sábado, 27 de agosto de 2011

IN MEMORIAM RICHMOND


Em algum momento de sua obra, Kafka fala de uma casa ideal, onde todo mundo poderia entrar a qualquer momento e sair quando bem entendesse. Ora, essas casas sempre estiveram a seu lado, em sua Praga natal. São os bares e restaurantes.

Em A Invenção do Restaurante – ensaio que recomendo aos amantes da bona-xira - Rebecca L. Spang estuda o fenômeno em suas origens, ou seja, em Paris. Considero os restaurantes um dos mais esplêndidos achados da história humana. Foi neste livro que descobri que os restaurantes evoluíram das maisons de santé até o que hoje conhecemos por restaurante.

A palavra decorre de uma paráfrase de um versículo de Mateus (11:28) "Vinde a mim, todos os que estais cansados e oprimidos, e eu vos aliviarei". Lá pelos estertores do século XVIII, um dos primeiros restaurateurs da época pôs na entrada de sua casa esta frase um tanto blasfema: "Accurite ad me omnes qui stomacho laboratis et ego vos restaurabo". Ou seja, corram a mim todos vós cujos estômagos padecem, e eu vos restabelecerei.

O nome deriva de uma sopa, chamada restaurant. Com o tempo, passou a designar as casas que as serviam. Faz bem mais de vinte anos que só viajo para visitar estas casas de Kafka. De museus, bibliotecas, parques, cansei. Cada viagem que faço ultimamente é uma peregrinação de um boteco a outro. Neles não vou apenas beber ou comer, mas ler, estudar e contemplar o mundo. Muitos restaurantes na Europa são salas de leitura e trabalho intelectual. Em Paris, foi em cafés que Sartre, Camus, Simone de Beauvoir e tantos outros construíram suas literaturas. Nesses cafés, elaborei minha tese. Terá sido lá que adquiri um vício, o de ler em bares. Me sinto melhor que lendo em casa.

O primeiro restaurante que conheci em Paris foi o Zero de Conduite. Ficava na rua Monsieur le Prince, ao lado do Parc Luxembourg. Já morreu e ressuscitou em Porto Alegre. Ano passado, fui visitar uma amiga. Ela morava na Fernandes Vieira. Certo dia, ao sairmos de sua casa, me deparei com um restaurante na mesma quadra, o Zero de Conduta. Este cara já morou em Paris, disse a ela.

Em meus dias de Filosofia, tive aulas por quatro anos com Gerd Bornheim, intelectual bastante conhecido no Rio Grande do Sul nos anos 60. Foi cassado pelos militares em 69. Em 71, em minha primeira visita a Paris, hospedei-me no Grand Hotel Saint Michel, na rue Cujas, ao lado da Sorbonne. De Grand o Saint Michel nada tinha, era apenas um une étoile muito freqüentado por brasileiros, e gerido pela folclórica Madame Salvage.

Certo dia, ao voltar de madrugada, quando fui pegar a chave, ergue-se de um catre uma calva ilustre e familiar. Era o Gerd, que trabalhava como porteiro da noite. Convidou-me para uma janta no dia seguinte. Fomos no Zero de Conduite, a duas quadras do hotel. O restaurante fazia homenagem ao filme homônimo de Jean Vigo. Foi lá que conheci esse delicioso queijo grego, o fetá. Ora, um Zero de Conduta em Porto Alegre só podia ser obra de quem vivera em Paris nos anos 70.

Foi lá também que conheci uma brava iugoslava de quem muito gostei. O restaurante tinha uma grande mesa de madeira, para umas vinte pessoas, na qual os clientes iam sentando ao lado uns dos outros. Minha tese era sobre Ernesto Sábato. Certo dia, estou em meio a um pichet de rouge, relendo Sobre Heroes y Tumbas. A minha frente, senta-se uma menina com El Tunel em punho. Ali mesmo começou nossa relação. Era uma adorável poeta peoniana, tão altiva quanto seu conterrâneo, Alexandre, o Grande. Acabei por dedicar-lhe minha tese. Naquele almoço, o deus Acaso estava agendando minhas futuras viagens a Dubrovnik, Skopje e Mljet.

Volto a Porto Alegre. Dois ou três dias depois, entrei no Zero de Conduta para uma cerveja. A bem da verdade, nem havia notado que era o Zero de Conduta. Havia uma pequena biblioteca no restaurante, onde encontrei vários livros em sueco, principalmente de culinária. Fui até o caixa. Quem fala sueco aqui?

- Jag – me respondeu o caixa.

Havia morado cinco anos em Estocolmo. Naqueles dias, eu estava publicando neste blog, em capítulos, minha tradução de Kalocaína. Falei de meu blog e passei-lhe meu cartão.

- Ah, és o Janer. Estive em teu apartamento em Paris.

Resumindo: nessas casas de Kafka tive os melhores encontros de minha vida. Neles li, estudei, conversei, aprendi, ensinei, namorei, vivi dias felizes. Quando chego em Paris, antes mesmo de abrir as malas no hotel, vou voando ao Rélais de l’Odéon. É como se voltasse para casa. Meu sonho de paraíso, já devo ter contado, é uma terrasse em Paris, numa manhã ensolarada de inverno, com uma Leffe e vários livros e jornais em punho. Vida eterna assim certamente não seria monótona.

Adoro restaurantes centenários. Se um restaurante atravessou dois ou três séculos, isto é certificado de qualidade. Em Madri, meu dileto é o Sobrino de Botín, considerado o mais antigo do mundo, fundado em 1725. Em Paris, o Procope, fundado em 1686. Há uma discussão sobre a antiguidade de ambos. O Procope pode ter sido fundado antes, mas teve interrupções em seu funcionamento. Já o Botín teria funcionado ininterruptamente de 1725 para cá.

São casas que me dão uma certa idéia de eternidade. Nós passamos, os restaurantes ficam. Eu morrerei, mas o Botín continuará por mais séculos servindo seus magníficos cochinillos y corderos lechales. Embora tenha futuro, lá me sinto um pouco como em uma estalagem da Idade Média. Mal chego a Madri, vou correndo para seus salões ancestrais.

Mas restaurantes também morrem, e já nem falo de São Paulo, onde uma casa com apenas meio século de idade pode ser considerada antiga. Tive nestes dias uma triste notícia. Fechou em Buenos Aires o Richmond, na calle Florida, fundado em 1917 e freqüentado por escritores como Jorge Luis Borges, Oliverio Girondo e Leopoldo Marechal. Foi comprado pela Nike, que deve instalar uma loja no local que foi um dos cenários boêmios da capital argentina.

Ano passado, passei belas tardes no Richmond, em suas poltronas de couro e mesas de mármore rosa, sob seus lustres solenes, acompanhado de uma também bela amiga. Me encharquei em seus tragos largos. Trago largo é um drinque tipicamente buenairense, que vem acompanhado de frutas y otras cositas más. Depois de dois ou três Setimos Regimientos, yo oía clarines.

Perdi também em Buenos Aires um outro café charmoso, El Reloj. Se bem me lembro ficava numa esquina da Suipacha e foi lá que tomei contato com a literatura de Ernesto Sábato. O que conheço de mundo aprendi em bares, não em minhas universidades.

Alguns de meus cafés diletos, contrariando o sentido da História, estão morrendo antes de mim. Mas em Buenos Aires ainda resta o La Biela, onde degustei alguns Malbecs com Sábato. Suponho que o Procope e o Botín só morrerão quando o sol engolir a Terra.

O que está previsto para daqui a cinco bilhões de anos. Até lá, muito vinho há de rolar pelas gargantas.
Janer Cristaldo

MEU FILHO, VOCÊ NÃO MERECE NADA

A crença de que a felicidade é um direito tem tornado despreparada a geração mais preparada

Ao conviver com os bem mais jovens, com aqueles que se tornaram adultos há pouco e com aqueles que estão tateando para virar gente grande, percebo que estamos diante da geração mais preparada – e, ao mesmo tempo, da mais despreparada. Preparada do ponto de vista das habilidades, despreparada porque não sabe lidar com frustrações. Preparada porque é capaz de usar as ferramentas da tecnologia, despreparada porque despreza o esforço.

Preparada porque conhece o mundo em viagens protegidas, despreparada porque desconhece a fragilidade da matéria da vida. E por tudo isso sofre, sofre muito, porque foi ensinada a acreditar que nasceu com o patrimônio da felicidade. E não foi ensinada a criar a partir da dor.

Há uma geração de classe média que estudou em bons colégios, é fluente em outras línguas, viajou para o exterior e teve acesso à cultura e à tecnologia. Uma geração que teve muito mais do que seus pais. Ao mesmo tempo, cresceu com a ilusão de que a vida é fácil. Ou que já nascem prontos – bastaria apenas que o mundo reconhecesse a sua genialidade.

Tenho me deparado com jovens que esperam ter no mercado de trabalho uma continuação de suas casas – onde o chefe seria um pai ou uma mãe complacente, que tudo concede. Foram ensinados a pensar que merecem, seja lá o que for que queiram. E quando isso não acontece – porque obviamente não acontece – sentem-se traídos, revoltam-se com a “injustiça” e boa parte se emburra e desiste.

Como esses estreantes na vida adulta foram crianças e adolescentes que ganharam tudo, sem ter de lutar por quase nada de relevante, desconhecem que a vida é construção – e para conquistar um espaço no mundo é preciso ralar muito. Com ética e honestidade – e não a cotoveladas ou aos gritos. Como seus pais não conseguiram dizer, é o mundo que anuncia a eles uma nova não lá muito animadora: viver é para os insistentes.

Por que boa parte dessa nova geração é assim? Penso que este é um questionamento importante para quem está educando uma criança ou um adolescente hoje.
Nossa época tem sido marcada pela ilusão de que a felicidade é uma espécie de direito. E tenho testemunhado a angústia de muitos pais para garantir que os filhos sejam “felizes”. Pais que fazem malabarismos para dar tudo aos filhos e protegê-los de todos os perrengues – sem esperar nenhuma responsabilização nem reciprocidade.

É como se os filhos nascessem e imediatamente os pais já se tornassem devedores. Para estes, frustrar os filhos é sinônimo de fracasso pessoal. Mas é possível uma vida sem frustrações? Não é importante que os filhos compreendam como parte do processo educativo duas premissas básicas do viver, a frustração e o esforço? Ou a falta e a busca, duas faces de um mesmo movimento? Existe alguém que viva sem se confrontar dia após dia com os limites tanto de sua condição humana como de suas capacidades individuais?

Nossa classe média parece desprezar o esforço. Prefere a genialidade. O valor está no dom, naquilo que já nasce pronto. Dizer que “fulano é esforçado” é quase uma ofensa. Ter de dar duro para conquistar algo parece já vir assinalado com o carimbo de perdedor.
Bacana é o cara que não estudou, passou a noite na balada e foi aprovado no vestibular de Medicina. Este atesta a excelência dos genes de seus pais. Esforçar-se é, no máximo, coisa para os filhos da classe C, que ainda precisam assegurar seu lugar no país.

Da mesma forma que supostamente seria possível construir um lugar sem esforço, existe a crença não menos fantasiosa de que é possível viver sem sofrer. De que as dores inerentes a toda vida são uma anomalia e, como percebo em muitos jovens, uma espécie de traição ao futuro que deveria estar garantido.
Pais e filhos têm pagado caro pela crença de que a felicidade é um direito. E a frustração um fracasso. Talvez aí esteja uma pista para compreender a geração do “eu mereço”.

Basta andar por esse mundo para testemunhar o rosto de espanto e de mágoa de jovens ao descobrir que a vida não é como os pais tinham lhes prometido. Expressão que logo muda para o emburramento. E o pior é que sofrem terrivelmente. P
orque possuem muitas habilidades e ferramentas, mas não têm o menor preparo para lidar com a dor e as decepções. Nem imaginam que viver é também ter de aceitar limitações – e que ninguém, por mais brilhante que seja, consegue tudo o que quer.

A questão, como poderia formular o filósofo Garrincha, é: “Estes pais e estes filhos combinaram com a vida que seria fácil”? É no passar dos dias que a conta não fecha e o projeto construído sobre fumaça desaparece deixando nenhum chão.
Ninguém descobre que viver é complicado quando cresce ou deveria crescer – este momento é apenas quando a condição humana, frágil e falha, começa a se explicitar no confronto com os muros da realidade. Desde sempre sofremos. E mais vamos sofrer se não temos espaço nem mesmo para falar da tristeza e da confusão.

Me parece que é isso que tem acontecido em muitas famílias por aí: se a felicidade é um imperativo, o item principal do pacote completo que os pais supostamente teriam de garantir aos filhos para serem considerados bem sucedidos, como falar de dor, de medo e da sensação de se sentir desencaixado?
Não há espaço para nada que seja da vida, que pertença aos espasmos de crescer duvidando de seu lugar no mundo, porque isso seria um reconhecimento da falência do projeto familiar construído sobre a ilusão da felicidade e da completude.

Quando o que não pode ser dito vira sintoma – já que ninguém está disposto a escutar, porque escutar significaria rever escolhas e reconhecer - equívocos – o mais fácil é calar. E não por acaso se cala com medicamentos e cada vez mais cedo o desconforto de crianças que não se comportam segundo o manual. Assim, a família pode tocar o cotidiano sem que ninguém precise olhar de verdade para ninguém dentro de casa.

Se os filhos têm o direito de ser felizes simplesmente porque existem – e aos pais caberia garantir esse direito – que tipo de relação pais e filhos podem ter? Como seria possível estabelecer um vínculo genuíno se o sofrimento, o medo e as dúvidas estão previamente fora dele? Se a relação está construída sobre uma ilusão, só é possível fingir.

Aos filhos cabe fingir felicidade – e, como não conseguem, passam a exigir cada vez mais de tudo, especialmente coisas materiais, já que estas são as mais fáceis de alcançar – e aos pais cabe fingir ter a possibilidade de garantir a felicidade, o que sabem intimamente que é uma mentira porque a sentem na própria pele dia após dia.
É pelos objetos de consumo que a novela familiar tem se desenrolado, onde os pais fazem de conta que dão o que ninguém pode dar, e os filhos simulam receber o que só eles podem buscar. E por isso logo é preciso criar uma nova demanda para manter o jogo funcionando.

O resultado disso é pais e filhos angustiados, que vão conviver uma vida inteira, mas se desconhecem. E, portanto, estão perdendo uma grande chance. Todos sofrem muito nesse teatro de desencontros anunciados. E mais sofrem porque precisam fingir que existe uma vida em que se pode tudo. E acreditar que se pode tudo é o atalho mais rápido para alcançar não a frustração que move, mas aquela que paralisa.

Quando converso com esses jovens no parapeito da vida adulta, com suas imensas possibilidades e riscos tão grandiosos quanto, percebo que precisam muito de realidade. Com tudo o que a realidade é. Sim, assumir a narrativa da própria vida é para quem tem coragem.
Não é complicado porque você vai ter competidores com habilidades iguais ou superiores a sua, mas porque se tornar aquilo que se é, buscar a própria voz, é escolher um percurso pontilhado de desvios e sem nenhuma certeza de chegada. É viver com dúvidas e ter de responder pelas próprias escolhas. Mas é nesse movimento que a gente vira gente grande.

Seria muito bacana que os pais de hoje entendessem que tão importante quanto uma boa escola ou um curso de línguas ou um Ipad é dizer de vez em quando: “Te vira, meu filho. Você sempre poderá contar comigo, mas essa briga é tua”. Assim como sentar para jantar e falar da vida como ela é: “Olha, meu dia foi difícil” ou “Estou com dúvidas, estou com medo, estou confuso” ou “Não sei o que fazer, mas estou tentando descobrir”. Porque fingir que está tudo bem e que tudo pode significa dizer ao seu filho que você não confia nele nem o respeita, já que o trata como um imbecil, incapaz de compreender a matéria da existência. É tão ruim quanto ligar a TV em volume alto o suficiente para que nada que ameace o frágil equilíbrio doméstico possa ser dito.

Agora, se os pais mentiram que a felicidade é um direito e seu filho merece tudo simplesmente por existir, paciência. De nada vai adiantar choramingar ou emburrar ao descobrir que vai ter de conquistar seu espaço no mundo sem nenhuma garantia.
O melhor a fazer é ter a coragem de escolher. Seja a escolha de lutar pelo seu desejo – ou para descobri-lo –, seja a de abrir mão dele. E não culpar ninguém porque eventualmente não deu certo, porque com certeza vai dar errado muitas vezes. Ou transferir para o outro a responsabilidade pela sua desistência.

Crescer é compreender que o fato de a vida ser falta não a torna menor. Sim, a vida é insuficiente. Mas é o que temos. E é melhor não perder tempo se sentindo injustiçado porque um dia ela acaba.

Eliane Brum (Jornalista, escritora e documentarista), Revista Época
Ganhou mais de 40 prêmios nacionais e internacionais de reportagem.
É autora de Coluna Prestes – O Avesso da Lenda (Artes e Ofícios), A Vida Que Ninguém Vê (Arquipélago Editorial, Prêmio Jabuti 2007) e O Olho da Rua
(Globo).

A CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE: UM FATO CULTURAL

Tarzan representou durante muitos anos o símbolo da masculinidade. O grande mito do sobrevivente independente, decidido, amante da natureza... A reunião de virtudes que modelaram ideológicamente o mundo cultural do masculino. É interessante observar a representação da identidade e a sua construção. Ou seria o contrário? A representação reproduz o arquétipo a partir da identificação dos impulsos e necessidades do mundo masculino contemporâneo?

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