domingo, 27 de junho de 2010

JOSÉ SARAMAGO

NA ILHA POR VEZES HABITADA

Na ilha por vezes habitada do que somos, há noites,

 manhãs e madrugadas em que não precisamos de


morrer.


Então sabemos tudo do que foi e será.


O mundo aparece explicado definitivamente e entra


em nós uma grande serenidade, e dizem-se as


palavras que a significam.


Levantamos um punhado de terra e apertamo-la nas


mãos.


Com doçura.


Aí se contém toda a verdade suportável: o contorno, a


vontade e os limites.


Podemos então dizer que somos livres, com a paz e o


sorriso de quem se reconhece e viajou à roda do


mundo infatigável, porque mordeu a alma até aos


ossos dela.


Libertemos devagar a terra onde acontecem milagres


como a água, a pedra e a raiz.


Cada um de nós é por enquanto a vida.


Isso nos baste.


Não me Peçam Razões...
Não me peçam razões, que não as tenho,

Ou darei quantas queiram: bem sabemos

Que razões são palavras, todas nascem

Da mansa hipocrisia que aprendemos.

Não me peçam razões por que se entenda

A força de maré que me enche o peito,

Este estar mal no mundo e nesta lei:

Não fiz a lei e o mundo não aceito.

Não me peçam razões, ou que as desculpe,

Deste modo de amar e destruir:

Quando a noite é de mais é que amanhece

A cor de primavera que há-de vir.

postado por m. americo

A MAIORIDADE PENAL E A VIOLÊNCIA DO MENOR


É voz corrente a discussão sobre o problema da redução da maioridade penal. Projetos no Congresso, polêmica nos transportes coletivos, nos bares e botecos da vida. Alarmados com a violência e a criminalidade de menores, a sociedade recorre ao que lhe parece mais coerente: a punição do menor.

Mas quem é o menor no mundo do crime?

Ando por uma Avenida do Rio de Janeiro. Sábado, quase 5 horas da tarde. Ainda faz um calor já quase suportável. Sob uma marquise, em frente a calçada de uma loja comercial, uma criança, idade por volta de 13 ou 14 anos, deitada em cima de uma folha de papelão. Sujo, maltrapilho, solitário no seu sono público, nada o incomoda. Mas o que mais poderia incomodá-lo? As pessoas passam, ignorando aquela criança jogada na calçada. Alguns reclamam de atrapalhar o trânsito dos pedestres; outros olham com certo receio. Ouço alguém comentar: deve estar drogado... A maioria ignora. Paro e observo a reação dos passantes. Uma senhora de idade avançada, tem o olhar de compaixão. Para diante dele por momentos. Deixa passar um sentimento de tristeza, nos seus olhos cansados. Retoma o seu caminho. Sigo-a com o olhar, enquanto se move lentamente, até perder-se na multidão.

Mas quem é o menor no mundo do crime?

Restaurante universitário. Colegas de turma conversando. Um deles diz, referindo-se a algum crime recente: “não importa quantos anos tenha! É criminoso e como tal, deve ser punido!”. "Puni-lo? Isso significa jogá-lo numa cela, onde irá aperfeiçoar-se e associar-se a quadrilhas? Esse negócio  é que significa “punição legal”? Alguém do grupo replica: “Se o sistema penitenciário não oferece as condições ideais para o menor criminoso, já estamos em outra esfera...” Da ponta da mesa, uma acadêmica fala: “E a escola não seria uma forma melhor de recuperá-lo, se o Estado e a Sociedade tivessem verdadeira intenção de discutir melhor o assunto? Investir em educação, não seria um caminho melhor e mais condizente com os direitos humanos da criança, do que discutir projetos de redução da maioridade penal?” Sigo em frente, imaginando como é grande a sensibilidade de um coração feminino.

Da janela do carro, somente consigo enxergar as pequeninas mãos, segurando uma caixa de balas, no meio do trânsito. Miúda, seu rosto não alcança o vidro do carro. Não vejo suas feições, não posso adivinhar sua idade, mas imagino que sua pequena e incipiente vida tem a dramática e gigantesca dimensão da miséria. Abre o sinal. Sigo em frente e olho pelo retrovisor. Lá está ela driblando os carros que ignoram aquela pequena vendedora ambulante, quase perdida no asfalto.

Mas quem é o menor no mundo do crime?

Há milhões de jovens sem trabalho, sem vida social decente, sem escola. Nessa multidão, milhares de crianças de rua abandonadas, e outras tantas viciadas, prostituídas, envolvidas com o tráfico, com a contravenção, com o crime. Como responder a uma urgência dessa ordem? Como recolocar a criança como uma esperança de futuro e não um problema criminal? Por que não discutir projetos educacionais includentes da infância marginalizada, maiores investimentos em escolas, em oficinas pedagógicas? Por que não discutir projetos para a maioridade educacional, com formação geral e profissional, projetos de vida e ambientação cultural, música, esportes e tantas outras possibilidades educacionais, através de aldeias pedagógicas? É preciso olhar cada criança como a responsabilidade de cada cidadão que vira o rosto, e apenas procura proteger-se atrás de projetos estúpidos, quando deveriam propor modelos de proteção às crianças abandonadas.

Mas quem é o menor no mundo do crime?

Hoje a maioridade penal se dá quando a pessoa completa 18 anos, já que o critério adotado foi o critério etário, que estabelece uma idade definida como a fronteira que divide a compreensão dos atos e fatos sociais, podendo ser responsabilizado por eles. Antes desse marco, não é capaz de entender a sua conduta, para assumir a responsabilidade dos seus atos.

Na verdade, trata-se de uma ficção. Convencionou-se que exatamente à zero hora do dia anterior ao seu aniversário, quando a pessoa completa 18 anos, magicamente aquele indivíduo passa a compreender tudo o que faz, ao contrário do minuto anterior, quando ainda não havia completado a maioridade, não compreendendo os fatos de uma realidade social. Uma ficção jurídica, que já não atende a modernidade.

Suponhamos que a maioridade penal fosse rebaixada para 16 anos, asseverando-se que um jovem de 16 anos e um dia, que mata, deveria ser tratado como se adulto fosse, isto é, tratando-o como maior para efeitos penais, e tal se daria com o rebaixamento da maioridade penal brasileira.

Esse raciocínio releva o mesmo equívoco anterior, pois magicamente o jovem com 15 anos e a um dia de completar 16, não entenderia sua conduta; mas um dia depois, ao completar 16 anos, passaria a compreender o caráter criminoso de sua ação.

Alguns países encontraram um critério talvez mais justo e adequado, ao propor a verificação, caso a caso. Ao apurar se a criatura, ao cometer um delito, poderia entender o caráter criminoso do ato praticado, através da aplicação de critérios metodológicos interdisciplinares, envolvendo exames psicológicos, psiquiátricos, sociológicos e jurídicos. Tais países determinaram uma idade mínima, bastante baixa, por exemplo, 12 anos e a partir desse patamar, atribuir-se-ia responsabilidade penal, desde que o indivíduo entendesse o feito, submetido que seria a verificação realizada naquele exame. Trata-se do critério bio-etário ou bio-psicológico.

Um país continental como o nosso, não poderá fixar uma idade cronológica para todas as suas Regiões, considerando-se as diferenças sócio-econômicas reinantes. Um jovem de 15 anos de idade, de um grande centro urbano, sujeito a todos os apelos de escolarização, informação e tecnologia, não pode ser comparado a outro de 15 anos, nascido e criado em ambientes desprovidos de qualquer recurso cultural, que não tem acesso a qualquer meio de escolarização e informação; digamos para exemplificar, plantando milho e capinando do nascer ao por do sol. Qualquer legislação que os iguale pelo critério de maioridade cronológica, seria absurda e injusta, além de ignorar as discrepâncias culturais.

Assim, retomo o critério de que se discutam projetos de natureza cultural e educacional; que se discutam projetos econômicos voltados para a educação e a todos os aspectos que gravitam em torno da pobreza. Que se tenha mais respeito pela cidadania da criança e do jovem.

M. AMERICO