nem recorras aos números babilônicos. Tão melhor é suportar o que será! Quer Júpiter te haja concedido muitos invernos, quer seja o último o que agora debilita o mar Tirreno nas rochas contrapostas, que sejas sábia, coes os vinhos e, no espaço breve, cortes a longa esperança. Enquanto estamos falando, terá fugido o tempo invejoso; colhe o dia, quanto menos confia no de amanhã”.

Se morte não assusta o ateu, há algo que o ateu teme: é o medo de perder a vida. São medos diferentes. Se o medo ao sofrimento eterno despareceu, persiste o medo de morrer sem ter vivido. Quando digo medo de perder a vida, não quero dizer morrer. Estou falando em desperdiçá-la.

Este temor é saudável, nos leva a bem viver o presente. Durante bons anos convivi com ele e nesses dias procurava exorcizar a Moira Torta buscando o prazer. E qual prazer? Ora, o que mais me aprazia. Tinha medo de morrer amanhã sem ter tido aquela mulher que desejava. Melhor então tê-la hoje. Ou sem ter feito aquela viagem com a qual sonhava. Melhor então partir logo. Este medo de perder a vida é motor poderoso, e terá levado muitos homens a grandes conquistas. Schliemann não queria morrer sem ter descoberto Tróia. Alexandre, ainda menino, tinha medo que seu pai conquistasse tantos reinos a ponto de não lhe sobrasse nenhum para conquistar. O medo é do tamanho do homem.

Cristãos não deveriam temer a morte. Celebrar a morte - dizem os teólogos - é celebrar um encontro, o encontro pelo qual ansiamos por toda a vida. Encontro com Deus, nosso Criador e Senhor.

Em A Peste, de Albert Camus, o padre Paneloux faz uma longa exposição sobre os flagelos que acometeram os homens por vontade divina. Como o Cristo, ele aceita passivamente o Mal, sem mesmo se interrogar sobre as eventuais motivações da divindade. Se o Cristo, em um momento de sua agonia, deixa escapar o lamma sabachtani, Paneloux morrerá sem uma só palavra nos lábios.

"Há muito tempo, os cristãos da Abissínia viam na peste um meio eficaz, de origem divina, de se obter a eternidade. Aqueles que não haviam sido atingidos se enrolavam nos lençóis dos pestíferos para terem a certeza da morte. Sem dúvida, este desejo furioso de saúde não é recomendável, pois denota uma deplorável precipitação, bem próxima do orgulho. Não se deve ser mais apressado do que Deus. Tudo o que pretende acelerar a ordem imutável, estabelecida de uma vez por todas, conduz à heresia. Mas este exemplo, pelo menos, traz sua lição. Para nossos espíritos mais clarividentes, faz luzir este brilho delicado de eternidade que jaz no fundo de todo sofrimento. Esta luz ilumina os caminhos crepusculares que conduzem à libertação. Ela manifesta a vontade divina que, sem falhar, transforma o mal em bem".

Confesso que acho muita graça na atitude destes senhores que crêem ser a morte um encontro com o Eterno, mas na hora do Jesus-está-chamando recorrem a medicinas de ponta. "Não se deve ser mais apressado do que Deus", dizia Paneloux. Pode ser. Mas também não precisava postergar o encontro.

Já falei de meu medo de voar. Houve em minha vida um período de quatro anos nos quais, se tivesse de tomar um avião daqui a três meses, passava estes três meses dormindo à base de soníferos. Na época, a Internationes ofereceu-me uma viagem aérea por diversas cidades da Alemanha. Aceitei, mas só iria de trem. Era a época em que o grupo terrorista RAF, Fração do Exército Vermelho, mais conhecido como Baader-Meinhof, ameaçava derrubar aviões no espaço aéreo alemão. Funcionários da embaixada alemã tentavam convencer-me de que o país estava muito bem preparado para enfrentar o terrorismo. Mas eu não tinha medo de terroristas. Tinha medo era de voar. Vivia em Paris e por quatro anos arrastei comigo este medo, perdendo viagens e optando sempre por locomover-me de trem ou navio. (O que, aliás, não é nenhuma desvantagem). Chegou o dia em que tive de voltar por alguns dias ao Sul. Foi em 79. Navio era inviável. Só voando. Meses de insônia. No dia do embarque, tomei uma garrafa de uísque enquanto fazia a mala. Mais outra no avião. Permaneci imóvel o tempo todo, não levantei sequer para fazer xixi. Tinha medo de desestabilizar o aparelho. Juro!

Meu medo decorria de um fiasco que cometi em 75. Eu voava pela Argélia, rumo ao Assekrem, no sul do país. Na primeira escala após Argel, creio que Gardhaia, quando o piloto anunciou a aterrissagem, apertei o cinto e me preparei para aquela sensação de bem-estar que, com maior ou menor intensidade, sempre nos inunda após uma aterrissagem tranqüila. O avião se aproximava do solo. Olhei pela janela e só vi areia. Estávamos talvez a uns cinco metros do solo e só havia areia e mais areia. É aterrissagem forçada, pensei. Apertei forte a mão da Baixinha, que nesta altura também já estava preocupada, e nos preparamos para o fim. Minha vida foi passando em flashes rápidos pela mente. Naquele momento não senti medo, apenas me resignei ante o inevitável.

Quando o avião aterrissou suavemente, fui invadido por uma sensação de ridículo. Deveria ter observado que, em torno a mim, ninguém estava em pânico. Aeroportos no deserto são assim mesmo, apenas uma pista cercada de areia por todos os lados. Meu medo decorria de falta de informação. E passei quatro anos sem voar.

Medo irracional, direis. Claro que sim. A maior parte dos medos é irracional. Mas é medo, que se vai fazer? Resolvi enfrentá-lo. Que era o quê me fazia medo? Não era o medo de avião. Era o medo de morrer. Vamos então enfrentar a tal de morte. Não é o destino natural de todo homem? É. Então, por que ter medo? Além do mais, a morte de avião em geral é uma benção. Alguns minutos de agonia, ou segundos, ou talvez nem mesmo isso, como parece ter sido o caso dos sinistrados da TAM. E fim. Sem maiores sofrimentos, nem entubações, nem dias de hospital. Voltei para Paris num vôo dos TAP. Lembro que avião estava quase vazio. Levantei os braços de três poltronas, atei o cinto, deitei-me e dormi como um anjo, se é que anjos dormem. Hoje, já nem sinto quando o avião decola.

Um dos sonhos de minha Baixinha era morrer em um acidente aéreo. Já que temos de morrer, que seja rápido. Mais ainda: pessoas que se querem bem, melhor que voem juntas. Se têm a suprema ventura de um acidente fatal, nenhum fica chorando vida afora a perda do outro.

Costumo afirmar que a velhice é uma preparação para a morte. Chega um dia em que viver se torna não só trabalhoso como sofrido. Neste momento, para quem não crê em potocas do Além, nada mais bem-vindo que a morte.
 
18 de agosto de 2013
janer cristaldo

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