domingo, 4 de janeiro de 2015

PIOR É O GALO

Por acaso, numa esquina da web,  descobri que Fernando Sabino e a minha escritora preferida trocaram cartas por mais de 10 anos. De vez em quando, eu  me entrego a  descobertas desse tipo. Não sei se preciso explicar para você o que quero dizer quando digo que me entrego a descobertas desse tipo. Mas por via das dúvidas vou traduzir o enigmático da coisa, com outra coisa perfeitamente compreensível que fará você concluir: - Ah, entendi!
 Essa coisa é: hoje de manhã, quando abri a porta da minha casa, no jardim, uma flor! Uma flor que não estava ali ontem, nem antes de ontem,  nem nunca, de repente, hoje pela manhã, fez o seu debut no jardim, em delicadeza de espanto.
 Delicadeza de espanto é um espanto delicado, suave, de moto contínuo,  e a flor não sei o nome só sei que lembra um papagaio tricolor que não se mexe, apenas existe, e a sua existência muda me consola.
  A muda flor no jardim  e a alegria suave que ela me concede pode ser enquadrada no quesito “descobertas desse tipo”.
Essa  descoberta  não faz  “fá”  nem “fu” na escala musical,  mas calha de  me consolar. No meio de uma tarde acostumada,  a tarde nua se veste de delicadeza, e isso é a própria delicadeza de espanto que, em alegria suave, me consola. Ou talvez você entenda melhor se eu disser: Essa vida nua que, de repente, encontra uma forma diáfana de se vestir – me espanta, me preenche,  e me consola.
Tenho dito!
Em algum lugar, de quando em quando, existe uma delicadeza de espanto esperando ser identificada. Pois eu identifiquei a delicadeza de espanto na flor do meu jardim e na troca de cartas entre ele e ela. Chamemos assim: ele e ela.
 Não sei que nome dar a essa relação tão singela, tão século passado – e não é que foi ontem e já se fez século passado? – Então, pois que seja, mas  não sei que nome dar a esse encontro entre dois seres tão frágeis e tão iguais:  amor ou amizade?
Creio que  ambos, porque o amor sem amizade não tem alicerce para segurar a onda sozinho durante anos.
Tenho comigo que essas cartas revelam uma relação des-catalogada. Mesmo que nelas não haja um compromisso explícito ainda assim  a leitura que faço é: A) Uma amizade profunda que se transmutou num amor impossível. B) Um amor impossível que na impossibilidade mesma do amor,  tornou-se uma amizade indestrutível. C) Uma atração recíproca que, por algum motivo – cônjuges, filhos, sociedade e  TFP, – teve que se esconder nas cores sóbrias da amizade, os dois por fora verde e amarelo, ardendo intempestivamente - vermelho roxo- por dentro.
 Escolha qualquer uma das três opções e você terá grandes chances de acertar.
 Ninguém tente me convencer de que uma troca de correspondências entre amigos sobreviveria a 10 anos de vai e  vem pelo correio, sem que a atração entre um homem e uma mulher não fosse a causa primária do primeiro vai e vem.
Pensem comigo: -hoje vou escrever para Fernando – diz a minha escritora preferida.  Então providencia recolhimento, solidão, caneta e papel e faz o rascunho.
 Aqui tenho que parar para me dizer uma coisinha: Escritor não vive sem rascunho,  a própria vida do escritor é um rascunho  que nunca será passado a limpo. Enquanto a vida de todo mundo não tem rascunho, a vida do escritor é um rascunho. E o pior: o ser  se contenta com o rascunho.   
Continuando: Depois  de escrita, - a carta –a escritora  passa a limpo e sofre. Sofre o resto do dia, relendo aquela que não tem nenhum sofrimento aparente mas – que remédio? – tem sofrimento escondido.
 Ela sabe que ele sabe identificar o sofrimento escondido, e por isso sofre duas vezes: pelo sofrimento que escondeu numa alegria inventada, e pelo sofrimento que ele descobrirá escondido no meio da alegria inventada.
  Em seguida, dobra, envelopa, e escreve o endereço. Ela em Nápoles, Itália, ou em Berna, Suiça, ele no Rio de Janeiro,  Brasil dos brasis ou em Belo Horizonte, sede da TFP. O Rio é a sede da emoção, BH a sede da razão. Em BH, sede máxima da razão, o cartório, presente da família da mulher.  E a mulher. E a responsa- bil-idade.  Em Nápolis ou em Berna, o pragmatismo que resolve a vida, essas coisas comezinhas  que pedem resolução imediata. No Brasil, o espiral da fumaça que surge do meio dos dedos, sem capacidade de resolução nenhuma, a não ser a que vem da escrita,  que acalma, mas não resolve a vida de ambos.  Eita mundo cruel!
 Tendo em vista que essa correspondência esteve oculta até bem recentemente, penso que no envelope, Fernando era Fernanda e a minha escritora preferida  era Maurice. Dessa forma, quando as cartas chegavam com regular frequência, ninguém estranhava que Fernanda escrevesse tanto para  a amiga, como também ninguém estranhava que Maurice escrevesse tanto para o amigo.  O marido, a esposa, os filhos, e até o carteiro devem ter-se comovido muitíssimo com essa amizade entre duas amigas e entre dois amigos. Desconfio que foi no que  se tornaram: dois bons amigos.  
Carteiros. Carteiros,  antigamente,  sabiam de coisas que até Deus duvida. Hoje, não. Hoje quem sabe é o Google. Mas antes do advento da web, era o carteiro quem flagrava os amores possíveis e os impossíveis. Aos 17 anos eu tinha um – seria amor, seria amizade? – eu tinha um correspondente no Rio De Janeiro, na Rua São Francisco Xavier, e o endereço até hoje tenho na cabeça, tantas vezes o escrevi.  
Durante cinco anos – pelo menos -, eu ia ao correio todos os dias e postava uma carta. E não era de uma página não. Era uma carta gorda com muitas páginas onde cabia tudo - a tristeza grande e as alegrias pequenas, nesse número: tristeza no singular grandona, -uma tristeza existencial imensa aos 17 anos de idade!  e pequenas alegrias no plural.
Já naquela época eu sofria da síndrome de desagregação de ideias sem papel. Fora do papel minhas ideias se desagregam. Pois então: todo dia eu escrevia a carta, lia, lia, lia, entendia, sofria, e postava a carta. Em troca, todo dia recebia uma carta, ele também completamente contaminado pela mesma síndrome. Éramos dois desesperados pela necessidade de ler e escrever e líamos a nós mesmos nessa orientação muda e solitária onde ninguém resolve o problema do outro porque incapazes somos de resolver os próprios.
 O carteiro, esse que na época comandava toda a agência,  mal fechava o malote, atrasava a saída da correspondência – juro que é verdade!- se eu não tivesse postado a  carta  do dia. Ele me sabia toda, sabia da minha urgência, e se, por acaso, a carta do lado de lá não me fosse entregue no ato – toma lá, dá cá - revirava o malote, solícito, jamais admitindo a hipótese de que aquela moça tão sozinha pudesse voltar para casa sem a sua carta resposta do dia. Isso durou anos e só acabou quando: quando acabou. 
Pois hoje, a delicadeza de espanto da flor veio somar à lembrança das cartas – não apenas das minhas, mas daquelas que Fernando Sabino e a minha escritora preferida trocaram por vários anos- e para não dizer que estou demasiadamente delicada vou terminar com um sms que recebi da minha filha Silvia, com todas as abreviações que compõem a linguagem dos torpedos. Te prepara que é divertido:
“ Mãe, vc tá triste? Fica não. Pior é o galo: tem um filho frango, é marido da galinha, dorme no pau duro, e ainda canta para acordar o dia.”
Pois é. Pior é o galo.

04 de janeiro de 2015
ana maria ribas bernardelli

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