domingo, 21 de junho de 2015

ESTADO, NÃO SE META!

Está em curso, no Ocidente, um enorme projeto de reengenharia da sexualidade humana. É a Ideologia de Gênero, ou da ausência de sexo. 
O igualitarismo é seu objetivo, e a diferença, o inimigo a ser atacado mediante desconstrução. Para tanto pasme leitor! , sem nenhuma evidência científica, contra o que a observação da natureza revela, seus difusores sustentam que ninguém nasce homem ou mulher, macho ou fêmea.

Afirmam que a sexualidade é uma construção social, sujeita a mudanças, definida e redefinida de inúmeros meios e modos, desde quando o bebê é vestido de tal ou qual cor. Assim, o sexo deixa de ter significado para a definição do masculino e do feminino.

Livre pensar é só pensar, ensinava insistentemente Millôr Fernandes. É livre o direito de teorizar, de ideologizar, de expor teses. O problema é quando se transforma um disparate qualquer em objeto de ação do Estado. 
Foi o que aconteceu há alguns anos com a produção de material didático sobre sexualidade infantil para distribuição nas escolas. O conteúdo era tão abusivo e tão absurdo, que foi rejeitado pela própria presidente Dilma. Pois aquilo já era produto da Ideologia de Gênero, que pretendeu, posteriormente, se tornar conteúdo obrigatório no Plano Nacional de Educação, o PNE. 

Quando o projeto do governo foi submetido ao Congresso Nacional, as duas Casas suprimiram todos os dispositivos relativos a esse assunto, mantendo uma regra simples e correta: “erradicação de todas as formas de discriminação”. 
No entanto, como costumam fazer quando contrariados, os promotores da desconstrução das diferenças buscaram outros caminhos para chegar onde pretendiam. Optaram pelo mais comum. Reuniram-se consigo mesmos noutro fórum e decidiram segundo queriam. 
Foi o que aconteceu na Conferência Nacional de Educação, quando os mesmos conteúdos suprimidos da lei federal retornaram oficialmente como orientação para os programas estaduais e municipais.

Agora, deputados estaduais e vereadores em todo o país deliberam sobre o tema nos respectivos planos, desatentos à lei federal e em obediência à ideologia hegemônica da burocracia educacional.

O Estado, os governos, seus funcionários, jamais receberam da sociedade, e tampouco das famílias, poderes para orientar a sexualidade e o comportamento sexual das crianças e dos adolescentes. Esse é um papel da natureza e dos pais. 
O Estado não é nem pode ser educador sexual. Além de ensinar os conteúdos curriculares, nos quais falha clamorosamente, que ensine a não discriminação, o respeito mútuo e a responsabilidade. E, no mais, que não se meta!

21 de junho de 2015
Percival Puggina

O OTIMISTA E O PESSIMISTA

Um barzinho qualquer. Uma conversa qualquer, aquela que melhor convir.

– Droga de vida!
– Por que isso, cara?
– Ah, essa porcaria toda.
– Mas que porcaria?
– Essa estrumação onde vivo.
– Esse papo de novo? Não tem nada de tão ruim em sua vida.
– Ah, não? Quer que eu enumere?
– Cara, acho que você só reclama por reclamar. Tipo, você se acostumou com isso, e parece se sentir seguro com esta situação.
– Eu não me acostumei a reclamar. Mas acho que me acostumei a sofrer.
O Otimista e o Pessimista





– Então, enumere.
– Quê?
– Você falou sobre enumerar a porcaria toda. Enumere.
– Ah, essa droga toda.
– Que droga, cara?
– Essa vida, esse fedor.
– Você está sendo evasivo.
– Meus dias, meu passado, meu futuro.
– Ainda evasivo.
– O que quer que eu diga?
– Seja específico.
– Ah, você não quer que eu enumere, quer?
– Quero, sim.
– Ok, ok, animadão. Olhe ao redor. Olhe isso. Olhou?
– Aham.
– Agora, olhe para mim. O que está vendo?
– Hum… Meu melhor amigo. Um cara bacana, engraçado, culto…
– Cale a boca. Você me deprime com esse papo cara.
– Isso se chama elogio sincero.
– Elogio, elogio. As pessoas precisam de elogios para ter coragem de enfrentar o dia seguinte, isso sim. Tipo, um combustível. Esse papo todo, balela.
– O que quer que eu diga?
– Quero que enumere o que há de ruim em mim.
– Não, senhor. Não mude o rumo das coisas. Quem vai enumerar é você.
– Ok, ok… Vamos lá. Tá preparado?
– Claro.
– Não vá chorar.
– Tenho certeza que não.
– Como pode ter tanta certeza?
– Para de enrolar e fale logo.
– Ok, ok. Primeiro: – Ergueu o dedo indicador. – Meu passado. Desde criança… Assim, desde molequinho mesmo. Catarrento e tudo mais. – Parou. Um instante. Uma reflexão. –  Fala a verdade: você me acha mesmo um cara bacana?
– O mais bacana que conheço.
– E esse papo todo de ser engraçado…
– Não é papo. Quem te conhece, sabe disso.
Baixou o dedo indicador. Começou a rir.
– Já te contei sobre o que aprontei naquelas férias com a turma, ano passado.
– Não.
– Não mesmo? Cara, foi show…
21 de junho de 2015

TRATADO GERAL DA GOIABADA




An essay concerning the making of a good goyabada


Perguntavas-me muitas vezes por que eu fazia uma goiabada tão gostosa - e pedias a receita. Eu dizia que, como Leibniz, eu gostava de ter prazer no prazer do ser amado: tu. "E a receita?" - eu eludia a questão: não há receita, há um "procedimento". Ademais, querida, dona do meu coração, este procedimento é Alchímico (com ch é mais bacana.). Fazer uma boa goiabada é como fazer L'oeuvre en Noir - fazer ouro. Ou a Philosophical Stone, l'élixir de vie e a Universalmittel. Veja só a importância de uma boa goiabada. Aprendi o procedimento, escrito em linguagem hermética, no Necromicron, aquele livro maldito que nunca existiu e que o Lovecraft me emprestou e eu devolvi. Mandei por sedex, para ele, em Providence, antes de eu nascer e depois de ele morrer.

Então, por amor a ti e enfrentando todas as maldições, ameaças e feitiços da Kabbala - aí vai, mas tenho que perguntar, tal como O Coelho Branco, para o Rei (ou será a Rainha?): "Where shall I begin, please, your Majesty?" E o Rei (ou a Rainha), do alto de sua sabedoria real, disse "very gravely": "Begin at the beginning [you ass] and go on till you come to the end: then stop."

E assim, seguindo o mais sábio, ilustre, real e lógico conselho - começo pelo começo. E o começo da goiabada é a goiaba!

DAS BRIEF

Minha Michelle Pffeifer, minha Sharon Stone; minha Julieta, minha Beatriz; minha Isolda, minha Heloisa; minha Laura; minha Greta Garbo, minha Lillian Gish, minha Louise Brooks - minha mulherzinha amada: chamamos, com derrisão, essa sobremesa popular, goiabada com queijo, de "Romeu e Julieta". É realmente popular - mais até: vulgar. Está presente nos bandejões, nos restaurantes modestos, na mesa dos pequenos burgueses do Riachuelo e afins, nos botecos e quartéis ¹. No entanto, a goiabada com queijo (amarelo, não branco) pode ser uma notável, refinada e saborosíssima sobremesa. 
O que é necessário é coragem para admitir isso e ter uma goiabada decente. Como, então, ter uma goiabada decente - e mais do que decente - uma goiabada que se possa comparar às boas sobremesas? Tal é o objeto desse tratadinho sobre a goiabada.

A goiabada vulgar revela, apesar de tudo, um certo gosto que nos desperta o senso do prazer. Há algo de gostoso mesmo na mais vulgar goiabada - que certamente vem da própria fruta. Então, como, de que maneira, podemos captar em toda a sua inteireza aquilo que sentimos, difuso, na mais vulgar das goiabadas - translúcida, melenta, saturada de chuchu, doce demais, envolvida em deplorável folha de poliestireno? Isto é: como apreender a essência, a ousia, o quidditas, o quod quid erat esse - o que era antes de ser (veja Aristóteles, Metafísica, z 7, 1032b 1-2) ei\doz deV levgw toVtiv h^n ei^nai e&kavstou kaiV thVn prwvthn ou*sivan da goiabada, da goiaba? Essência que se capta no seu maior esplendor quando os açúcares da goiaba - a frutose - reagem quimicamente com o açúcar da cana, refinado, e se transforma em uma molécula única pelo processo de "caramelização"? Isto é, na verdadeira, pura, refinadíssima e maravilhosa goiabada - que só perde em gosto para o da mulher amada.

Eis o segredo, eis a questão: "to be" (a true goyabada) "or not to be" (a true goyabada). "That is the question."

O segredo é de polichinelo - só exige cuidado. Eis o caminho.

Primeiro, a matéria prima: a goiaba. Um truísmo: a goiaba é o fruto da goiabeira. Então, goiabeira - Arvoreta - isto é, pequena árvore da família das mirtáceas Psidium guayava nativa da América tropical - isto é: não há goiaba na Inglaterra, nos Estados Unidos e no Canadá (os ingleses a acharam na Índia - mas não desenvolveram a goiabada). É amplamente cultivada pelos excelentes frutos édulos (que é uma forma pedante de dizer comestível. Michele Pffeifer, por exemplo, é édula.).

Goiaba, diz também Mestre Aurélio, é indivíduo chato, bolha. Agora, Santo Agostinho dizia (não lembro mais onde) que tudo merece ser bem feito. inclusive a goiabada, deduzo.

Tudo o que é bom custa esforço, tudo o que vale a pena tem seu preço em trabalho. Fazer uma goiabada digna tem seu preço, além do preço das goiabas, do açúcar e da conta do gás.

II

Você há de ir à feira - ou à Cobal (nunca delegue esta importante missão a fâmulos) - e escolher suas goiabas. Olho atento, tato apurado, olho de águia, mãos de cirurgião (ou de amante.). Exija escolher. Sempre.

Então, primeiro a escolha - escolha goiabas belas, grandes, sadias e, sobretudo, maduras, isto é: bem amarelinhas e suaves ao toque. A doçura do toque, essa suavidade que você sente em cima - na superfície - mas que te revela a verdadeira suavidade em baixo - no âmago. Ah, meu Deus, quantas lembranças!. A goiaba é muito feminina.

Segundo. Nunca, nunca muitas goiabas. No máximo dois quilos (três exigirá muito trabalho e paciência). Cada vez é uma única vez (como o ato de amor.). Goiabada boa é goiabada verdadeira, com personalidade própria.

Então, estamos de posse de dois quilos de lindíssimas, extremamente femininas goiabas maduras, amarelinhas (de interior vermelho, como deve ser.) Que fazemos? Pelamo-las. Isto é: tiramos a casca delas. Uma faca bem afiada, para retirar a casca com cuidado - bem fininha, justo o amarelo, para que nossa goiabada única renda bem e para que o ligeiro amargorzinho que há sob a pele permaneça. Há aí um certo gostinho.

E estão as goiabas nuinhas. Então, criminosamente, com a faca sobre uma tábua - de madeira (e não de poliestireno) - cortamos as goiabas. Ou se preferir, with a mash, smash the poor goyabas. Este ato criminoso deve ser executado impiedosamente: quanto menores os pedaços, melhor. No entanto, atenção! Muitos desavisados - e, suspeito, preguiçosos - jogam o miolo fora. Nunca faça isso: o melhor da goiaba (e da goiabada) está lá. O miolo é macio, terno e doce. É cravejado de sementes (por isso é chamado de polisperma - do grego: muitas sementes, isto é, polu+ sperma).

Então a maldade maior: depois do esquartejamento, do corpo e do coração dessa fruta tão feminil, ponha tudo em uma panela funda. Para adoçar, acrescente duas xícaras de açúcar (use, refinada e um tanto viadamente, xícaras little onions, azuis.). Em seguida, ponha tudo a ferver, e mexa com uma colher de pau. Atenção: colher de pau de doce deve ser longa para não queimar os dedos de quem se ama. A colher, de preferência, não deve ser nova e não deve ser usada para outra coisa que não seja o sagrado ofício de fazer doces. (enforque na trave do porão o criminoso que ousar sequer misturar a colher do doce com a de comida salgada.). Se tiver que usar uma nova, lave-a bem (para tirar o pó da madeira) e ferva-a em água com açúcar. para adoçá-la para o seu doce ofício. Fogo brando - e mexa, mexa, mexa. Há de se formar uma massa rosada e as goiabas partidas ou esmagadas, tornar-se-ão moles, formando muito fluido. Não o desperdice: é puro ouro. Quando estiver bem macia pegue outro recipiente (de vidro, se possível), tire a panela do fogo e ponha-a ao lado dele.

III

"Aí começa a aporrinhação" (como diria Vinícius.)

Pegue uma peneira e uma colher de sopa. Vá passando, da peneira para outro recipiente, a doce massa rosada das goiabas bem amadas, mas sempre pela malha da peneira, até separar completamente as fibras e as sementes, mas eu disse completamente, nada de preguiça.Só devem restar as fibras e as sementes. Aquela babinha que você vai se sentir tentada a abandonar - já com o braço doendo de tanto esfregar a colher na peneira -, junto com as sementes é a alma da goiabada. Você já reparou como a fruta é mais gostosa junto do caroço? Terminada essa dura faina, transfira de novo a massa - que agora não é mais massa, mas um espesso fluido rosa - que já aspira à dignidade de goiabada - para a panela. Antes, porém, - isso é importante - cate todas as sementes que porventura tenham ficado nela - senão, cuidado com os dentes, obturações etc. E não lave a panela! Cate as sementes! Todo o dulcíssimo e espesso fluido volta para ser fervido mais uma vez. Fogo brando. E tampe, mas não totalmente. Também faz a pressão aumentar e a temperatura subir (veja cap. vii ou ix de qualquer tratado de Termodinâmica). E, principalmente, evita que a suave mão (que acaricia) da mulher amada fique queimada. Porque o raio da goiabada, nesse momento do seu fazer, pula paca. Salpica a gente de gotas quentíssimas que fazem desagradáveis bolhas na pele.

Deixe. "mijotando" (a feiíssima palavra que os franceses empregam para o ato de ferver em fogo brando) mas, de vez em quando, dê uma mexida (na goiabada!.) para não grudar no fundo. Você verá que progressivamente, ela se tornará mais espessa e mais vermelha.

Aí você tem que optar por um de dois caminhos.

Quando a massa estiver pastosa, você apaga o fogo, deixa esfriar e examina o trabalho.

Segue em frente e seja o que Deus quiser (au plaisir de Dieu). Mas aviso: quem se apressa, come cru.

É um momento muito importante da feitura da goiabada. A goiabada gostosa é um compromisso entre o grau de doçura e o grau de consistência. Você não pode ter uma goiabada não muito doce (o que é ótimo porque o sabor da goiaba se acentua) e ao mesmo tempo bem puxa-puxa - isto é: com aquele docinho delicioso do caramelo e aquela consistência agradável do puxa-puxa. Por isso é aconselhável parar, examinar - e meditar.

Primeiro: se tiver pouco açúcar a massa não brilha. Como definir esse brilho? Bem, é um não ser fosco. Quando o açúcar está no bom caminho a massa tem um brilho suave, não é fosca e é bem unie, diria o raio de um francês. Então você está no bom caminho.

Aí você prova. Prova frio. A massa, se você a tocar com um dedo, não deve grudar nele mas ceder, deixando a marca do dedo. E o grau de doçura você avalia, digamos, empiricamente: é questão de gosto. E a consistência você avalia com a colher.

Se estiver bem para você, você pára; mas aconselho a ir um pouco adiante. Volte ao fogo, dessa vez bem forte, todo o fogo do inferno com toda a fúria de uma woman scorned. (William Congrave não dizia: "Hell hath no fury like a woman scorned?" - de resto, frase erroneamente atribuída a Shakespeare por esta besta que vos escreve). Armada com sua colher de pau você mexe furiosamente (o doce.) senão gruda no fundo, queima, forma grumos pretos, um horror!. Você se sentirá uma diaba, a verdadeira Belzebu, assando pecadores. Os lados da panela vão ficar brancos e o fundo tenderá a formar uma película escura, queimada. Mexa furiosamente até sentir cheiro de queimado. (Não, não é nada disso, sua. vestal.) Aí pare. Acabou. Você estará suada, talvez com bolhas nas mãos, mas a doce, suave, maravilhosa goiabada estará lá. pronta.

Retire enquanto está quente e ponha em um pote, tigela, seja o que for que tenha tampa.

Não esqueça: aquela goiabadinha que ficou na panela - a raspa - no fundo e nos lados (nos lados, mas não muito em cima, na parte perto do fundo que não ficou branca) é o que há de mais gostoso. Raspe suavemente com uma colher e coma escondido e não conte pra ninguém. a raspadinha é pouca. e só quem conhece o segredo sabe. (Se fosse eu a fazer a goiabada, me certificaria de que a temperatura é boa, pediria à mulher amada que abrisse a boca e fechasse os olhos e daria a melhor parte - com todo o necessário carinho - como um gentleman deve fazer.)

Agora, se você não se agradou do grau do doce e consistência, ponha mais açúcar. O brilho da massa aumentará e a consistência ficará mais espessa. Cuidado porém - é melhor ir por tentativas do que ter pressa. Pela Graça do Senhor, tudo no mundo é diferente e não há nada igual (veja Princípio de Identidade dos Indiscerníveis de Leibniz). Cada goiaba é diferente da outra, então não há fórmula para a quantidade de açúcar porque o doce da goiabada é a soma do doce da goiaba com o doce do açúcar. Este você controla; mas o da goiaba, que veio direto de Deus, não. Só a experiência poderá resolver.Este horrível fato, que evidencia a falha de todo racionalismo radical (que Leibniz,o supremo racionalista, aponta), é o segredo da goiabada.

Ponha mais açúcar então. Volte ao fogo - ao fogo do inferno - mexa e prove outra vez. Se estiver a seu gosto, termine o serviço. Você terá uma goiabada mais doce e mais caramelizada. Questão de gosto. E de gustibus coloribusque non disputandum est. Para o latim, pergunte à Laurinha e ao João.

Uma coisa, porém, é certa: não há doce gostoso sem o processo de caramelização. Mais doce ou menos doce, a caramelização é necessária: sem a fusão em uma única molécula dos dois açúcares (das duas "essências" diria um aristotélico, um escolástico, um raio de um tomista ou neo-tomista), não há doce bom o suficiente para nossas línguas metidas a besta.

A que mandei para você é menos doce - isto é: sacrifiquei o puxa-puxa pelo menos doce, preservando o sabor da goiaba. Mas o puxa-puxa tem seus encantos. Os dentistas adoram - aumenta o mercado deles, arranca obturações.; mas que delícia! Grave problema metafísico sobre o qual medito em minhas longas noites de insônia, velho que sou.

Tal é o mundo da Goiabada.

Te amo de paixão - carnal e espiritual. Assim como forma (mor?hv) e matéria (uJlhv), em Aristóteles: inseparáveis.

Saulo Th. Pereira de Mello,
sweets maker
outubro de 2006


1 Estava sempre presente no restaurante universitário do Calaboço (antes ou depois de chegada da polícia.).

*cobal (Companhia Brasileira de Alimentos)
21 de junho de 2015
Saulo TH. Pereira de Melo, sweet make

O AGENTE CLANDESTINO




Anda desanimado e com sentimento de culpa? Pode haver um Toxoplasma no seu cérebro, tentando atrair um gato



Quem faz a cabeça do brasileiro é o Toxoplasma gondii. Não adianta dizer que nunca o viu mais gordo. O Toxoplasma gondii é assim mesmo, "incrivelmente comum e incrivelmente obscuro", segundo o jornalista Carl Zimmer, que outro dia o apresentou aos leitores do New York Times numa página cheia de superlativos. 
Zimmer tratou-o como uma "criatura extraordinária" e "espantosamente bem-sucedida". E lançou no caminho da fama esse personagem onipresente mas discreto, ainda que prive da intimidade de pelo menos um terço da humanidade. Sem conhecê-lo, no mínimo 2,2 bilhões de pessoas convivem diariamente com o Toxoplasma gondii.

No Brasil, ele se supera. Está envolvido com praticamente 67% da população. Alojado em 126 milhões de brasileiros, tem fôlego de sobra para tornar as mulheres mais afetivas, os homens mais conformistas e ambos os sexos mais propensos a levar a vida sob o influxo de vagos sentimentos de culpa e desconforto social que nem imaginam de onde vêm.

Depois de desprezá-lo por mais de setenta anos como um parasita vulgar, desses que só em casos especiais - grávidas e portadores de hiv, por exemplo - merecem exame de laboratório, os médicos deram agora para desconfiar que, sob a influência do Toxoplasma gondii, os infectados têm reações estranhas. 

Seu comportamento pode pender para lados opostos. A pessoa manifesta uma atração insensata pelo perigo e, ao mesmo tempo, uma paradoxal aversão a mudanças. Isso lembra alguém que você conhece? Pois é. Pode ser obra dele. Toxoplasma gondii, o protozoário, age clandestinamente.

Carl Zimmer farejou a notícia num documento publicado este ano pela Royal Society, de Londres, a respeitabilíssima academia de ciências do Reino Unido. Tratava-se de um relatório sobre possíveis reflexos do Toxoplasma gondii nas sociedades humanas, com seis páginas e meia de texto e duas só para a bibliografia, que arrolava 35 trabalhos científicos. 

O título era instigante: "Pode o Toxoplasma gondii, parasita comum do cérebro, influenciar a cultura humana?". 
Além de publicar o achado no New York Times, Zimmer discutiu-o no site The Loom, sua tribuna cativa na internet, e dali o parasita se espalhou, como se nadasse livremente num caldo de cultura virtual. O Toxoplasma gondii animou debates entre sanitaristas e criadores de gatos domésticos. Contagiou até o Stereophile, um blog para iniciados em aparelhos de som que entrou na conversa tachando Zimmer de "guru do Toxoplasma".

Zimmer é fã confesso de parasitas, esses monstros microscópicos que povoam as profundezas intracelulares de homens e bichos, "transformando qualquer órgão do corpo - a trompa de Eustáquio, a garganta, o cérebro, os rins, o tendão de Aquiles - em seu lar". Ele já foi ao Sudão para ver de perto, num hospital de campanha em Tambura, a máscara mortuária do Trypanosoma que provoca a doença do sono. Viajou à África "como certas pessoas vão à Tanzânia atraídas por seus leões ou a Komodo por seus dragões", ele conta em Parasite Rex, livro que é um modelo de rigor jornalístico em ritmo de ficção científica. "Passe algum tempo em Tambura", relata o jornalista, "e as pessoas à sua volta ficarão transparentes, como constelações cintilantes de parasitas". O livro lida com micróbios, vermes, protozoários, ácaros e tênias, tudo, enfim, que viva à custa dos outros. Assunto não falta, pois os parasitas dominam a Terra, batendo de quatro a um a soma de todas as criaturas capazes de existência autônoma. "A história da vida é, na maior parte, parasitologia", resume.

Os parasitas são vítimas de uma longa história de incompreensão. A começar pelo nome. "Parasita" vem da palavra grega para designar o criado que servia comi- da em banquete. Eles fazem o contrário: servem-se num banquete de vida alheia. Os cientistas hesitaram muito em levar os parasitas a sério. Charles Darwin baniuos do esquema geral da seleção natural, supondo que essas criaturas "rastejantes" eram desvios regressivos no curso natural da evolução. Logo eles, que parecem estar na vanguarda dos processos evolutivos, mudando tantas vezes de forma quantos forem os desafios ao seu talento adaptativo e habilitando-se a viver nos ambientes mais impróprios. Nós, por exemplo.

Bilhões de seres humanos são ninhos inconscientes de Toxoplasma gondii. Esse parasita oblíquo e dissimulado pode varar a membrana das células de autodefesa e penetrar seu núcleo como clandestino, iludindo as barreiras imunológicas do cérebro, tido como o último bastião do organismo contra micróbios patogênicos. Ele fura as muralhas orgânicas como "cavalos de Tróia", diz Zimmer. Uma vez no cérebro, dali ninguém o tira, entre outros motivos porque o Toxoplasma gondii se esmera em perturbar o mínimo possível a vida de seu anfitrião. "Ele simplesmente vai ficando por lá, e o hospedeiro não o reconhece como um invasor que deveria ser destruído", afirma David Sibley, professor de microbiologia molecular.

O Toxoplasma gondii chamou a atenção dos cientistas no Instituto Karolinska, de Estocolmo, pelo refinamento dos métodos que emprega na conquista de território. "Quando procuramos parasitas no sangue, encontramos muito poucos, e eles pareciam estar apenas nadando em círculos", conta o pesquisador Antonio Barragan. Engano. A essa altura, como a equipe constataria depois, o Toxoplasma gondii já embarcara em células dendríticas, que normalmente disparam os alarmes do sistema imunológico. Estava, portanto, camuflado, em uniforme de combate, pronto para se imiscuir cérebro adentro. Havia feito tudo isso poucas horas depois de apear no organismo. "E se acaso ele estiver dirigindo essas células para se mover e se disseminar pelo corpo?", indagou-se Barragan. O grupo testou a hipótese, injetando Toxoplasma em células dendríticas descontaminadas. Elas se tornaram instantaneamente hiperativas, agitando-se sem parar na lâmina do microscópico pelo resto do dia.

O Toxoplasma gondii é implacavelmente contagioso, mas age como se não passasse de uma infecção benigna. "As pessoas raramente percebem o que está acontecendo durante uma invasão", explica Zimmer. No máximo, podem sentir dores no corpo, garganta irritada e outros sinais que se confundem com sintomas de gripe, enquanto lá dentro o protozoário captura células em alta velocidade, para gerar nessas incubadoras 128 cópias quase instantâneas de si mesmo. É a fase da infestação, que passa em poucos dias. Demarcado o território, o Toxoplasma entra em estado de dormência. A essa altura já formou quistos, onde poderá esperar ("confortavelmente", segundo Zimmer) o momento em que a carne de seu hospedeiro for parar no tubo digestivo de um gato. Como essa transição dificilmente acontece na existência de um homem civilizado - pelo menos desde 1898, quando os ingleses exterminaram os leões que devoravam operários na ferrovia do Tsavo, na África -, a espera costuma ser longa. E o Toxoplasma gondii vai ficando.

Ele "manipula elegantemente" o sistema imunológico de seu hospedeiro. Se exagerasse na agressividade, tomando tudo a seu alcance, acabaria a bordo de cadáver. E um corpo inanimado não é a melhor condução para quem almeja descer pela goela de um gato. Os felinos são caçadores, não se interessam por carniça. E o parasita precisa que as vísceras onde se aninhou acabem, mais cedo ou mais tarde, no aparelho digestivo de um gato.

Enquanto não chega a hora, para manter a ordem na hospedaria o Toxoplasma gondii libera esporadicamente, durante a hibernação, moléculas que desencadeiam pequenas reações imunológicas do hospedeiro. Elas matam exclusivamente os invasores ainda livres. Não atingem os parasitas previamente encapsulados nos cistos. É um alarme falso, em proveito do status quo. Funciona como um toque de recolher, para que o parasita alcance nas melhores condições a terra prometida.

Essa terra prometida é o gato. Sem ele, o ciclo não fecha. Só nas paredes do intestino de um gato começa a festa nupcial do Toxoplasma gondii, que ali se divide para gerar machos e fêmeas e voltar à terra nas fezes do felino. Os homens são, para ele, "becos sem saída", e talvez tivessem passado longe dessa história, se não cruzassem com tanta freqüência o caminho que une os gatos aos ratos. Não sendo vetores naturais do parasita, nós o embarcamos sem bilhete para a baldeação seguinte.

Banal e aparentemente inofensiva, essa praga assintomática até pouco tempo atrás dispensava cuidados médicos, porque não parecia fazer muita diferença na vida de uma pessoa saudável que não estivesse em gestação. De repente, descobre- se que o Toxoplasma pode alterar perigosamente o comportamento humano, como fez com ratos de laboratório na Universidade de Oxford. Postos num labirinto de tijolos, com cantos marcados por odores que deveriam repeli-los ou atraí-los, eles mostraram uma atração suicida por urina de gato, cujo cheiro levaria ao pânico qualquer rato com os instintos de autopreservação em bom estado. Quando se tratava de procriar e comer, as cobaias infectadas pareciam normais. Mas, diante do rastro que deveria afugentá- las, comportavam-se como latas abertas de ração que implorassem para ser engolidas. Chegavam mesmo a exibir um interesse mórbido pelo canto assinalado com urina de gato. Visitavam o lugar com freqüência. Procediam como "roedores camicases", diz Carl Zimmer.

"Não se trata apenas de perda de um comportamento natural", diagnosticou o neurobiologista Ajai Vyas, da Universidade Stanford. "É um novo comportamento que está sendo induzido." O Toxoplasma não mata, mas induz os ratos ao suicídio, borrando os códigos instintivos da sobrevivência. Ratos impávidos que desafiam a morte dificilmente irão muito longe. Mas oferecerão ao parasita um atalho providencial para perpetuar a própria espécie, numa refinada estratégia evolutiva que não se esperaria encontrar em inteligências unicelulares. Vyas apresentou suas conclusões em maio, num encontro anual da Sociedade Internacional de Neurociência do Comportamento. E, com isso, o gondii saiu da gaveta.

Da descoberta do que o protozoário faz com ratos à suspeita do que pode fazer com a personalidade humana, foi um pulo. Com o parasita no corpo, "os homens se tornam menos propensos a submeter-se aos padrões morais da comunidade, preocupam-se menos com a possibilidade de serem punidos por quebrar as normas sociais de conduta e confiam menos nos outros", resume Zimmer. Em compensação, sabe-se lá por quê, "as mulheres ficam mais afetuosas e cordiais". Os dois sexos divergem em muitas reações. Mas ambos perdem uma dose do medo mais funcional, que os afastaria do perigo. A alteração não chega a ponto de "levar uma pessoa a se atirar aos leões". É suficiente apenas para anunciar que, lá no fundo, algo está maquinando seu destino. É o indício de que o protozoário decifrou "o vocabulário dos neurotrasmissores e hormônios" da vítima.

Não é de hoje que os médicos conhecem alguns desses sinais, mas só agora puderam ligá-los a esses microorganismos, que vêm equipados, segundo Zimmer, "com uma vasta farmácia, abarrotada de drogas que têm utilidade em diferentes ocasiões e cumprem diversos fins". 

Anos atrás, quando preparava o livro Parasite Rex, Zimmer entrevistou Kevin Lafferty nos manguezais de Carpinteria, na Califórnia. Espantou-se ao encontrar um cientista em camiseta de cores berrantes, com um peixe fosforescente no peito e compleição de quem surfara as ondas de boa parte da Costa Oeste americana. Lafferty estudava na ocasião um parasita chamado Euhaplorchis californiensis, que se apropria de moluscos comuns nas praias da região e, com eles, usurpa as entranhas dos peixes. Até aí, nada demais.

A novidade, para Lafferty, é que depois de infectados pelo Euhaplorchis os peixes dão para nadar de maneira estranha, quase na superfície, e de lado, como se fizessem questão de serem vistos de longe pelas gaivotas, maçaricos e outras aves marinhas. O que eles ganhariam com isso? Trinta vezes mais chances de serem comidos antes dos outros. É assim que o parasita viaja por via aérea para outras praias, em busca de caramujos frescos.

Foi Lafferty quem publicou semanas atrás a tese de que o Toxoplasma gondii provavelmente explica "uma percentagem estatisticamente significativa de variações na neurose agregada das populações humanas, assim como nas dimensões culturais neuróticas dos papéis sexuais e na aversão aos riscos". Em outras palavras, que esse protozoário afeta o comportamento coletivo. Estava na trilha desbravada por Jaroslav Flegr, o médico de Praga que encontrou as primeiras pegadas do Toxoplasma gondii em seus pacientes. Inclusive, em testes de inteligência.

Abrigar "no cérebro um parasita que está tentando ser levado para dentro de um gato" produz, segundo Laffery, "mudanças de personalidade". Como os gatos "raramente comem seres humanos", ele reconhece que o Toxoplasma gondii perde tempo quando manipula o estilo de vida deles. Mas, "em termos evolutivos", "também não tem nada a perder". Logo, enjaulado na carne errada, o parasita continua a fazer o que sempre fez, com resultados muitas vezes contraditórios. Flegr observou que seus pacientes infectados eram mais apreensivos, inseguros, preocupados e ansiosos, com uma queda para a autoflagelação. O que Lafferty fez foi misturar esses traços individuais na massa das estatísticas sociais, perguntando se, nos países onde a infestação é mais disseminada, as alterações de comportamento virariam caráter nacional.

A resposta foi sim. Parece fora de dúvida que as altas taxas de infestação coincidem, por exemplo, com o menor interesse por novidades e o sentimento de culpa generalizado. Tratando-se de um erro essencial de hospedeiro cometido pelo Toxoplasma gondii, os resultados não podiam mesmo ser muito coerentes. Mas Lafferty comparou dados de 39 países, em cinco continentes. Descartou as tabelas difíceis de interpretar, como as da China, do Japão, da Coréia do Sul, da Turquia e da Indonésia, onde não conseguiu discernir tradição de sintoma. Descontou fatores como idade e renda per capita. Sobrou da filtragem uma "correlação significativa" entre o Toxoplasma gondii e a tal "neurose agregada" da população. A convergência é "positiva". Ou seja, "numa proporção substancial da sociedade humana", afirma Lafferty, "a variação geográfica da prevalência latente do Toxoplasma gondii pode estar por trás de diferenças nos aspectos culturais relativos ao ego, ao dinheiro, às posses materiais, ao trabalho e às normas de conduta".

O grau em que a "correlação significativa" se manifesta varia com a taxa de incidência do parasita. Nos Estados Unidos, onde anda em queda, ainda atinge pelo menos 50 milhões de americanos. O próprio Zimmer disse na internet que pediria uma bateria de exames clínicos na sua próxima consulta médica. "E não seria o primeiro", alegou. Com o Toxoplasma gondii turbinado pelo alto consumo de carne crua, a Hungria tem 58,9% da população infectada, índice estratosférico para os padrões sanitários da Europa. Ele é muito comum na Argentina, a terra do bife malpassado: está em 52,7%. Na França, onde a população foi considerada por Lafferty "bastante neurótica", a infestação chega a 45%. Na Austrália, cai a 28%. Na Coréia do Sul, não vai além de 4,3%. O clima tropical o favorece. E o aquecimento global tem tudo para transformá- lo num parasita decididamente cosmopolita. Mas em geral ele se dá melhor nos países pobres. Concentrações urbanas sem saneamento básico o estimulam. E onde viceja a promiscuidade entre gente, gato e rato, o Toxoplasma gondii encontra o mundo que pediu a Deus.

Somente dois países superam 60% na lista de Lafferty. Um deles é a Iugoslávia, que se desintegrou na guerra civil dos anos 90, mas ainda consta do relatório com 66,8%. O outro é o Brasil, campeão mundial de Toxoplasma gondii, com 66,9%. O que isso quer dizer? Provavelmente, não muita coisa. Deve ser um índice a mais, como tantos que pululam nas pesquisas de opinião pública.


21 de junho de 2015
Marcos Sá Corrêa

BEATLES


As contradições entre o apaulíneo e o johnisíaco ajudam a explicar a permanência da música do grupo inglês


Ainda outro dia, um amigo me mandou um e-mail contando que havia presenciado uma cena saída diretamente do seriado Túnel do tempo. Encostados no balcão do BB Lanches, no Rio, dois garotos, de no máximo 13 anos, conversavam assim: "Você sabe por que eles fizeram Taxman? Porque na Inglaterra tinha imposto pacas. Eles fizeram uma música de protesto!". Ao que o outro aquiesceu, acrescentando mais um caminhão de informações sobre o hino antitributário do álbum Revolver.

Meu amigo ficou estupefato. Era como se nós dois estivéssemos ali, 30 anos antes, tomando um suco depois do colégio. Nessas três décadas, o mundo virou do avesso. Acabou a guerra fria, o regime militar, a paz no Leblon. Sérgio Dourado faliu, Star Wars cansou, Joey Ramone morreu. Foi-se tudo e mais um pouco. Mas os garotos ainda estão lá, falando dos Beatles.

Alguns historiadores do rock atribuem o fenômeno às vantagens do pioneirismo - os Beatles foram as pessoas certas no momento certo. Tinham o talento, o visual e a ousadia necessários para ocupar o vazio deixado pelo esgotamento criativo de Elvis, Chuck Berry, Little Richard e companhia. Mal despontaram para o estrelato, entenderam a importância de se posicionarem na vanguarda de uma década revolucionária. E foram assim pavimentando o caminho para a explosão internacional do rock, a difusão da contracultura e a grande revolução musical e comportamental dos anos 60.

Embora sensato, o argumento se refere apenas ao passado. Não explica nada sobre a permanência dos Beatles. Nenhum moleque vai sair da sua casa e ir até o camelô da esquina comprar um CD por conta do papel histórico de uma banda na formação do mundo moderno. Além do quê, sejamos objetivos: os anos 60 terminaram faz tempo. Permanece então a pergunta: como pode alguém se apaixonar pelos cabeludos de Liverpool em meio ao cinismo e à desesperança do século XXI? Como pode um jovem saudável contrair a febre da beatlemania em plena era do hip-hop e da cultura digital? O palpite é simples. A música - tudo se resume à música.

Os quatro nunca foram instrumentistas virtuosos. Ninguém encontrará um solo de 15 minutos num disco dos Beatles. Mas eles tocavam com convicção, com gosto. Num estilo próprio, inigualável. Utilizando até a última gota os recursos técnicos a seu dispor. Quando necessário, sabiam acolher a contribuição de amigos brilhantes. E, como num passe de mágica, o convidado era incorporado ao som da banda, tornando-se o quinto elemento: Clapton arrancando gemidos da sua Les Paul em While My Guitar Gently Weeps, Billy Preston incendiando Get Back com seus teclados endiabrados.

Outra virtude: eles cantavam bem. Talvez sem o virtuosismo de Ray Charles, Sam Cooke ou Aretha Franklin, mas com fabuloso esmero. Cantar não é apenas uma questão de extensão vocal e técnica apurada. É também possuir um bom timbre, e usar a voz com caráter, potência, precisão. Quem pode resistir ao suíngue vigoroso de Lennon em Twist and Shout ou ao charme nostálgico de McCartney em When I'm Sixty-Four? Quem consegue ser mais expressivo que John em I'm So Tired ou mais irado que Paul em Helter Skelter? Mesmo George e Ringo tinham seus momentos. A performance do homem dos anéis em Boys merece figurar em qualquer antologia de rockabilly. Os vocais de Something fizeram a cabeça até do exigente Sinatra.

Eles eram também mestres da harmonia. Sabiam como poucos combinar suas vozes, fazer arranjos, colorir as canções com impecáveis duetos e corinhos. De If I Fell a Because, John, Paul e George fizeram o diabo. Durante seus anos de formação, os três beberam na melhor escola da música negra americana, ouvindo muito rythm'n'blues e soul music. Eles se ligavam mais no som de gravadoras como a Motown, a Stax-Volt e a Atlantic do que propriamente no blues raiz da Chess Records, porém ainda assim curtiram, aprenderam e internalizaram uma música negra legítima. Cheia de balanço, alegre, contagiante. Que os influenciou até o final - especialmente ao blackman McCartney. Let It Be não é outra coisa senão um poderoso hino gospel cantado por um pastor de alma retinta.

Eles tocavam tudo, ouviam tudo. Sabiam aprender e recriar. Poucos grupos, em toda a história do rock, conseguiram ser uma banda cover tão boa como os Beatles. Os quatro tocavam Please Mr. Postman, You Really Got a Hold on Me, Roll over Beethoven, Money (That's What I Want), Rock and Roll Music ou Kansas City vários furos acima dos originais. Coisa que nenhum dos demais integrantes da invasão inglesa jamais chegou a fazer. Os Stones eram intérpretes sofríveis de Muddy Waters e Howlin' Wolf. Os Beatles cantavam Smokey Robinson melhor que o próprio.

Eram também ousados, destemidos. Capazes como ninguém de desbravar novas áreas para o avanço da música popular. She Loves You, And I Love Her, Yesterday, Norwegian Wood, Day Tripper, Paperback Writer, Strawberry Fields Forever, Lucy In The Sky With Diamonds, A Day In The Life, All You Need Is Love, Lady Madonna e Here Comes The Sun alargaram o universo de possibilidades da música pop, trazendo novas formas de tocar, novos estilos, novas técnicas de gravação, novas estruturas de composição.

Atribuir tanta inventividade apenas ao produtor George Martin (como o fazem alguns críticos) é uma tolice que só pode ser cometida por quem nunca ouviu Sgt. Pepper's Lonely Hearts Club Band- com Peter Frampton e os Bee Gees. Foi o maestro quem produziu o disco. E a genialidade nem passou por perto.

O amadurecimento musical da banda pode corresponder, facilmente, ao amadurecimento natural de qualquer pessoa que vai se descobrindo um amante da música. E, por isso, atrai, conquista, cria vínculos. Além do que, trata-se de um amadurecimento generoso, inclusivo, ponderado, que jamais pretendeu renegar a simplicidade dos primeiros anos. Os Beatles adicionaram novas veredas a sua trilha inicial, sempre com a convicção de que o simples e o complexo são duas formas distintas de se chegar à beleza. Penny Lane nunca será melhor que I Saw Her Standing There. Apenas diferente. Uma forma distinta de se chegar à perfeição.

Adversidade e a amplitude do som dos Beatles criam várias portas de entrada para quem está começando a se interessar por música. Conheço pessoas que se viram atraídas pelo balanço juvenil de I Should Have Known Better, pela viagem indiana de Within You and Without You, pela elegância clássica de Eleanor Rigby, pela lucidez enérgica de Revolution, pelo sabor folk deBlackbird e pela fantasia sing-along de Yellow Submarine. Cada um chegou ao quarteto por uma via diferente; e, a seu modo, todos acabaram por fazer o circuito completo.

Os Beatles eram um mecanismo de criação. Sempre olhando para a frente, sem jamais se escorar no êxito formulaico. A força propulsora desse mecanismo era (eis a minha tese central) a interação dialética de Lennon & McCartney. Uso a palavra sem pedantismo, em seu sentido mais amplo. Dialética é diálogo, embate, discussão. Mas também o jogo permanente e sem descanso. Adição e contradição; unidade e multiplicidade; identidade e diferença. Movimento e síntese. Dois compositores igualmente geniais, mas com inclinações distintas, por vezes opostas. Dois líderes cheios de idéias e talento. Um levando o outro a permanentemente se superar. Ambos avançando: ora juntos, ora separados. Nenhum permitindo ao outro se acomodar. Nenhum aceitando ser deixado para trás.

Em geral, as grandes parcerias musicais são compostas por um melodista e um letrista, que unem forças, formando uma perfeita unidade: Rodgers e Hart, George e Ira Gershwin, Tom e Vinícius, Lieber e Stoller, Page e Plant, Keith Richards e Mick Jagger, Elton John e Bernie Taupin. No caso de Lennon & McCartney tudo muda. Ambos eram compositores completos, autônomos. Mas entenderam, desde cedo, a importância de buscarem um ao outro. Muitas duplas de compositores somam. John e Paul multiplicam.

As narrativas mais comuns da trajetória dos Beatles levam a crer que a parceria Lennon & McCartney existiu apenas na fase inicial do conjunto, tornando-se mais tarde mera convenção. Trata-se de um engano. Eles foram parceiros até o final. Mesmo quando escreviam separados, John e Paul o faziam um para o outro. Pensavam, sentiam e criavam obcecados com a presença (ou ausência) do parceiro e rival.

Sem a contribuição decisiva de McCartney, jamais teríamos algumas das mais inspiradas canções de Lennon. Deve-se a Paul a abertura de Strawberry Fields Forever, o arranjo grandioso de All You Need Is Love, os efeitos de tape de Tomorrow Never Knows, a alucinação de I Am The Walrus, o ambiente sobrenatural de Come Together. Lennon era um purista musical, apegado a suas raízes, calcadas no rock'n'roll, rythym'n'blues e country & western. Quem embarcou de cabeça na vanguarda musical dos anos 60, quem verdadeiramente viajou na explosão sonora lisérgica foi Paul McCartney, um perfeccionista dado a experimentos, colagens, finais falsos, mudanças tonais e delírios orquestrais.

Em contrapartida, sem o olhar crítico de Lennon, sem sua verve e sua wit britânica, os mais conhecidos standards de McCartney teriam sofrido perdas poéticas. A letra reflexiva de Yesterday(inicialmente intitulada "Scrambled Eggs" - ovos mexidos, quando Macca tinha na cabeça apenas uma melodia sem palavras) foi uma clara resposta de Paul ao amadurecimento da poesia de John em I'm A Loser, Help! e You've Got To Hide Your Love Away. Lennon emprestava às baladas e canções pop de McCartney uma lucidez e uma sobriedade fundamentais. Ele sabia reprimir o banal e fomentar o sublime. Foi sentando-se ao lado do companheiro que Paul ganhou confiança para manter na íntegra os versos mais ousados de The Fool On The Hill e Hey Jude. Duas letras de primeira grandeza.

Em algumas canções, um ligeiro toque de Lennon fazia a diferença entre o excelente e o genial. A melhor estrofe de We Can Work It Out é de John: "Life is very short / and there's no time / for fussing and fighting my friend". Sem a intervenção cirúrgica do autor de Being For The Benefit of Mr. Kite e Happiness Is A Warm Gun, tampouco haveria em Eleanor Rigby a estranheza surrealista dos versos: "Waits at the window / wearing the face / that she keeps in the jar by the door /Who is it for?". Do mesmo modo, a entrada em cena de John - na voz dos pais desesperados - é indispensável a She's Leaving Home, talvez a mais comovente e perene canção sobre o conflito de gerações e a juventude drop-out. Canção que inspirou o nosso Rubem Fonseca a escrever a obraprima Lúcia McCartney.

A sombra ameaçadora de Lennon fornecia ainda combustível para os ímpetos rockeiros de seu parceiro e rival. A visionária Back In The USSR traz o humor irônico de John estampado no rosto. Canções como I'm Down e Why Don't We Do It In The Road foram feitas por Paul para mostrar a John que conseguia ser ainda mais primitivo que ele. E Get Back - o melhor rocker de toda a obra dos Beatles - nasceu da (compreensível) irritação de Paul com Yoko e do seu desejo de deixar bem claro quem continuava a ser o dono do pedaço.

Mas como a dialética é uma via de mão dupla, também o lado suave de Lennon se nutria da presença benfazeja de Paul. A belíssima melodia de In My Life é puro McCartney e gemas preciosas como Girl, Because ou Julia têm as impressões digitais do parceiro por todos os lados, ainda que tenham sido escritas na mais monástica solidão.

Nietzsche atribui o caráter dionisíaco aos nossos impulsos rebeldes, subjetivos, irracionais, apaixonados, lunares; forças do transe e da intoxicação, que questionam e subvertem a ordem vigente. Em contrapartida, designa como apolíneas as nossas tendências ordenadoras, objetivas, racionais, serenas, solares; forças do sonho e da profecia, que promovem e aprimoram o ordenamento do mundo. Ao se unirem, tais forças teriam criado, a seu ver, a mais nobre forma de arte que jamais existiu.

Como criadores, tanto o metódico Paul McCartney quanto o irrequieto John Lennon expressavam à perfeição a dualidade proposta por Nietzsche, que ouso traduzir pelos termos Apaulíneo e Johnisíaco. Lennon punha o mundo abaixo; McCartney construía novos monumentos. 

Lennon abria mentes; McCartney aquecia corações. Lennon trazia vigor e energia; McCartney impunha senso estético e coesão. Não raro, os papéis se alternavam, se complementavam, se fundiam.

Quando os Beatles se separaram, essa magia se rompeu. John e Paul se tornaram compositores com altos e baixos; intérpretes com falhas às vezes evidentes. Fizeram coisas boas. Deram material para compilações de peso. Mas raramente se aproximaram da perfeição alcançada pelo quarteto. Sem a presença instigante de Lennon, Paul começou a patinar em letras anódinas e baladas açucaradas. Seus rockers perderam a força vital e muitos arranjos deixaram de ser pautados pelo sentido da boa medida. A alma negra embranqueceu. Não se tornou um compositor ruim. Mas se aproximou perigosamente de Elton John e Burt Bacharach. Mesmo Band On The Run parece por vezes um Abbey Road sem dentes. É música de grande qualidade. Mas os Beatles faziam melhor.

Do mesmo modo, John sofreu com a falta de Paul. Plastic Ono Band, embora genial, é um verdadeiro festival de excessos idiossincráticos. Em Imagine, John ensaia um bem-sucedido retorno à estética Beatle, mas logo em seguida a presença de Yoko irá se impor, destruindo o equivocado Sometime in New York City.

Ironicamente, o grande disco dos ex- Beatles, a verdadeira obra-prima, acabou sendo All Things Must Pass, o álbum triplo em que George Harrison deglutiu os antigos companheiros de banda, abrindo as comportas de sua produção musical, represada durante uma década à sombra de John e Paul. E foi assim, por estranhos caminhos antropofágicos, que a dialética de Lennon & McCartney brilhou pela última vez.


21 de junho de 2015
Marcelo O. Dantas

MILLÔR, UM NOME A ZELAR



Millôr se impõe uma forma fixa, a identidade nominal, e, dentro da prisão de si mesmo, expõe a liberdade



A história é velha e verdadeira. Aos 17 anos, Milton Fernandes viu a sua certidão de nascimento. A caligrafia do escrivão estava desenhada em excesso, era uma profusa confusão de arabescos. Apesar da opulência das linhas e traços, o documento tinha um sentido só, que apontava para um erro de origem: o prenome dele não era Milton, era Millôr. O rapaz gostou da novidade. Trocou o mero Milton pelo nome melhor. Millôr é dos poucos, pois, que rejeitaram a vontade dos pais. Livrou-se do nome imposto, se autonomeou (atenção, bancada vienense: o jovem em questão era órfão de pai e mãe), batizou a si mesmo. Assim virou Millôr, primeiro e único.

O que há num simples nome?, pergunta Julieta a Romeu, no balcão, e ela mesma responde, perguntando:

Aquilo que chamamos rosa, com outro nome não teria igual perfume?

Se Millôr tivesse continuado Milton, teria sido igualmente rosa, continuaria com o mesmo perfume? Há algo de impróprio em se reapropriar continuamente do próprio nome próprio? O cara tem um baita problema de identidade, né não? É um egocêntrico megalômano?

Nem tanto. É longa a tradição, nas artes plásticas, do auto-retrato. Pintar a si mesmo serve tanto de espelho como de disfarce. A série de auto-retratos de Rembrandt pertence à categoria do espelho. Ela registra a passagem do tempo e o artista que muda. O retratista retratado é primeiro guapo mancebo, aí amadurece, depois envelhece e por fim envilece, vira rosto vil. Já Caravaggio, que pintou a si mesmo na cabeça decapitada de Golias, usou o auto-retrato para perder a cabeça, se auto-amputar.

Millôr não se espelha nem se disfarça nem se amputa. Ele se propaga e se reitera. Seus auto-retratos não têm rosto. Eles escancaram um nome e escondem um homem. Ao contrário dos de Rembrandt, os seus auto-retratos não seguem uma seqüência. Não descrevem uma progressão. Vivem mais no espaço do que no tempo: se espalham em todas as direções, incorporando ao sujeito, ao ego, aquilo que está nos arredores do seu nome. À diferença do Caravaggio-Golias (que separa a cabeça do corpo, a mente do espírito, o retratado do retratista), Millôr mostra que cérebro, testa, tronco, membros, pensamento, traços, cores e coração podem formar um todo, desmembrado, que aponta para o infinito. Aqueles nomes todos são ele, Millôr. O que há neles de agudo, de colorido, de curvo e gracioso, tudo que há neles é Millôr.

Convém olhar esses nomes com vagar. Salvo engano, não há nada semelhante na história da arte. O artista se auto-impõe um espaço exíguo, uma forma fixa, os limites estritos de sua identidade nominal. E, dentro da prisão de si mesmo, expõe a liberdade individual. A liberdade tem graça porque transcende o indivíduo.

Outro dia, no seu estúdio, em Ipanema, ao escutar que seus nomes são geniais, Millôr sorriu. Disse que eles não são produto de genialidade, e sim da sua obsessão em se divertir. Ele começou a brincar com a palavra Millôr em 1938, na revista O Cruzeiro. Não parou mais. Perdeu a conta de quantos Millôres fez. Sua arte é a de brincar, de criar, de se recriar. [Mario Sergio Conti]



Memórias de um tempo em que a cachorra Teteca levantava a cabeça, embaixo da mangueira, na única sombra do quintal, e dava para o alto três latidos de protesto. Acho que para Deus. Acho que havia Deus.

por Millôr Fernandes


DOIS MARCOS DO SÉCULO XX

No dia 16 de agosto de 1924 foram inauguradas, nas ruas de Londres, as maravilhosas cabines telefônicas vermelhas, desenhadas por Gilbert Scott. No mesmo dia eu nascia no Meyer. As cabines de Scott não existem mais.


ECMENÉSIA

- Afim de amnésia e de a(m)nestia (perdoa, esquece!).

- Incapacidade da memória reter um certo período, embora permaneça intacta, ou até mais viva, em relação a outros períodos, sobretudo remotos.

- Volta imaginativa a um tempo idealizado, quase sempre da infância.

Dos dicionários que conheço, apenas o A Supplement to the Oxford English Dictionary registra a palavra, com dois abonamentos coincidentes:

1889 Billings Medical Dictionary. "Forma de amnésia em que há memória normal com relação a ocorrências anteriores a determinado período, com perda de memória de acontecimentos do que aconteceu depois dessa data."

1967 Brussel & Cantzlaar Chambers Dictionary of Psychiatry. "Amnésia com memória pobre para acontecimentos recentes mas com memória relativamente intacta para acontecimentos do passado remoto."

Uso ecmenésia só pra mostrar aos eruditos que também sou um deles. Mas, como não sou, emprego a palavra com o carinhoso sentido de querência.


ORIGEM

Essas coisas genéticas, essas formações familiares, esses liames do acaso, são realmente muito estranhos: meus avós maternos nasceram na Itália, meu pai nasceu na Espanha, minha mãe nasceu no Rio. Até hoje não entendo o mistério que os levou a me produzir no Meyer.

Ou em Vila Isabel?

Não me lembro da Vila, onde eu teria nascido, treze anos depois de Noel Rosa, numa casa quase colada à do poeta. Minha irmã Judith chegou a tomar aulas de primeiras letras com Martha, mãe dele.


DECADÊNCIA

Nasci no Meyer. Naquele tempo o subúrbio, quase rural, era uma glória.

Acabaram transformando o subúrbio no seu exato sentido etimológico - sub-urbe.


PLENITUDE

O Meyer era o umbigo do mundo. Vivíamos com a consciência, inconsciente, de que nunca teríamos que abandonar o bairro e a cidade (como muito mais tarde eu iria aprender que era o normal na maior parte das cidades pobres e tristes do Brasil) para sobreviver.


PLENITUDE I

Na época em que nasci, nascer no Meyer, como nascer na Vila, de Noel, bairro-irmão e filial, além de trazer um natural conhecimento de toda a cidade (o Meyer era o epikentron), era, todos sabem, um privilégio.


ANTECIPAÇÃO

O Meyer era pra nós, crianças, um bairro rural. Sou (fui) íntimo de muitos animais; gatos, cachorros e aves, sobretudo, é natural, galinhas. E era comum, não por sacanagem mas por obrigação - vamos lá, também um pouco por sacanagem -, a gente enfiar o mindinho no fiofó das penosas ao cair da noite, pra saber com quantos ovos contávamos pra o dia seguinte. Mais do que ninguém eu sei, na prática, o que é 'contar com o ovo no cu da galinha'.


FRANCISCANOS

Aprendi a nadar (mal e mal) num lagão lamacento, que se formava nos baixios do bairro depois de temporais. Crianças, brincávamos e nadávamos ali, com a consciência natural de que lama é ecologia, e que as rãs pegajosas, que agarrávamos sem nojo ou receio, eram nossas irmãs, sorellas ranas.


ESTIO


Houve um tempo em que havia um andar de cima e um porão. Houve um tempo em que o som de um amolador entorpecia a tarde. Havia uma moringa na janela, refrescando a água. Sempre, a qualquer momento, alguém ainda dormia, nas desencontradas horas da família. Na tarde estorricante do verão, uma cachorra chamada Teteca levantava a cabeça de vez em quando, num piso de cimento embaixo da mangueira, na única sombra do quintal ensolarado, e dava para o alto três latidos lancinantes de protesto. Acho que para Deus. Acho que havia Deus.


O LAR

A casa tinha a parte de baixo e a parte de cima (não se chamavam primeiro andar e segundo andar, nem conhecíamos a palavra piso) e um espaço abaixo do nível, um quarto. Chamava-se "porão habitável". Ao todo uma casa grande, normal habitação de classe média, classe a que, de certa forma, já não pertencíamos. Nosso pai tinha morrido e nossa mãe, aos 27 anos, tinha que arcar com o sustento dos quatro filhos, com minha irmã Ruth recém-nascida. É fácil imaginar o transe.

Só me lembro de minha mãe, depois de toda a faina diária, da qual nenhum de nós sabia nada, mãe era pra cuidar dos filhos, sentada na máquina de costura, altas horas da noite, 9 ou 10 horas da noite, naquele então.


PROUSTIANA

Lá vinha eu, menino, no frio da madrugada, depois de um dia de trabalho das oito da manhã às seis da noite e de mais quatro horas do colégio noturno, Liceu de Artes e Ofícios. Minha rotina era acordar antes das seis e ir dormir, quando cedo, à meia-noite. Piscina. É assim que se chamava. Pois ao chegar em casa só dava tempo de bater com a mão na parede e voltar ao trabalho.

Eu descia do bonde no Largo dos Pilares, andava quilômetro e meio pela Avenida João Ribeiro, passava a estação de Terra Nova, hoje desaparecida e, na mesma avenida, em frente ao Morro do Urubu, entrava em casa. Nenhum medo a não ser um susto ocasional quando um cavalo, ele mais assustado do que eu com o ruído dos meus passos no silêncio da noite, botava a cabeça sobre um muro e relinchava alto.

Inúmeras vezes subi o Morro do Urubu (para nós, meninos, dos Urubus), em busca de modestas aventuras. Mas o que havia era uns poucos casebres, pobreza mal pressentida, era assim que era. E paz, que só conhecemos quando a perdemos. E o que não havia era essa enfiada de quadrilhas de traficantes ferozes, seqüestrando e matando friamente, nem bravos policiais, liberando essas pessoas por acaso, e matando outras pessoas, também por acaso. Li ontem nos jornais.


UNIVERSIDADE DO MEYER

Que eu seja capaz de escrever como escrevo sem pensar sobre meu próprio jeito de escrever se deve, claro, a ser autodidata. Passei alguns anos pela escola, cinco no que antigamente se chamava primário, e cinco no Liceu de Artes e Ofícios. O que me faz um autodidata, pois em ambos educandários aprendi mais o que me ensinaram sem querer do que o que pretenderam, didaticamente, me ensinar. Um professor de inglês do Liceu me ensinou que against era uma gíria bancária e eu aprendi imediatamente, e me certifiquei depois de que o inglês dele era nenhum. Outro professor - quando eu disse, sobre a frase "a árvore era que lhe ouvia os gemidos", que o que era um pronome relativo pessoal, me corrigiu dizendo que era impessoal porque se referia à árvore, e quando eu corrigi de volta, dizendo que era pessoal porque árvore não ouve e aquela ouvia - não teve dúvida, me expulsou da sala. Desde então eu aprendi que "com otoridade não se brinca".

Mas, nesse mesmo Liceu, a lição mais importante me foi dada por um professor de história, Pedro Cardoso, me lembro do nome. Já altas horas da noite, terminadas as aulas (o curso era noturno, durante o dia eu já tinha que ser "famoso" na imprensa, isto é, ganhar a vida), quando a pequena multidão de alunos ia descendo pelas belas escadarias art-noveau do prédio na Avenida Rio Branco, centro do Rio, Pedro Cardoso me deteve num dos patamares e me execrou, devidamente, diante do povo: "Em toda sua vida nunca mais repita isso. Você podia roubar, bater a carteira de seu colega, isso não teria importância. Mas você gozou o seu colega na frente de todos os outros. Humilhou-o. Ele jamais lhe perdoará". Aprendi. Mas foi fora de aula.

Porém meu curso de autodidata foi mesmo no primário. Colégio Ennes de Souza (só muitos anos mais tarde, em Pedro Nava, eu iria descobrir que Ennes de Souza tinha sido um dos "voluntários" da pátria). Minha professora era Isabel Mendes, logo depois diretora, mais tarde (e até hoje), justamente, nome do colégio. Uma mulatinha magra, uma velhota de mais de vinte anos - que adorava ensinar. Mas o que me ensinou mesmo foi o prazer de aprender - a única coisa que um professor pode ensinar. Quando pode. Fora daí é o decoreba, que me diverte até hoje, quando lembro as preposições -a-ante-até-apóscom- contra-de-desde-para-per-perantepor- sem-sob-sobre-trás.

Isabel Mendes me estimulou a ler, a perceber, a querer saber, enfim, me incentivou essa variada, infinita, emocionante, e mórbida, curiosidade intelectual.

Aprendido objetivamente, me lembro apenas do dia em que ela me apontou o relógio dum corredor da escola e me explicou o funcionamento dos ponteiros (sou do tempo em que relógio tinha ponteiro). Maravilhado, num instante de iluminação, percebi como o aparelho marcava as horas. Levei vários dias procurando todo e qualquer relógio, pra verificar se o tempo de um coincidia com o tempo de outro, até perceber que a diferença entre um e outro era a vida que passava.


TEMPOS DE VINÍCIUS

(Nota de quem sempre foi fascinado pela absoluta ocasionalidade da vida, no total de sua extensão e em todos os seus momentos.)

Maravilhoso dia de primavera. Um sol ameno clareia o começo de tarde na Cinelândia. Encontro Vinícius de Moraes, que conheci a vida inteira, travamos uma conversa sem rumo. Estávamos ambos bem vestidos, paletó e gravata, como era próprio naqueles tempos. Ainda não tínhamos atingido a glória e a liberdade da esculhambação indumentária. Vinícius esperava uma amiga (passou a vida esperando uma amiga ou cantando uma que partiu), eu, como sempre sem saber, esperava apenas o destino. De repente este chega na figura de uma mulher baixa, vestida com simples elegância, soignê. Aproximadamente sessenta anos, idade inacreditável numa época em que eu não tinha mais de vinte. Vinícius me apresentou, ela me cumprimentou em castelhano, respondi com um monossílabo, depois não trocamos mais uma palavra. Atravessamos os três a Praça Paris, na Cinelândia, ainda gloriosa em seus cinemas, teatros e confeitarias. Vinícius e a mulher falavam e riam, eu só ouvia. Do outro lado da Avenida Rio Branco ficava um edifício de uns quatro andares - a avenida ainda tinha o aspecto belíssimo do início do século, quando foi traçada e construída.

Entramos no edifício, sede da Radional, companhia internacional de telefonia. Vinícius e a senhora pediram informações e vieram se sentar no banco em que eu estava, continuaram conversando sem tomarem conhecimento da minha presença, eu continuei ouvindo, distraído. Depois de algum tempo, um senhor veio anunciar que a ligação estava pronta. Só aí entendi: era uma ligação internacional o que esperávamos, coisa fascinante naqueles dias pré-internet. O homem indicou uma cabine telefônica fechada, com porta de vidro, mal dando pra duas pessoas. Mas Vinícius, sei lá por que, me puxou também para dentro da cabine. E lá fiquei, espremido entre os dois, enquanto a senhora, pela milagrosa telefonia internacional, agradecia ao mundo ter recebido o Prêmio Nobel.

Tratava-se, como já perceberam os mais cultinhos, da poetisa chilena Gabriela Mistral, naquela época consulesa do seu país no Rio. Tudo bem, mas por que é que eu fui parar dentro daquela cabine?


CIÚME

Leio em Rubem Fonseca: "Jamais me interessei em conhecer homens e mulheres famosos. Mas queria muito ter conhecido aquela telefonista de olhos grandes e vestido comprido que aparecera na inauguração da central telefônica do Rio de Janeiro, no século xx".

Me senti remota mas desgraçadamente traído por Rubem Fonseca nessa referência à telefonista. Afinal, ele e eu, coitado dele!, somos da mesma geração. Mas não!, fui olhar na capa da lista telefônica de Assinantes da Cidade do Rio de Janeiro, 1983: minha paixão é por uma moça magra também de vestido comprido, branco, sapatos brancos, um chapéu branco de abas cobrindo-lhe o rosto. Sentada no banco envernizado de uma central telefônica dos anos 20, ela remexe na bolsa, de cabeça baixa, como quem procura. uma ficha? Havia fichas? Está lá, sentada, imóvel no gesto imutável, rodeada por quatro cabines telefônicas e um balcão de madeira onde três telefonistas esperam o tempo devorá- las. Há um silêncio em volta que era o da época, e agora é o de sempre. Um relógio, pendente do teto, marca eternos dez pra uma. De que dia? De que ano? Não sei. Quando cruzei por aquela moça ela já estava sentada ali há muito tempo e eu já era um velho jornalista.


21 de junho de 2015
Mario Sergio Conti e Millôr Fernandes

MEMÓRIAS DA ILHA GRANDE NO TEMPO DO CÁRCERE




Os barcos não atracavam, descia-se nos ombros dos presos


Meu nervosismo não melhora com o tempo. Levo para a mesinha de cabeceira o meu "Ângelus" luminoso. De meia em meia hora, fico atento na marcha dos ponteiros. Tinha marcado o despertador para as cinco horas. Já às quatro horas, porém, estou de pé. Manhã sombria. E fria. Na meia-luz do gabinete, vejo um bilhete do Caíco: "Papai! Não enjoe. Não naufrague. Não demore! Votos do filho muito agradecido pelos 'extraordinários' encontrados à noite". É que deixei 30 miseráveis contos [de réis] para os três dias possíveis de ausência.

Tomo banho. Visto-me. Barbeio-me. Tomo, apenas, uma xícara pequena de chá puro. E saio, levando a capa de borracha e a malinha de mão. Às cinco horas, passa um ônibus Estrada de Ferro. Tomo-o. Logo num dos primeiros bancos, o Mário Acioly. Sentamo-nos juntos. Alegre. Barbeado. Novo. Um prodígio de conservação, física e moral.

Na Central, às seis horas. Tomamos café com pão. Eu tomo, ainda, dois comprimidos contra o enjôo. E compro um frasco pequenino de "Elixir Paregórico". Depois, vamos aos jornais. Às seis horas, chega o Lemos Brito. De ar cansado. Vermelho. É visível o sacrifício que faz com essas matinadas. Mas, domina-se e pilheria, como se nada fosse. É o Lemos Brito que compra as passagens para o trem, quase vazio, da Central. Onze e oitocentos por pessoa, da Estação Pedro ii até Mangaratiba.

A locomotiva elétrica corre de verdade. Um prazer, a viagem. Lindo, o despertar dos subúrbios. Colegiais, militares e trabalhadores em todas as estações. Um arzinho gelado entra pelas janelas. Vou lendo o relatório de 1944, do Ouropretano Sardinha, diretor de uma das colônias da Ilha, a Cândido Mendes: a outra é a Penitenciária Agrícola de Dois Rios, que tem à frente um coronel da Polícia Militar.

10H

Chegamos a Mangaratiba. A viagem será feita em lancha. Mas lancha moderníssima, que custou 1.400 contos. Chama-se Ministro Adroaldo. Cinzentinha. Nova. Uma beleza! Eu me sento, com o Mário Acioly, no banco dos fundos. O Lemos Brito põe uma boina caricata e vai para a frente.

São nossos companheiros de viagem vários funcionários do Ministério da Justiça. São os encarregados do inquérito administrativo a que responde o diretor da Colônia Candido Mendes, o Sardinha. Conversamos pouco. O Mário Acioly prefere dormir. Eu acho melhor andar, de um lado para o outro. O Lemos Brito já adota outro expediente: dirige a lancha, muito compenetrado, olhos fixos no horizonte, bússola e sextante à frente, mãos firmes no leme.

Durante hora e meia, tudo vai às mil maravilhas. Trepidação pequena. Jogo perfeitamente suportável. De repente, porém, vejo "cações" ao longe. E noto o mar já diferente. Há ondas, não muito fortes, mas bastantes para inquietar. A lancha entra a fazer ziguezagues. As sacudidelas se fazem mais sensíveis. "É o canal" - informa um marinheiro. Aí, estive quase por "devolver" os cafés e o sanduíche. Mas dominei-me.

Dentro em pouco, a Ilha Grande apareceu, com suas praias de areia escura e seu casario branco. Outras ilhas menores perto. Prancha com várias pessoas, automóveis. Crianças uniformizadas. Saltamos faltando dez para o meio-dia. Sol forte, a pino. Nenhum enjôo. Mas, bastante cansaço. Vamos a pé até a casa do diretor da colônia, o dr. Ouropretano Sardinha. Já o conhecia do Conselho Penitenciário. Baixinho. Nervoso. Avelhantado. Médico. Menos de 50 anos aparentes.

Seremos seus hóspedes, em casa. Por quantos dias, não sabemos. O programa é visitar as duas colônias. Nos dois lados da Ilha. Tudo depende do tempo de que necessitarmos. A senhora do Sardinha é uma pessoa encantadora. Foi bonita, possivelmente. Deve ter entre 35 e 40 anos. Morena. De olhos negros e grandes. Boca bonita, mas de dentes maus. Riso simpático e bom. O almoço que nos serve é magnífico. Maionese. Galinha assada. Bifes. Doces feitos em casa. E vinhos finos. A sesta é feita na varanda, em chaises longues. A vista mais parece Paquetá ou Icaraí.

A conversa gira em torno da proeza náutica do Lemos Brito, a quem o Mário Acioly substitui o tratamento de "professor" pelo de "comodoro". Notase, todavia, que tanto o Sardinha como a mulher estão preocupados com o inquérito. E isso é altamente constrangedor para todos.

15H

Vamos para a colônia. Em três automóveis. Nós na frente com o Sardinha. A comissão de Inquérito, depois. Por último o vice-diretor, o secretário e o médico. A impressão da visita é como todas as outras. Tudo a postos. Tudo em ordem. De encomenda.

Nota-se, todavia, mais tristeza do que no comum dos presídios. Todos os presos trabalham na lavoura. Isso lhes dá um aspecto sadio. Todos são corados. Mas há, no olhar de todos, uma expressão de mágoa ou de revolta. Visitamos os dormitórios. As camas não são más. A roupa, todavia, está longe de ser limpa. Os presos não usam mais uniformes zebrados. Mas continuam com uniformes lisos, de uma cor só, escura.

Campeia a homossexualidade. Uma das camas tinha travesseiros de fronhas coloridas. E cortinados de filó! Mais ainda: ao lado, na mesa, frascos de brilhantina e de perfume. E uma lâmpada vermelha... O apelido do preso era "Bolo Fofo". Às quatro horas - depois de percorrermos vários dormitórios - pátios de recreio - oficinas de padaria e cozinha - nenhum trabalho industrial - só lavoura - fomos assistir à concentração dos presos, chegados em turmas do campo. Ansiosos todos por ouvir a palavra do Lemos Brito, que está nos seus bons dias. Expõe, com muita clareza, o que foi o decreto do Indulto do Ano Santo, o que tem sido o trabalho do Conselho, a luta contra o juiz das Execuções, a demora na remessa dos processos e das folhas de antecedentes, etc. Por fim, exorta-os à paciência e à confiança. Há palmas, muitas palmas.

Fala, depois, o intérprete dos presos. Pelego autêntico. De avental branco. Lê um agradecimento servil ao diretor, aos guardas, ao Conselho, a todos. Como era natural, surge, a seguir, o orador avulso, livre, inesperado. Barra a figura do "pelego", fazendo uma porção de queixas. O mal-estar é geral. Há um sussurro surdo entre os presos. Mas tudo fica por isso mesmo.

Desmanchada a "forma", sofremos, todos, os assaltos individuais. Há os que se limitam a pedir providências quanto aos processos. Há os que se aventuram a formular queixas concretas. Há, finalmente, os que pedem dinheiro para cigarros e doces. Ficamos até seis horas tomando notas, prometendo, ouvindo...

19H

Recolhemos à casa do diretor. Todos sentimos, em silêncio, um começo de saudade. O Sardinha pergunta se queremos mandar telegramas. Aceitamos mandar um só, coletivo. Depois, ouvimos rádio. Afinal, vamos jantar. O mesmo acolhimento encantador à mesa. Comida simples, mas gostosa. Sem vinhos. Com cerveja e guaraná. Com doces, com café, excelentemente feito.

De volta à sala, o Sardinha propõe irmos ver, no cinema local, os documentários da colônia. O Mário Acioly se desculpa, alegando dormir cedo. Vamos, eu e o Lemos Brito. Na salinha acanhada de projeção, somos apresentados a duas visitas. Anunciam-nos jornalistas do O Globo. Felizmente não são. A mulher é redatora da Revista do Globo. Gaúcha. Edith Hervé. O homem... a acompanha. Não diz o que é, nem quem é. Cara boa. Simpática. Conversa ótima. Mas esquisitos, ambos. Os documentários são paupérrimos.

22H

Voltamos, pela praia. Já há luar. Mas ainda chove. Uns pingos grossos de alguma nuvem retardatária. A redatora da Revista do Globo me pergunta se eu sou parente do Viana Moog. Digo-lhe que não. E acrescento: "O Viana Moog é uma beleza de homem!" E ela calmamente: "E o senhor também é!" Depois pergunta-me qual o parentesco que tenho com "o escritor Sussekind de Mendonça, o da abde." Quando digo que sou o próprio, espanta-se. E é uma dificuldade para deixá-la em frente à casa em que está hospedada, com o "acompanhante". Francamente, me acontece cada uma...

8 de junho

Não durmo logo, nem durmo bem. Em todo caso, descanso o corpo.

Vou com o Sardinha ver a horta da Colônia. No caminho, ele me conta que, de madrugada, quando todos dormíamos, um preso morrera. Estava lá, estirado sobre uma mesa tosca, os braços cruzados sobre o peito, aguardando o caixão que os companheiros lhe faziam. Morte súbita. De coração. Isso impedira qualquer comunicação. Aliás, de sua ficha, na Colônia, nada consta quanto à possível família que pudesse ter. Somente os pais, já mortos há muito tempo.

Linda, exuberante, a mata da Ilha. Enormes extensões de terra por explorar. Vegetação incrível. Panoramas soberbos. E, em toda a parte, corrente, farta, pura, geladinha, uma água de tentar. Nunca vi água mais pura. Diz o Sardinha que, pelo exame, os técnicos do Ministério haviam chegado à mesma conclusão. As estradas estão bem conservadas. Ligam, tanto para o pedestre como para os veículos, as duas Colônias. Cortam a ilha imensa pelo meio, numa extensão de seis léguas.

Do alto de uma delas, se vê a Colônia Cândido Mendes, baixinha, com seu casario perdido entre o mar e a mata. Não é uma ilha - é um continente. A horta era uma beleza. Enquanto o Sardinha esteve afastado da direção, o funcionário subalterno que o substituiu - mulato analfabeto, casado com uma preta - dizimou-a. Nos vinte e poucos dias que já tinha depois do seu regresso, a plantação renascia. E que riqueza! Que feracidade! Que altura tinham as espigas de milho! De que tamanho os tubérculos! Que batatas! Que aipins!

Voltei maravilhado e faminto. A caminhada me deixara as pernas trôpegas. E o estômago exigente. Já com o Lemos Brito e o Acioly, tivemos um "desjejum" primoroso, com biscoitos, geléia, bolo e o pão fresco, feito na própria Colônia pelos presos.

10H

Iniciamos, em jeep, a marcha para a Colônia de Dois Rios. Só então tivemos a verdadeira percepção da enormidade da ilha. Tocando, em velocidade, levamos hora e meia para varar a distância. E os panoramas se sucediam numa riqueza incrível!

O outro lado da ilha é muito mais adiantado. O próprio mar é diferente. É agitado. É revolto. É Copacabana. Na Colônia Penal Cândido Mendes, parece uma lagoa. Tanto lhe quebra a ira das vagas a enseada que a protege, a enseada do Abrahão. Em Dois Rios não há porto de desembarque. As embarcações não chegam até a praia. Desembarca-se nos ombros dos sentenciados.

O diretor é um homem inteiramente diferente do Sardinha. Este é um intelectual, conhecedor do problema penitenciário, médico, culto, lido. Ele é um coronel da Polícia Militar. Formado, ou deformado, no Amazonas. Cara de índio manso. O Lemos Brito lhe dera 80 anos. Ainda não tem 65. Acolheu-nos com muita simpatia. Mas não tem trato. Não tem polimento nenhum.

Visitamos, com ele, pavilhões e oficinas. Tudo muito mais perfeito do que na outra Colônia. Mas vazio de alma. A organização, porém, deixa muito a desejar. Não se pode saber a que critério obedecem as transferências dos sentenciados. Dir-se-ia que ao puro capricho da politicalha daqui. Basta dizer que um condenado a três anos, cuja pena terminará no dia 11 deste mês, foi para lá no dia 2! E, de seus assentamentos, nada consta a respeito do início e da terminação da pena!

A farmácia é bem sortida. Mas o farmacêutico foi removido. E não se pode substitui-lo por um simples "prático", porque as lotações burocráticas desconhecem essa categoria no Ministério da Justiça! Há quase um mês, por conseguinte, a farmácia está virtualmente parada. Na enfermaria, entretanto, para 500 sentenciados e mais de 100 funcionários, com cerca de 300 pessoas das famílias respectivas, só havia três ocupantes - índice incrível, que bem mostra a salubridade do lugar, que ainda é o que há de melhor ali.

Horrível a impressão dos presos, amontoados no refeitório para um almoço incrível: um único prato de feijão, onde há pedaços de macarrão e alguns tacos de carne. Imundos os presidiários. Alguns, descalços. Todos de fisionomia carregadas, soturnas. Ouviram o discurso do Lemos Brito alheios como se se tratasse de um enviado de Marte. Quando ele se referia à "alimentação razoável", uma besourada surda correu toda a sala. Pensamos que se revoltariam ali mesmo.

Quando debandaram, cobriram-nos de pedidos. Alguns de dinheiro. Na sua maioria, entretanto, apenas de justiça, de misericórdia. Mais de 200 já estão com suas penas cumpridas. Só não são postos em liberdade pelos tropeços da burocracia. Isso é um crime! Uma vergonha, que não pode continuar assim.

14H

Voltamos à Colônia Cândido Mendes. O ambiente acolhedor dos Sardinhas ainda nos proporcionou um café delicioso com bolos. Às 3 horas, já estamos na lancha Ministro Adroaldo. O mar estava calmo. A direção do Lemos Brito já não oferecia perigo. A viagem correu, portanto, calma, imperturbável.

Vim, todo o tempo, conversando com a escritora Edith Hervé. É comunista "no duro". Filha de professor da Faculdade de Medicina, isso não a impediu de amasiar-se com o homem em cuja companhia estava. Esteve presente no Congresso da Bahia. Sobre ele escreveu para a Revista do Globo. A crônica nada revela de seu talento. É puramente noticiosa, informativa. Entretanto, foi à Colônia para estudar o meio, observar os tipos, pois pretende escrever um romance sobre a "Revolução Vermelha", de 1935. Antes de chegarmos, pede-me o endereço e o telefone. E faz-me prometer um encontro. Marco a Livraria Freitas Bastos, como podia marcar outro qualquer local, pois não pretendo ir. Não quero mais complicações na minha vida.

22H

Da Central, telefono para casa. Atendeme a empregada. Gilda está fora, com Irene. Os filhos, também. Chego ao Leme às 10 horas. Encontro a porta ainda aberta. Improviso um jantar com ovos e presunto, que vou comprar. Festa de todos, ao voltar. Ana Maria me garante que sentiram saudades. Eu acredito porque as senti também. Vamos dormir depois das 11 horas.


21 de junho de 2015
Carlos Sussekind de Mendonça