sexta-feira, 3 de julho de 2015

ROMANCE VIRTUAL



O namoro pela internet destruiu minha noção de mim mesma como alguém que eu conheço e compreendo, e que consigo expressar em palavras



Normalmente não me sinto à vontade sozinha num bar, mas eu já estava morando em San Francisco havia uma semana e o apartamento que subloquei de outra pessoa não tinha nenhuma cadeira, só uma cama e um sofá. Meus amigos na cidade eram casados ​​ou trabalhavam de noite. Na terça-feira, meu jantar foi uma sopa de lentilhas que comi em pé no balcão da cozinha. Quando terminei, passei para o sofá na sala de estar quase vazia, e sentei debaixo da lâmpada incandescente do teto buscando alguma novidade no meu laptop. Isso não era jeito de viver. Um homem nessa situação iria sozinho a um bar, pensei comigo. E assim, fui sozinha a um bar.


Sentei em um banquinho no balcão, pedi uma cerveja e comecei a ler as notícias no meu celular. Fiquei esperando que alguma coisa acontecesse. Um jogo de basquete passava em várias tevês ao mesmo tempo. O bar tinha assentos forrados com uma imitação de couro vermelho, luzinhas de Natal, e a bartender era mulher. Em uma ponta do balcão, um casal de lésbicas estava aos beijos. Na outra extremidade, depois da curva onde eu estava sentada, um homem de óculos, mais ou menos da minha idade, assistia ao jogo. Como nós dois éramos as únicas pessoas que estavam sozinhas no bar, olhamos um para o outro. Daí fingi que estava assistindo ao jogo em uma tevê que me permitia olhar para o outro lado. Com isso, ele virou as costas para mim para olhar a tevê acima das mesas de bilhar, onde alguns rapazes aplaudiam alguma boa jogada.

Esperei que alguém se aproximasse. Alguns banquinhos adiante, dois homens caíram na risada. Um deles veio me mostrar por que estavam rindo. Apontou no seu celular uma mensagem no Facebook. Li a mensagem e dei um sorriso discreto. O homem voltou para o lugar dele. Recomecei a tomar minha cerveja.

Por um momento, me permiti sentir saudades da minha sala de estar e do meu sofá. Ele tinha um cobertor de lã com desenhos de inspiração Navajo – exemplo de uma tendência em San Francisco que um amigo meu chama de “Gente Branca Selvagem”. Quando me mudei para lá, o recibo do cobertor estava no console sobre a lareira. Tinha custado 228 dólares. Na lareira havia um fogão a gás, de ferro fundido. Eu já havia tentado mexer nos botões e no gás, mas não conseguia descobrir como acendê-lo. À noite a sala tinha a temperatura e a palidez de um cadáver. Não havia televisão.

Voltei para o meu celular e abri o OkCupid, um serviço grátis de namoro online. Atualizei o serviço OkCupid Locals, que informa se há outras pes-soas nas proximidades que também estão sentadas sozinhas em bares. Um convite para alguém no OkCupid Locals tem que começar com a palavra “Vamos”:

Vamos fumar um baseado e bater papo j.

Vamos fazer um brunch, almoçar ou tomar uma cerveja e curtir o sábado.

Vamos beber um drinque depois de assistir Koyaanisqatsi.

Vamos nos encontrar e fazer cócegas.

Vamos tomar um chá com biscoitinhos.

Vamos ficar amigos e explorar algum lugar.

“Vamos agora, eu e você” – é algo que sempre me vem à mente, mas eu nunca mandei nenhum convite no bate-papo do OkCupid, apenas respondo. Naquela noite fiquei percorrendo as mensagens na tela até que encontrei um cara bonitão com um convite do bem: “Vamos tomar um drinque.” Li seu perfil. Era brasileiro. Eu falo português. Ele toca bateria. “As tatuagens são uma parte importante da vida dos meus amigos e da minha família”, escreveu ele. Cada época tem seus ideais utópicos: o nosso é a possibilidade de tornar nossas vidas mais suportáveis por meio da tecnologia.



homem que geralmente é considerado o criador dos sites de relacionamento, tais como os conhecemos hoje, é um nativo do estado americano de Illinois chamado Gary Kremen; mas Kremen já tinha saído completamente do negócio da paquera online em 1997, justamente quando as pessoas estavam entrando em massa na internet. Hoje ele dirige uma empresa de financiamento de energia solar, tem um cargo público em Los Altos Hills, na Califórnia, e é mais conhecido por sua longa batalha judicial pela propriedade do site de pornografia Sex.com do que por ter inventado o namoro pela internet. Tal como muitos empreendedores visionários, Kremen não é muito bom administrador.

Eu o conheci, em janeiro passado, em um congresso da indústria do namoro online, em Miami. Em uma sala repleta de casamenteiros profissionais, Kremen contou como surgiu a ideia de armar encontros pela internet. Em 1992, com 29 anos, ele trabalhava na área de computação e era um dos muitos formandos da Escola de Administração de Stanford que tinha uma empresa de software na área da baía de San Francisco. Certo dia, recebeu um e-mail de rotina com um pedido de compra. Mas não era rotina: o e-mail vinha de uma mulher. Era raríssimo na época receber e-mails de mulheres nesse ramo de trabalho. Kremen olhou bem para o texto e mostrou para os colegas. Começou a imaginar a mulher por trás do e-mail. “Será que ela gostaria de namorar comigo?” Então teve outra ideia: e se ele tivesse um banco de dados de todas as mulheres solteiras do mundo? Se conseguisse criar esse banco de dados, e cobrar uma taxa para acessá-lo, certamente seria um negócio lucrativo.

Isso ainda não era viável em 1992, pois os modems transmitiam as informações muito lentamente. Além disso, havia muito poucas mulheres conectadas. Como de início a internet predominava nos setores que historicamente excluíam as mulheres – Forças Armadas, finanças, matemática, engenharia –, não havia muitas delas online. Em 1996, a provedora America Online estimou que 79% dos seus 5 milhões de usuários eram homens. No entanto, nas áreas ligadas à administração das empresas um número crescente de mulheres tinha e-mail.

Kremen começou pelo e-mail. Abandonou o emprego, contratou alguns programadores, pagos com seu cartão de crédito, e criou um serviço de namoro baseado no e-mail. O assinante recebia um endereço de e-mail anônimo, a partir do qual podia enviar seu perfil e uma fotografia. As fotos chegavam impressas, e Kremen e seus funcionários as escaneavam manualmente. As ​​pessoas solteiras interessadas que ainda não tinham e-mail também podiam participar, por fax. Em 1994 os modems já estavam mais rápidos, e Kremen decidiu criar uma empresa online. Ele e quatro sócios fundaram a Electric Classifieds, cuja ideia básica era recriar na internet os classificados dos jornais, começando pelos anúncios pessoais. Os cinco alugaram um escritório em um subsolo em San Francisco e registraram o domínio Match.com.


"ROMANCE – AMOR – SEXO – CASAMENTO E NAMORO”, dizia o título do primeiro plano de negócios que a Electric Classifieds apresentou a possíveis investidores. “As empresas americanas já compreenderam, há muito tempo, que as pessoas procuram ansiosamente serviços dignos e eficazes que atendam a essas necessidades vitais do ser humano.” Kremen acabou eliminando “sexo” da lista de necessidades. Os assinantes preenchiam um questionário indicando que tipo de relação desejavam – “Casamento, namoro, alguém para jogar golfe ou um companheiro de viagem”. Também postavam fotos: “O cliente pode aparecer em várias atividades e com diversos tipos de roupas, para dar uma ideia mais concreta de sua aparência e de sua personalidade.”

O plano de negócios citava uma previsão de que, em 2000, 50% da população adulta do país estaria solteira (uma pesquisa de 2008 revelou que 48% dos adultos americanos estavam solteiros, em comparação com 28% em 1960). Na época as pessoas solteiras, em especial as de mais de 30 anos, ainda eram vistas como um grupo estigmatizado, ao qual pouca gente queria se associar. Mas a idade em que os americanos se casam estava aumentando, e a taxa de divórcio era alta. Uma força de trabalho mais flexível levava as pessoas solteiras a viver em cidades que não conheciam, e a camaradagem de outrora, quando um pai podia apresentar um jovem colega de escritório para sua filha, tinha ficado para trás. Desde que Kremen fundou sua empresa, pouca coisa mudou no setor. Os sites de namoro proliferaram, inclusive atendendo a públicos específicos; as novas tecnologias abriram caminho para novas maneiras de conhecer pessoas; e novos recursos, com novas gracinhas, chegam ao mercado todos os dias. Mas, como eu já sabia por experiên-cia própria, as características básicas da paquera online continuam iguais.

Ao mesmo tempo, parece que as grandes cidades estão encolhendo. Em seu ensaio sobre a decisão de não morar mais em Nova York, a escritora Joan Didion diz a um amigo que vai levá-lo a uma festa em que ele poderá conhecer algumas “caras novas” e ele zomba dela. Didion comenta: “Parece que a última vez que ele foi a uma festa em que lhe prometeram ‘caras novas’ havia quinze pessoas na sala. Já tinha dormido com cinco das mulheres e devia dinheiro para todos os homens, exceto dois.” Ela não conta o fim da história, mas sempre assumi que o amigo acabou aceitando o convite mesmo assim.

Entrei no OkCupid aos 30 anos, no final de novembro de 2011, com o pseudônimo deviewfromspace (“vistadoespaço”). Quando chegou a hora de escrever “quem sou” no meu perfil, contei o caso de Joan Didion e acrescentei: “Mas agora podemos conhecer gente pela internet: caras novas!” Depois achei que a história da Didion dava uma impressão desagradável, e a substituí por uma afirmação mais otimista: disse que os encontros pela internet recuperavam as possibilidades da vida urbana, que havia se confinado entre o trabalho, o metrô e o apartamento. Mas achei que isso parecia deprimente. Finalmente, escrevi: “Gosto de assistir a documentários sobre a natureza e de comer doces.” Daí em diante passei a receber uma enxurrada de sugestões de vídeos do YouTube sobre espécies ameaçadas e dicas para fazer panetone de chocolate.



OkCupid foi fundado em 2004 por quatro alunos de matemática de Harvard, todos especialistas em dar de graça coisas que as pessoas estavam acostumadas a pagar para obter (músicas, apostilas). Em 2011, eles venderam o site por 50 milhões de dólares para a IAC, companhia que agora é dona da Match. Tal como a Match, o OkCupid pede ao usuário que preencha um questionário. O serviço então calcula a porcentagem de afinidade [match] da pessoa em relação a outros usuários, computando três indicadores: a resposta da pessoa a uma pergunta, como ela gostaria que a outra pessoa respondesse à mesma pergunta, e a importância que ela atribui à pergunta.

Essas perguntas variam desde “Você acha que fumar é repugnante?” até “Com que frequência você se masturba?”. Muitas perguntas são destinadas especificamente a medir o interesse da pessoa pelo sexo casual: “Deixando de lado quaisquer planos para o futuro, o que é mais interessante para você neste momento: o sexo ou o verdadeiro amor?” “Você dormiria com alguém no primeiro encontro?” “Digamos que você começou a sair com alguém de quem está realmente gostando. No que depender de você, quanto tempo vai demorar até dormir com essa pessoa?” Concluí que esses algoritmos me colocavam na mesma área – ou seja, classe social e nível educacional – das pessoas com quem eu saía; fora isso, ajudavam muito pouco a prever de quem eu poderia gostar. Um fato interessante, tanto na paquera online quanto na vida real, é que descobri um talento inexplicável da minha parte para atrair vegetarianos – e olha que eu não sou vegetariana.

Devo notar que respondi negativamente a todas as perguntas sobre meu interesse pelo sexo casual, o que é bem comum nas mulheres. Quanto mais um site de encontros apresenta os símbolos tradicionais do desejo masculino – fotos de mulheres de calcinhas, sugestões claras sobre sexo –, menor é a quantidade de mulheres inscritas. Com uma relação de 51 homens para 49 mulheres, o OkCupid apresenta um certo equilíbrio, algo que muitos sites invejariam. Não que as mulheres sejam avessas à possibilidade de um encontro casual (eu ficaria muito feliz se a pessoa certa aparecesse), mas elas precisam de algum álibi antes de sair à procura de um parceiro. Kremen também tinha observado isso, e deu ao Match uma aparência neutra e até meio insossa, com um logotipo em forma de coração.

Eu queria um namorado. Também estava obcecada por um certo cara e queria parar de pensar nele. Nesses sites as pessoas fazem listas dos seus filmes favoritos, e ficam torcendo para que algo de bom aconteça; mas debaixo dessa animação algo borbulha em fogo brando – a escuridão. Há uma enorme quantidade de arrependimentos e remorsos espreitando por trás de todos os perfis, até os mais bem ajustados. Eu lia romances do século XIX para lembrar que manter um estado de espírito equilibrado e solar logo após um desgosto amoroso nem sempre é possível. Por outro lado, os sites de relacionamento são os únicos lugares em que já estive onde não há ambiguidade nas intenções. Há, isso sim, uma gradação na sutileza: desde o básico “Você é bonitinha” até coisas que te fazem sair correndo, como “Oi, você gostaria de vir aqui em casa, fumar um baseado e me deixar tirar umas fotos de você nua na minha sala?”.



maior site gratuito de namoro nos Estados Unidos é outro serviço baseado em algoritmos, o Plenty of Fish, nome que brinca com o ditado “o mar está para peixe”. Mas, em Nova York, todo mundo que eu conheço usa o OkCupid, então foi lá que me inscrevi. Também me inscrevi no Match, mas o OkCupid acabou sendo meu favorito, sobretudo porque lá eu recebia uma atenção ostensiva dos homens. Já no Match, aqueles banqueiros de queixo quadrado, com fotos fazendo mergulho submarino em Bali e esquiando em Aspen, me davam tão pouca atenção que eu acabava com pena de mim mesma. Meu ponto mais baixo no Match foi quando mandei um recadinho digital (com uma carinha dando uma piscadela) a um homem cujo perfil dizia “tenho covinha no queixo” e incluía fotos dele jogando rúgbi sem camisa em um navio em alto-mar, segurando um peixeenorme. Ele nem me respondeu.

Fui a uma palestra do escritor Ned Beauman, que comparou a experiência no OkCupid com as ideias do astrônomo Carl Sagan, quando falava dos limites da nossa capacidade de até mesmo imaginar um tipo de vida extraterrestre não baseada em carbono. Isso sem falar que nem iríamos perceber se esse tipo de vida estivesse nos enviando sinais. Você sai jogando a rede no OkCupid para tentar pegar aquilo que você acha que quer – mas e se não formos capazes nem sequer de enxergar os sinais que estão nos enviando, e muito menos de interpretá-los?

O OkCupid dava uma impressão muito forte de ser aquele banco de dados com que Kremen havia sonhado: escolha ilimitada. Mas isso tem suas desvantagens. Como escreve a socióloga Eva Illouz em O Amor nos Tempos do Capitalismo, “a experiência do amor romântico se relaciona a uma economia da escassez, o que por sua vez permite a novidade e a emoção”. Em contraste, “o espírito que preside a internet é a economia da abundância, na qual a pessoa precisa escolher e maximizar suas opções, e é obrigada a usar técnicas de eficiência e custo-benefício”. No começo foi até divertido, mas, depois de alguns meses, os problemas começaram a aparecer. Acabei achando bem verdadeiro o que Beauman diz sobre a nossa incapacidade de avaliar o que poderia ser atraente. Considere o seguinte.

Fui a um encontro com um compositor clássico que me convidou para um concerto de John Cage. Depois do concerto, fomos ver o busto de Béla Bartók na rua 57. Não conseguimos encontrá-lo, mas ele me contou que Bartók morreu ali, de leucemia. Eu queria gostar desse homem, que era excelente por escrito; só que não gostei. Em todo caso, dei-lhe outra chance. Saímos uma segunda vez, para comer macarrão chinês no East Village. Eu encerrei a noite cedo. Depois disso, ele me convidou para um concerto na Universidade Columbia seguido de um jantar na casa dele. Eu disse que sim, mas cancelei no último minuto alegando algum problema de saúde, acrescentando que achava que nosso namoro já tinha se esgotado. Eu de fato estava adoentada, mas ele ficou com raiva de mim. Meu cancelamento, escreveu, tinha lhe custado “uma tonelada de tempo fazendo compras, limpando, cozinhando – tempo de que eu realmente não dispunha, já para começar, tão poucos dias antes do prazo para a entrega de um trabalho etc...”, com um texto cheio de elipses, à la Thomas Pynchon.

Pedi desculpas, e parei de responder. Nos meses seguintes ele continuou a escrever longos e-mails com as novidades da vida dele, e eu continuei não respondendo, até que tive a sensação de que ele estava atirando toda a sua tristeza num buraco negro, e ali eu a absorvia na minha própria tristeza.

Em outra ocasião, saí com um cara que fazia móveis artesanais. Marcamos encontro num café. Era uma tarde ensolarada de final de fevereiro, mas uma estranha nevasca começou a cair logo que chegamos, com os flocos brilhando ao sol. O café era no subsolo, sentamos numa mesa ao lado da janela, bem embaixo de dois chihuahuas, amarrados a um banco na calçada. Eles tremiam incontrolavelmente, apesar dos casaquinhos justos. Olhavam para nós pela janela, roendo a guia da coleira. O marceneiro pediu um café para mim e tomou chá numa caneca de cerveja.

Nossa conversa foi tensa. Ele parecia entediado. Usava bigode, e seus olhos azuis olhavam aqui e ali, sem sossego. Estudara em uma escola de design gráfico no Arizona. Mostrou fotos de vários móveis que havia feito. Tinha as mãos calejadas e era alto. Atraente, apresentava um ar meio soturno, e eu me perguntava por quê: seria por minha causa ou era a atitude geral dele contra o mundo? Descobrimos que nós dois nascemos no Allentown Hospital, em Allentown, na Pensilvânia, só que sou sete meses mais velha. Se vivêssemos em outra época, quando o casamento era ditado pela família, pela religião e pela comunidade, nós dois já poderíamos ter vários filhos nesta altura. Em vez disso, meus pais se mudaram para outra parte do país quando eu tinha 3 anos, e ele ficou em Allentown até ficar adulto. Agora nós dois morávamos no triste bairro de Bedford-Stuyvesant, no Brooklyn, e tínhamos 30 anos.

Ele se julgava um cara fora do padrão, e gostava muito de ser artesão, só para não ter que trabalhar num escritório. Depois de tomar seu chá, ele foi ao banheiro, voltou, e sem dizer palavra vestiu o casaco. Levantei e fiz o mesmo. Subimos a escada e saímos na calçada, no vento frio de fevereiro. Tchau, tchau.

Também tive um encontro com um sujeito que era cabeleireiro e que me atraiu pelo seu charme de cavalheiro do Texas: “Srta. Vista do Espaço, aqui vão meus cumprimentos e meu respeito”, escreveu ele. Chegou atrasado ao nosso encontro em Alphabet City, em Manhattan, depois de atender a algumas clientes de última hora que queriam fazer o cabelo para ir aos seus próprios encontros. Nos dois lados do pescoço tinha tatuagens de duas cimitarras cruzadas. Perguntei o que elas significavam. Ele disse que não significavam nada. Eram erros. Arregaçou as mangas e revelou mais erros. Quando adolescente, em Dallas, ele deixava seus amigos usá-lo como tela para treinamento. Chamar as tatuagens de erros parecia ser diferente de lamentá-las. Ele não se arrependia. Disse que era apenas a sua pessoa de 16 anos lhe mostrando a língua e o dedo médio. “Você acha que você mudou?” era o que a sua versão de 16 anos lhe dizia com as tatuagens. “Pois foda-se, eu continuo aqui!”

O OkCupid teve outro efeito indesejado: ao publicar meu perfil, embora com pseudônimo, eu tinha pregado em mim algo equivalente a uma placa de “à venda”. Os que me conheciam na vida real e viam minha foto no site muitas vezes entravam em contato comigo: “Vi você no OkCupid e pensei em te escrever.” Fui a um restaurante colombiano em Greenpoint, no Brooklyn, com um desses conhecidos. Quando cheguei, ele estava lendo documentos que a Agência de Segurança Nacional havia liberado recentemente, relativos a John Nash, o gênio esquizofrênico retratado em Uma Mente Brilhante. Pedimos tortilhas e cervejas.

Gostei desse homem. Ele amava seu emprego, em uma galeria de arte de elite, e morava em um apartamento espaçoso, de pé-direito alto, com vista para um parque cheio de árvores e bancos serpenteantes. Conversamos sobre bandas de black metal de Seattle e sobre a ideia de resistir ao capitalismo recorrendo a uma música medonha e comida orgânica. Depoisdo jantar fomos caminhando do Cafecito Bogotá até seu apartamento, impecável, onde ele colocou música ambiente e eu fiz carinho nos seus dois gatos. Decidimos fazer uma experiência com o OkCupid Locals. Ele postou uma mensagem: “Vamos lkjdlfjlsjdfijsflsjlj.” Sentei ao seu lado no sofá. Chequei no meu celular para ver se a mensagem aparecia – e apareceu. Olhamos um para o outro. Ele me acompanhou até o metrô.



ais ou menos nessa época conheci alguém no mundo real. Não deu certo, mas me fez lembrar, de modo muito claro, qual é a sensação de querer dormir com alguém sem nem sequer saber quais são seus livros favoritos. O tédio voltou, e meu ex-namorado retomou seu lugar nos corredores da memória. Mudei para a Costa Oeste e as paredes do apartamento de San Francisco, quase vazio, pairavam, ameaçadoras, sobre mim.

Como a maioria das pessoas, entrei nos sites de relacionamento devido à solidão. E logo descobri, como a maioria descobre, que a única coisa que isso traz é acelerar o ritmo e aumentar o número de encontros com outras pessoas solteiras, mas que cada encontro continua sendo um encontro casual. O namoro pela internet destruiu minha noção de mim mesma como alguém que eu conheço e compreendo, e que consigo definir em palavras. Teve um efeito igualmente nocivo sobre a minha ideia de que as outras pessoas conseguem conhecer a si mesmas e se descrever com exatidão. Isso me deixou irritada com tudo que me lembrasse psicologia. Comecei a responder apenas a pessoas com um perfil muito curto, e depois passei a renunciar por completo aos perfis no OkCupid Locals, usando-os apenas para checar se a pessoa tinha um domínio razoável do idioma inglês e não espumava pela boca professando opiniões políticas de direita.

O namoro pela internet me alertou para o fato de que as nossas ideias sobre o comportamento humano e as realizações humanas, expressas nessas centenas de perfis online, são todas mais ou menos iguais, e portanto são chatas e não são uma boa maneira de atrair outras pessoas. Outra coisa que aprendi: o corpo não é uma entidade secundária. A mente contém muito poucas verdades que o corpo é capaz de esconder. Quando dois corpos se encontram, quase tudo que é importante se revela rapidamente. E até que os corpos sejam apresentados um ao outro, a sedução é apenas provisória.

Nas profundezas da solidão, porém, os encontros pela internet me proporcionaram uma série de oportunidades de ir a um bar e tomar um drinque com algum homem desconhecido, noites que de outra forma eu passaria infeliz e sozinha.

Conheci todo tipo de gente: um técnico em raio X, um empresário de tecnologia verde, um programador de computador – este um polonês com quem curti uma espécie de afeto casto durante várias semanas. Nós dois éramos tímidos, e meus sentimentos só mornos (como também os dele, pelo que percebi); mas fomos à praia, ele me contou tudo sobre a colheita de cogumelos na Polônia, pediu seus burritos vegetarianos em espanhol, e descobrimos que tínhamos muita coisa em comum em termos de coisas de que não gostávamos.

Quanto àquela noite em San Francisco, respondi a um bilhetinho online e fui tomar um drinque com o rapaz desconhecido. Demos uns beijos, ele me mostrou sua coleção de pés de maconha especialíssimos, e conversamos sobre o Brasil. Depois fui para casa e nunca mais o vi.


03 de julho de 2015
EMILY WITT

PENSE NA LAGOSTA





Uma incursão num mundo de exageros, mau gosto, prazeres e crueldade



O enorme, pungente e muitíssimo bem divulgado Festival da Lagosta do Maine ocorre a cada final de julho na região costeira central do estado, isto é, o lado ocidental da baía de Penobscot, tronco nervoso da indústria da lagosta do Maine. A chamada região costeira central vai de Owl’s Head e Thomaston, ao sul, até Belfast, ao norte. (Na verdade poderia se estender até Bucksport, mas nunca conseguimos passar de Belfast seguindo rumo ao norte pela Rota 1, cujo tráfego no verão é, como se pode imaginar, inimaginável.) As duas principais comunidades da região são Camden, com suas famílias ricas tradicionais, marina, restaurantes cinco estrelas e pousadas maravilhosas, e Rockland, um vilarejo de pescadores muito antigo que a cada verão abriga o festival no histórico Harbor Park, bem ao lado da água.

O turismo e as lagostas são os principais setores de atividade da região costeira central, dois ramos associados ao clima quente, e o Festival da Lagosta do Maine, mais que uma intersecção dessas indústrias, representa uma colisão proposital, alegre, lucrativa e barulhenta. O assunto escolhido para este artigo da revista Gourmet é o 56o FLM, promovido de 30 de julho a 3 de agosto de 2003, neste ano com o tema oficial de “Faróis, Risadas e Lagostas”. O público pagante total superou as 80 mil pessoas, em parte graças a um anúncio veiculado nacionalmente na CNN em junho, no qual a editora sênior da revista Food &Wine saudava o FLM como uma das melhores festividades gastronômicas do mundo.

Pontos altos do festival em 2003: as apresentações de Lee Ann Womack e Orleans, o concurso de beleza anual da Deusa do Mar do Maine, o grande desfile do sábado, a Corrida Sobre Gaiolas de Lagosta em Memória a William G. Atwood no domingo, a Competição Anual de Culinária Amadora, os brinquedos e estandes do parque de diversões, as barraquinhas de comida e a Praça de Alimentação Principal da flm, onde perto de 12 mil quilos de lagostas do Maine fresquinhas são consumidos após serem preparados na “Maior Panela Para Lagostas do Mundo”, perto do acesso norte do festival. Também são oferecidos sanduíches de lagosta, folhados de lagosta, lagosta salteada, salada de lagosta Down East, sopa creme de lagosta, ravióli de lagosta e bolinhos fritos de lagosta. É possível obter lagosta à thermidor em um restaurante tradicional chamado Black Pearl, no cais noroeste do Harbor Park.

Um amplo estande de madeira de pinho patrocinado pelo Conselho de Fomento à Lagosta do Maine distribui panfletos gratuitos com receitas, dicas de consumo e curiosidades sobre lagostas. O vencedor da Competição de Culinária Amadora da sexta-feira preparou Potinhos de Lagosta com Açafrão, receita que agora se encontra disponível ao público para download em www.mainelobsterfestival.com. Há camisetas de lagostas, bonecos articulados de lagostas, lagostas infláveis para piscinas e chapéus acopláveis de lagosta com enormes garras escarlates que chacoalham em molas. Este correspondente viu tudo isso, acompanhado por uma namorada e ambos os pais – um dos quais, a propósito, é nascido e criado no Maine, ainda que no interior da região mais ao norte, uma terra de batatas a um mundo de distância do turismo da região costeira central.



ara fins práticos, todo mundo sabe o que é uma lagosta. Como de costume, todavia, existe muito mais para saber do que a maioria de nós se importa em descobrir – é tudo uma questão de interesses pessoais. Em termos taxonômicos, uma lagosta é um crustáceo marinho da família homaridae, caracterizado por cinco pares de patas articuladas dos quais o primeiro termina em grandes garras semelhantes a pinças, utilizadas para subjugar presas. Como muitas outras espécies de carnívoros bentônicos, as lagostas são ao mesmo tempo caçadoras e saprófagas. Possuem antenas, olhos pedunculares e guelras nas patas. Há mais ou menos uma dúzia de tipos diferentes de lagostas ao redor do mundo, mas a espécie aqui relevante é a Homarus americanus, conhecida como lagosta do Maine ou lagosta-americana.A palavra inglesa lobster vem do inglês antigo loppestre, supostamente uma corruptela de locusta, a palavra latina para gafanhoto que também é a raiz de “lagosta”, combinada com o inglês antigo loppe, que significa aranha.

Além disso, um crustáceo é um artrópode aquático da classe crustacea, que inclui caranguejos, camarões, cracas, lagostas e lagostins-de-água-doce. Tudo isso está lá, na enciclopédia. E os artrópodes são membros do filo Arthropoda, que abrange insetos, aranhas, crustáceos e quilópodes/diplópodes, que possuem como principal traço comum, além da ausência de uma estrutura centralizada cerebroespinal, um exoesqueleto quitinoso composto por segmentos,ao qual se articulam pares de apêndices.



questão é que lagostas são basicamente insetos marinhos gigantes. (Por sinal, o termo usado pelos nativos da região costeira central para falar de lagostas é “inseto”. Por exemplo: “Aparece lá em casa no sábado, vamos cozinhar uns insetos.”) Como a maioria dos artrópodes, as lagostas remontam ao período jurássico; biologicamente são anteriores aos mamíferos que bem que poderiam ser de outro planeta. 
E – particularmente em seu estado natural marrom-esverdeado, brandindo as garras como se fossem armas e agitando as grossas antenas – não são bonitas de se ver.E é verdade que se trata de lixeiras do mar, comedoras de coisas mortas, embora também comam um pouco de moluscos vivos, certos tipos de peixes machucados e por vezes umas às outras. Cultura inútil: armadilhas para lagostas geralmente usam como isca arenques mortos.

Mas também são boas de comer. Ou pelo menos é o que achamos agora. Até certa altura do século XIX, todavia, a lagosta era literalmente um alimento de classe baixa, consumido apenas pelos pobres e encarcerados. Até mesmo no rude ambiente penal dos primórdios da história americana algumas das colônias tinham leis limitando o uso de lagostas na alimentação dos detentos a uma única vez por semana, porque isso era julgado cruel e incomum, semelhante a obrigar pessoas a comerem ratos. Uma das razões para esse baixo prestígio era a fartura de lagostas na Nova Inglaterra de então. “Abundância inacreditável” são as palavras com que uma fonte descreve a situação, inclusive com relatos de peregrinos de Plymouth capturando lagostas à vontade com as mãos nuas ou do antigo litoral de Boston coberto de lagostas após uma série de tempestades. Elas foram consideradas um incômodo fedorento e moídas para serem usadas como adubo. Também é preciso levar em conta que as lagostas pré-modernas eram cozidas mortas e em seguida postas em conserva, geralmente em sal ou embalagens herméticas primitivas. A indústria da lagosta no Maine teve início com uma dúzia dessas fábricas de conserva nos anos 1840, de onde as lagostas eram enviadas a lugares tão distantes quanto a Califórnia, e a demanda existia somente por serem baratas e possuírem um alto teor de proteína, basicamente um combustível mastigável.

Hoje em dia, é claro, a lagosta é chique, uma iguaria, poucos graus abaixo do caviar. Possui uma carne mais saborosa e substancial que a maioria dos peixes, com um gosto sutil se comparado ao gosto de mar dos mexilhões e dos mariscos. Na imaginação alimentícia popular dos Estados Unidos, a lagosta se tornou o análogo marinho do filé, ao lado do qual é tantas vezes servida como Surf and Turf na parte mais cara dos cardápios de cadeias de restaurantes.

Aliás, um projeto óbvio do FLM e de seu patrocinador onipresente, o Conselho de Fomento à Lagosta do Maine, é combater a ideia de que a lagosta é uma comida luxuosa, cara ou prejudicial à saúde, adequada somente a paladares afetados ou como petisco ocasional para escapar da dieta. Palestras e panfletos enfatizam sem descanso que a carne de lagosta tem menos calorias, menos colesterol e menos gordura saturada que a carne de frango. E na Praça de Alimentação Principal é possível comprar um “quarto” (gíria da indústria para uma lagosta de 600 gramas), um copinho com 120 gramas de manteiga derretida, um saco de batatas fritas e um pãozinho com manteiga por 12 dólares, o que é apenas um tantinho mais caro que jantar no McDonald’s. É claro que o hábito corriqueiro de mergulhar carne de lagosta em manteiga derretida torpedeia todas essas alegres curiosidades saudáveis sobre gordura, o que nunca é mencionado pelo material promocional do Conselho, assim como os informativos da indústria da batata nunca mencionam o creme azedo e os cubinhos de bacon.



aiba que no Festival da Lagosta do Maine a democratização da lagosta vem acompanhada por toda a inconveniência maciça e concessão estética da verdadeira democracia. Confira, por exemplo, a supracitada Praça de Alimentação Principal, para a qual existe uma fila constante digna da Disneylândia, e que consiste em meio quilômetro quadrado de balcões de cafeteria protegidos por um toldo e fileiras de longas mesas institucionais onde amigos e desconhecidos sentam-se coladinhos, quebrando, mastigando e babando. É um lugar quente, onde o teto descaído aprisiona o vapor e os odores, sendo que estes últimos são fortes e apenas parcialmente relacionados a alimentos. É também um lugar barulhento, e uma porcentagem considerável do ruído total é mastigatória.

A comida é servida em bandejas de isopor, os refrigerantes não têm gelo nem gás, o café é café de loja de conveniência em mais isopor e os talheres são de plástico (não é possível encontrar nenhum daqueles garfos especiais e compridos que servem para extrair a carne da cauda, ainda que alguns clientes espertos tragam os seus de casa). O número de guardanapos fornecido também não chega nem perto do suficiente, levando-se em consideração que comer lagosta é uma lambuzeira, especialmente quando se está espremido em bancos ao lado de crianças de idades variadas e estágios vastamente diversos de coordenação motora – isso sem mencionar as pessoas que de algum jeito conseguiram contrabandear sua própria cerveja em enormes isopores que bloqueiam a passagem, ou aquelas que aparecem de repente com toalhas de plástico que espalham sobre porções consideráveis das mesas numa tentativa de reservá-las (as mesas) aos seus grupinhos. E assim por diante.

Isolado, qualquer um desses exemplos naturalmente não passa de um incômodo trivial, mas o fato é que o FLM se mostra cheio desses pequenos aborrecimentos irritantes – por exemplo, quando você descobre que precisa pagar 20 dólares a mais por uma cadeira dobrável se quiser se sentar ao assistir a alguma das grandes atrações do Palco Principal; ou a loucura desenfreada que se instala na Tenda Norte quando começa a distribuição dos copinhos minúsculos, que mais parecem dedais, com bocadinhos das receitas finalistas da Competição de Culinária; ou a aclamadíssima final do concurso de beleza Deusa do Mar do Maine, que se revela excruciantemente longa e consiste sobretudo em infinitos agradecimentos e homenagens a patrocinadores locais. Melhor nem falar sobre a terrível inadequação dos banheiros químicos ou sobre o fato de não haver lugar algum para se lavar as mãos antes ou depois de comer.

Na verdade o Festival da Lagosta do Maine é uma feira interiorana de nível médio com gancho culinário, e a esse respeito não difere muito dos festivais de caranguejos de Tidewater, dos festivais de milho do Meio-Oeste, dos festivais de chili do Texas etc.,e compartilha com esses acontecimentos o paradoxo central de todos os apinhados eventos comerciais populares: não é para todos. Nada contra a eufórica editora sênior da Food & Wine, mas eu ficaria surpreso se descobrisse que ela realmente já esteve aqui no Harbor Park, entre multidões matando a tapa os mosquitos da zona do canal enquanto comem Twinkies fritose assistem ao professor PaddyWhack aterrorizando as crianças sobre pernas de pau de 1,80 metro, vestido com um sobretudo de onde saltam em todas as direções lagostas de plástico dependuradas em molas.

Um parêntese: na verdade, muitas coisas podem ser ditas a respeito das diferenças entre a classe trabalhadora de Rockland e o sabor acentuadamente populista do festival versus a confortável e elitista Camden com sua paisagem caríssima, suas lojas tomadas inteiramente por suéteres de 200 dólares e fileiras de casas vitorianas transformadas em pousadas de luxo. E também a respeito dessas diferenças como os dois lados da grande moeda que é o turismo nos Estados Unidos. Confesso que nunca entendi por que a ideia de férias divertidas de tantas pessoas é calçar chinelos e óculos de sol e se arrastar por um tráfego enlouquecedor até locais turísticos quentes e lotados com o intuito de provar um “sabor local” que por definição é arruinado pela presença de turistas. Isso tudo pode ser uma questão de personalidade e gostos inatos: o fato de eu não gostar de locais turísticos significa que nunca vou compreender seu encanto, e assim provavelmente não sou a pessoa mais indicada para falar sobre isso (o suposto encanto). Do meu ponto de vista, é provável que ser turista faça mesmo algum bem para a alma, mesmo que apenas de vez em quando. Todavia, não que faça bem para a alma de algum modo revigorante ou alentador, mas de um jeito severo e obstinado de vamos-encarar-os-fatos-com-honestidade-e-tentar-encontrar-um-modo-de-lidar-com-eles. Minha experiência pessoal não é a de que viajar pelo país seja relaxante ou amplie os horizontes, ou de que mudanças radicais de lugar e contexto tenham um efeito salutar, mas sim de que o turismo intranacional é radicalmente constritivo e humilhante da pior forma – hostil à minha fantasia de ser um indivíduo genuíno, de viver de algum modo fora e acima de todo o resto. Ser um turista massificado, para mim, é se tornar um puro americano contemporâneo: alheio, ignorante, ávido por algo que nunca poderá ter, frustrado de um modo que nunca poderá admitir. É macular, através de pura ontologia, a própria imaculabilidade que se foi experimentar. É se impor sobre lugares que, em todas as formas não econômicas, seriam melhores e mais verdadeiros sem a sua presença. É confrontar, em filas e engarrafamentos, transação após transação, uma dimensão de si mesmo tão inescapável quanto dolorosa: na condição de turista você se torna economicamente significativo mas existencialmente detestável.



lagosta, em essência, é um alimento de verão. Isso porque agora preferimos lagostas frescas, o que significa que elas precisam ter sido capturadas recentemente, o que por razões tanto táticas quanto econômicas ocorre em profundidades inferiores a 45 metros. Lagostas tendem a ficar mais famintas e ativas (isto é, mais fáceis de capturar) quando a temperatura da água fica entre 7 e 10 graus, como é típico do verão. No outono a maioria das lagostas do Maine migra para águas mais profundas, seja em busca de calor ou para evitar as ondas pesadas que golpeiam o litoral da Nova Inglaterra durante o inverno inteiro. Algumas se enterram no leito marinho. Talvez hibernem; ninguém sabe ao certo. É também no verão que as lagostas trocam de carapaça – mais especificamente, do início à metade de julho.

Artrópodes quitinosos crescem trocando de carapaça, mais ou menos da mesma forma que compramos roupas maiores à medida que envelhecemos e ganhamos peso. Como as lagostas podem viver mais de 100 anos, podem também ficar bem grandes, chegando a passar dos 9 quilos – ainda que nos dias de hoje sejam raras as lagostas da terceira idade, pois as águas da Nova Inglaterra estão cheias de armadilhas. Enfim, disso vem a diferença culinária entre lagostas de casca dura e de casca mole.Uma lagosta de casca mole é uma lagosta que acabou de trocar de carapaça. Ambas são oferecidas nos cardápios de verão dos restaurantes da região costeira central, nos quais as lagostas de casca mole são um pouco mais baratas mesmo sendo mais fáceis de destrinchar e donas de uma carne considerada mais suave.O motivo do desconto é que uma lagosta em fase de troca utiliza uma camada de água do mar como isolamento enquanto a nova carapaça endurece, e por causa disso quando se arrebenta uma lagosta de casca mole há um pouquinho menos de carne e um fragrante jorro d’água que se espalha sobre tudo, às vezes espirrando como um limão e atingindo um companheiro de mesa bem no olho. Se é inverno ou se você está comprando lagostas em algum lugar distante da Nova Inglaterra, por outro lado, dá quase para apostar que a lagosta vai ter a casca dura, que por motivos óbvios é mais transportável.

Como prato principal à la carte, a lagosta pode ser assada, grelhada, cozida ao vapor, refogada, salteada,feita em wok ou no micro-ondas.Mas o método mais comum é a fervura. Quem gosta de comer lagostas em casa provavelmente a prepara desta forma, pois ferver lagostas é muito fácil. É necessário um tacho grande com tampa, que é preenchido com água até mais ou menos a metade (a recomendação mais comum são 2 litros e meio de água por lagosta). O ideal é água do mar, ou adicione duas colheres de sopa de sal a cada litro de água da torneira. Também é interessante saber o peso de cada lagosta. Espera-se a água ferver, coloca-se uma lagosta de cada vez, cobre-se o tacho e aumenta-se o fogo até a água voltar a ferver.Então é preciso baixar o fogo e deixar o tacho em fogo brando – dez minutos para o primeiro meio quilo de lagosta, e acima disso três minutos para cada meio quilo. (Isso considerando-se que estão sendo usadas lagostas de casca dura, que, repito, se você não mora entre Boston e Halifax, são provavelmente as únicas que conseguiu encontrar. No caso de lagostas de casca mole é preciso subtrair três minutos do total.) As lagostas ficam vermelhas porque de algum modo essa fervura suprime todos os pigmentos na quitina, exceto um. Um teste simples para saber se as lagostas estão prontas é tentar arrancar uma das antenas – se ela se descolar da cabeça ao menor esforço, o bicho está pronto para comer.

Um detalhe tão óbvio que a maioria das receitas nem se preocupa em mencionar é que as lagostas precisam estar vivas ao serem colocadas no tacho. Isso faz parte do apelo contemporâneo da lagosta – é o alimento mais fresco que existe. Não acontece decomposição alguma entre a pescaria e a hora de comer. E além de não precisarem ser limpas, temperadas nem depenadas, é simples para os vendedores manter as lagostas vivas. Chegam vivas dentro das armadilhas, são colocadas em recipientes com água do mar e podem (desde que a água seja mantida aerada e as garras dos animais estejam amarradas ou presas para impedir que ataquem uns aos outros por causa do estresse do confinamento) sobreviver até o instante em que são fervidas. Um raciocínio similar embasa o que se chama de “debicar” frangos e galinhas poedeiras nas fazendas de confinamento. A máxima eficiência comercial exige que populações imensas de galináceos sejam confinadas em espaços desnaturadamente exíguos, condições sob as quais muitas aves enlouquecem e bicam umas às outras até a morte. Como observação de caráter puramente empírico, informo que a “debicagem” costuma ser um processo automatizado e que as galinhas não recebem anestésico nenhum. Não sei se os leitores conhecem a “debicagem” ou as práticas relacionadas, como a extração dos chifres do gado em fazendas industriais e o corte da cauda dos porcos em fazendas de confinamento de suínos para impedir vizinhos psicoticamente entediados de arrancá-las com os dentes e assim por diante.



uase todo mundo já esteve em supermercados ou restaurantes que contam com aquários de lagostas vivas, onde podemos escolher o jantar enquanto ele encara nosso dedo estendido. E uma parte importante do espetáculo no Festival da Lagosta do Maine é assistir às embarcações dos pescadores de lagostas atracando nos molhes da parte nordeste e descarregando o produto recém-pescado, que é então transferido manualmente ou com auxílio de carrinhos por cerca de 90 metros até os imensos tanques transparentes empilhados ao redor do panelão do festival – que, como mencionei, é divulgado como a Maior Panela para Lagostas do Mundo e pode cozinhar de uma só vez mais de 100 lagostas para a Tenda Principal.

Então aqui vai uma pergunta que se torna praticamente inevitável diante da Maior Panela para Lagostas do Mundo e pode vir à tona em cozinhas espalhadas por todos os Estados Unidos: é certo ferver viva uma criatura senciente para nosso mero prazer gustativo? Um conjunto de preocupações relacionadas: seria a pergunta anterior uma manifestação enfadonha de sentimentalismo ou raciocínio politicamente correto? Nesse contexto, qual seria o sentido de “certo”? Seria isso tudo apenas uma questão de escolha pessoal?

Como talvez você saiba, ou não, um grupo notório conhecido como People for the Ethical Treatment of Animals (Pessoas pelo Tratamento Ético dos Animais) acredita que a moralidade do ato de ferver lagostas não é apenas uma questão de consciência individual. Na verdade, uma das primeiríssimas coisas que escutamos sobre o FLM... bem, vamos definir a cena: estamos vindo de táxi do quase indescritivelmente estranho e rústico aeroporto do condado de Knox, na madrugada anterior à abertura do festival, dividindo o táxi com um consultor político endinheirado que passa metade do ano morando na ilha Vinalhaven, que fica na baía (seu destino é a balsa de Rockland).

O consultor e o motorista estão respondendo a sondagens jornalísticas informais sobre a visão real dos moradores da região sobre o FLM, se por exemplo consideram o festival apenas um evento para atrair turistas e lucrar bastante ou se é algo pelo qual os moradores do local esperam ansiosos, que genuinamente promove seu orgulho como cidadãos etc. O motorista (que passou dos 70 anos e parece fazer parte de um pelotão inteiro de aposentados contratado pela empresa de táxi para ajudar no burburinho do verão, usa um broche de lapela com a bandeira americana e dirige de um modo que pode somente ser descrito como muito cauteloso) nos garante que os moradores apoiam e apreciam o FLM, embora faça vários anos que ele mesmo não comparece ao evento e, parando para pensar, ninguém que ele ou a esposa conheçam. Todavia o consultor seminativo participou de alguns festivais recentes (tive a impressão de que fez isso por ordem da esposa), dos quais guardou como impressão mais vívida o fato de ser necessário “esperar na fila por um tempo interminável e lancinante até comprar as lagostas, e enquanto isso um monte de ex-malucos-beleza zanza para cima e para baixo distribuindo panfletos dizendo que as lagostas morrem sofrendo dores terríveis e que ninguém deveria comê-las”.

E calhou que os pós-hippies das reminiscências do consultor eram ativistas do Peta. Não havia ninguém do Peta à vista no FLM de 2003,[1] mas eles foram uma presença ostensiva em muitos dos festivais recentes. Desde a metade dos anos 90, pelo menos, artigos publicados em todo tipo de jornais, do Camden Herald ao New York Times, descreveram o Peta incitando boicotes ao Festival da Lagosta do Maine, muitas vezes empregando porta-vozes famosos como Mary Tyler Moore em cartas abertas e anúncios declarando coisas como “Lagostas são extraordinariamente sensíveis” e “Para mim, comer uma lagosta está fora de questão.” Mais concreto é o depoimento oral de Dick, nosso floreado e deveras sociável contato na locadora de automóveis, segundo o qual o Peta esteve tão presente nos últimos anos que os ativistas e os nativos do festival chegaram a uma espécie de homeostase de tolerância precária, por exemplo: “Tivemos alguns incidentes uns anos atrás. Uma mulher tirou quase toda a roupa, se pintou inteira de lagosta e quase acabou presa. Mas na maior parte do tempo eles são deixados em paz. [Uma sequência rápida de risadinhas ambíguas, algo que acontece bastante com Dick.] Eles fazem a parte deles e nós fazemos a nossa.”

Essa interlocução inteira ocorre na Rota 1, em 30 de julho, durante um trajeto de 6 quilômetros e cinquenta minutos do aeroporto até a locadora para assinar os documentos de aluguel do carro. Depois de vários desdobramentos irreproduzíveis das anedotas sobre o Peta, Dick (cujo genro é pescador de lagostas por ofício e um dos fornecedores da Praça de Alimentação Principal) expõe o que ele e sua família consideram o fator atenuante crucial em toda essa questão sobre a moralidade de ferver lagostas vivas: “No cérebro das pessoas e dos animais existe uma parte que nos faz sentir dor, e os cérebros das lagostas não têm essa parte.”

Sem entrar no mérito de essa tese estar incorreta por uns onze motivos diferentes, a declaração de Dick se torna interessante por ser mais ou menos ecoada pelo pronunciamento oficial do FLM sobre lagostas e dor, parte integrante de um teste chamado “Teste seu QI de lagosta” encartado no programa do festival de 2003 por cortesia do Conselho de Fomento à Lagosta do Maine: O sistema nervoso da lagosta é muito simples, e na verdade é muito semelhante ao sistema nervoso do gafanhoto. É descentralizado, sem um cérebro. Não há um córtex cerebral, que nos humanos é a área do cérebro que proporciona a experiência da dor.

Embora soe mais sofisticado, boa parte do embasamento neurológico desta afirmação ainda é falsa ou imprecisa. O córtex cerebral humano é a parte do cérebro que lida com as faculdades superiores, como a razão, a autoconsciência metafísica, a linguagem etc. Sabemos que os receptores da dor fazem parte de um sistema muito mais antigo e primitivo de nociceptores e prostaglandinas administrados pelo tronco encefálico e o tálamo. Por exemplo, a experiência corriqueira de encostar a mão sem querer em um forno quente e retirá-la bruscamente antes mesmo de notar que há algo de errado se explica pelo fato de muitos dos processos através dos quais detectamos e evitamos os estímulos dolorosos não envolverem o córtex. No caso da mão e do forno, o cérebro é totalmente contornado; toda a ação neuroquímica importante acontece na espinha dorsal.

Por outro lado, é verdade que o córtex cerebral está envolvido no que se costuma chamar de sofrimento, aflição ou experiência emocional da dor – isto é, experimentar estímulos dolorosos como desagradáveis, muito desagradáveis, intoleráveis e assim por diante.



ntes de avançarmos, vamos reconhecer que as questões sobre se e como diferentes tipos de animais sentem dor, e de se e por que seria justificável lhes infligir dor para se alimentar deles, se mostram extremamente complexas e difíceis. E neuroanatomia comparada é apenas parte do problema. Como a dor é uma experiência mental totalmente subjetiva, não temos acesso direto à dor de ninguém ou de coisa alguma, somente à nossa; e até mesmo os princípios pelos quais podemos inferir que outros seres humanos experimentam a dor e têm um interesse legítimo em não sentir dor envolvem filosofia pura – metafísica, epistemologia, teoria dos valores, ética.

O fato de nem mesmo os mamíferos não humanos mais evoluídos serem capazes de usar linguagem para se comunicar conosco a respeito de sua experiência mental subjetiva é apenas a primeira camada da complicação adicional de tentar estender aos animais nossos raciocínios sobre dor e moralidade. E tudo fica cada vez mais abstrato e intrincado à medida que nos afastamos mais e mais dos mamíferos superiores e passamos aos bovinos e suínos, aos cães e gatos e aos roedores, e então aos pássaros, aos peixes e por fim aos invertebrados, como as lagostas.

Todavia o mais importante aqui é que toda a questão da crueldade com os animais e da moralidade de comê-los não é apenas complexa, mas também desconfortável. Ou pelo menos é desconfortável para mim, e para praticamente todos os meus conhecidos que apreciam uma ampla gama de alimentos e ao mesmo tempo não querem se enxergar como cruéis ou insensíveis. Até onde percebo, minha principal maneira de lidar com esse conflito tem sido evitar pensar sobre esse assunto tão desagradável. Devo admitir que também me parece improvável que muitos leitores de Gourmet queiram pensar sobre isso ou ser questionados a respeito da moralidade dos seus hábitos alimentares por uma revista mensal de gastronomia. Porém, como a pauta definida para este artigo é descrever como foi participar do FLM de 2003, e por causa disso passar vários dias em meio a uma grande massa de americanos comendo lagostas, e consequentemente ser mais ou menos impelido a pensar a fundo sobre lagostas e sobre a experiência de comprar e comer lagostas, calha que não existe uma maneira honesta de evitar certas questões morais.

Há vários motivos para isso. Para começar, não existe só o problema de que as lagostas são fervidas vivas, mas também o de que quem faz isso é você – ou pelo menos isso é feito especificamente para você, in loco. Em termos de moralidade, é preciso admitir que isso é uma faca de dois gumes. Pelo menos comer lagostas não torna ninguém cúmplice do sistema corporativo de fazendas de confinamento que produz a maior parte da carne de boi, porco e frango. Por causa, no mínimo, do modo como são comercializadas e embaladas, comemos essas carnes sem ter de pensar que um dia já foram criaturas sencientes e dotadas de consciência às quais foram feitas coisas horríveis.

Conforme mencionado, a Maior Panela para Lagostas do Mundo, que é destacada como uma atração no programa do festival, fica bem à vista de todos na área norte do FLM. Tente imaginar um Festival da Carne do Nebraska cujas festividades incluíssem caminhões estacionando e gado sendo descarregado por uma rampa para em seguida ser abatido diante do público no Maior Matadouro do Mundo ou coisa parecida – seria impossível.



intimidade da coisa toda é maximizada em casa, onde naturalmente a maioria das lagostas é preparada e comida (percebam, contudo, o eufemismo semiconsciente “preparada”, que no caso das lagostas significa na verdade matá-las bem no meio das nossas cozinhas). No cenário habitual, o sujeito chega em casa com as lagostas e toma pequenas providências como encher o tacho de água e pôr para ferver, em seguida retira as lagostas da sacola ou qualquer que seja o recipiente em que tenham sido trazidas... e então coisas desconfortáveis começam a acontecer. Por mais estuporada que esteja depois do trajeto, por exemplo, a lagosta costuma voltar à vida de forma alarmante ao ser colocada na água fervente. Quando é despejada do recipiente para dentro do tacho fumegante, às vezes a lagosta tenta se segurar nas bordas do recipiente ou até mesmo enganchar as garras na beira do tacho como uma pessoa dependurada de um telhado, tentando não cair. Pior ainda é quando a lagosta fica imersa por completo. Mesmo que o sujeito tampe o tacho e saia de perto, normalmente é possível ouvir a tampa chacoalhando e rangendo enquanto a lagosta tenta empurrá-la. Ou escutar as garras da criatura raspando o interior do tacho enquanto se debate. Em outras palavras, a lagosta apresenta um comportamento muito parecido com o que eu ou você apresentaríamos se fôssemos atirados em água fervente (com a óbvia exceção dos gritos). Para falar de modo ainda mais direto, a lagosta age como se sentisse dores terríveis, fazendo com que algumas pessoas abandonem a cozinha levando consigo um daqueles cronômetros de plástico para esperar em outro cômodo até o processo inteiro chegar ao fim.

Há um mito populista relevante acerca do apito agudo que por vezes escapa de uma panela onde se fervem lagostas. O som é causado pelo vapor expelido pela camada de água marinha entre a carne da lagosta e sua carapaça (é por isso que as lagostas de casca mole apitam mais que as de casca dura), mas a versão pop afirma que esse som, semelhante aos guinchos de um coelho, é o grito de morte da lagosta. As lagostas se comunicam através de feromônios na urina e não possuem nada remotamente parecido com o equipamento vocal necessário para gritar, mas o mito é bastante persistente – o que pode, mais uma vez, apontar para um desconforto baixo cultural a respeito dessa história de ferver lagostas.



maioria dos eticistas concorda que existem dois critérios principais para determinar se uma criatura viva possui a capacidade de sofrer e, assim, possui interesses genuínos que podemos ou não ter o dever moral de levar em conta.[2] Um deles se relaciona ao hardware neurológico requerido para a experiência da dor com que o animal vem equipado – nociceptores, prostaglandinas, neurorreceptores de opioides etc. O outro critério é se o animal demonstra algum comportamento associado à dor. E é necessária uma boa dose de ginástica intelectual e detalhismo behaviorista para não ver as ações de lutar, se debater e fazer tilintar tampas de panela como comportamentos associados à dor. Segundo os zoólogos marinhos, em geral uma lagosta leva de 35 a 45 segundos para morrer dentro da água fervente. (Não consegui encontrar nenhuma fonte que mencione o tempo necessário pa-ra que morram em vapor superaquecido; espera-se que seja mais rápido.)

Existem, é claro, outras maneiras de matar sua lagosta in loco e assim obter o máximo de frescor. Alguns cozinheiros têm como hábito espetar a ponta de uma faca afiada e pesada em um ponto logo acima da metade da distância entre os olhos pedunculares da lagosta (mais ou menos onde o Terceiro Olho se localiza nas frontes humanas). A alegação é que isso ou mata a lagosta instantaneamente ou a torna insensível, e dizem que elimina ao menos parte da covardia envolvida no ato de jogar uma criatura em água fervente e em seguida abandonar o recinto.

Até onde pude deduzir conversando com defensores do método da facada na cabeça, o raciocínio é que ele é mais violento, todavia no fim das contas é mais misericordioso, além de que a disposição de exercer agência pessoal e aceitar a responsabilidade de apunhalar a cabeça da lagosta de algum modo honra o animal e autoriza alguém a comê-lo (os argumentos pró-facada muitas vezes têm um sabor vago de “espiritualidade da caça” do nativo americano). Mas o problema do método da facada é biologia básica: os sistemas nervosos das lagostas não operam a partir de um, mas de diversos gânglios conhecidos como feixes de nervos, meio que conectados em série e distribuídos por toda a parte de baixo do corpo do animal, da proa à popa. E incapacitar somente o gânglio frontal não costuma resultar em morte rápida ou perda de consciência.

Outra alternativa é colocar a lagosta em água salgada fria e em seguida ferver lentamente. Cozinheiros que defendem este método recorrem à analogia da rã, que supostamente pode ser impedida de saltar de uma panela fervente se a água for esquentada aos poucos. Para poupar a todos de um resumo das minhas pesquisas, vou simplesmente garantir que a analogia entre rãs e lagostas não se sustenta – e digo mais, se a água na panela não for água marinha e aerada, a lagosta nela imersa é submetida a uma lenta sufocação, embora esta não seja severa o suficiente para impedir que ela se debata e faça barulho quando a água ficar quente o bastante para matá-la. Na realidade, lagostas fervidas aos poucos muitas vezes demonstram todo um conjunto adicional de reações pavorosas e convulsivas que normalmente não são registradas na fervura comum.

Em última análise, as únicas virtudes confirmadas dos métodos de lobotomia caseira e fervura lenta são comparativas, pois há quem prepare lagostas de formas ainda piores, mais cruéis. Cozinheiros interessados em poupar tempo às vezes colocam as lagostas vivas no micro-ondas (geralmente após fazer várias perfurações na carapaça, uma precaução cuja utilidade muitos adeptos do micro-ondas aprendem na prática). Esquartejar a lagosta viva, por outro lado, faz sucesso na Europa – alguns chefs dividem a lagosta ao meio antes de cozinhar; outros gostam de arrancar as patas e a cauda e atirar somente essas partes dentro da panela.



há outras más notícias relacionadas ao critério de sofrimento número 1. Ainda que não se destaquem pela visão ou pela audição, as lagostas possuem um tato muito refinado, auxiliado por centenas de milhares de pelos minúsculos que se projetam através da carapaça. “E é por isso”, nas palavras de T. M. Prudden no clássico do ramo, About Lobsters, “que embora envolta pelo que parece uma armadura sólida e impenetrável, a lagosta é capaz de receber estímulos e sensações do mundo exterior tão prontamente quanto se possuísse uma pele macia e delicada.” E as lagostas possuem nociceptores,[3] bem como versões invertebradas de prostaglandinas e neurotransmissores importantes através dos quais nossos próprios cérebros registram a dor.

Por outro lado, as lagostas não parecem contar com o equipamento necessário para produzir ou absorver opioides naturais como as endorfinas ou as encefalinas, utilizados pelos sistemas nervosos mais avançados para tentar lidar com a dor intensa. A partir desse fato, porém, pode-se concluir que as lagostas talvez sejam ainda mais vulneráveis à dor, pois não contam com a analgesia embutida nos sistemas nervosos dos mamíferos. Ou, em vez disso, concluir que a ausência de opioides naturais implica a ausência das sensações de dor realmente intensas que essas substâncias são destinadas a aliviar. Eu particularmente detecto uma melhora sensível no meu humor ao contemplar esta última possibilidade. É possível que a ausência de hardwarepara endorfinas/encefalinas signifique que para as lagostas a experiência crua e subjetiva da dor seja tão radicalmente diferente da experiência dos mamíferos que pode nem mesmo ser merecedora do termo “dor”. Talvez as lagostas tenham mais em comum com aqueles pacientes de lobotomia frontal sobre quem a gente às vezes lê, que relatam experimentar a dor de uma maneira totalmente diferente de você e eu. É evidente que esses pacientes sentem dor física, neurologicamente falando, mas não desgostam dela – embora também não cheguem a gostar; é como se eles sentissem dor, mas não sentissem nada a respeito dela – ou seja, a dor não lhes aflige nem é algo que desejem evitar.

Talvez as lagostas, que também não possuem lobos frontais, sejam da mesma forma indiferentes ao registro neurológico de ferimento ou perigo que chamamos de dor. Existe, afinal de contas, uma diferença entre: (1) a dor como um evento puramente neurológico e (2) o sofrimento genuíno, onde parece crucial o envolvimento de um componente emocional, uma consciência da dor como uma experiência desagradável, algo a se temer/desgostar/querer evitar.

Ainda assim, após toda a abstração intelectual, restam os fatos da tampa batendo freneticamente, das patas enganchadas de forma patética na beira da panela. Diante do fogão é difícil negar de qualquer modo que aquilo seja uma criatura viva sentindo dor e tentando evitar/escapar dessa experiência dolorosa. Para minha mente leiga, o comportamento da lagosta no tacho parece ser uma expressão de preferência; e é bem possível que uma habilidade para formar preferências seja o critério decisivo para o sofrimento real. Em linhas gerais “preferência” talvez seja um sinônimo de “interesses”, mas é um termo melhor para nossos fins por ser menos abstratamente filosófico – “preferência” parece mais pessoal, e o que está em questão é justamente toda a ideia da experiência pessoal de uma criatura viva.

A lógica desta relação (preferência → sofrimento) pode ser mais facilmente compreensível no caso negativo. Se cortarmos ao meio certos tipos de vermes, muitas vezes as metades seguirão rastejando por aí e cuidando dos seus assuntos vermiformes como se nada tivesse acontecido. Quando, tomando como base seu comportamento pós-operatório, afirmamos que esses vermes não parecem estar sofrendo, estamos na verdade dizendo que não existe indício algum de que os vermes saibam que algo de ruim aconteceu ou que prefeririam não ser divididos ao meio.

As lagostas, porém, manifestam preferências. Experimentos demonstraram que elas são capazes de detectar mudanças de apenas 1 ou 2 graus na temperatura da água; um dos motivos para seus complexos ciclos migratórios (que muitas vezes abarcam mais de 180 quilômetros por ano) é a busca por temperaturas que consideram mais agradáveis. E, como já foi mencionado, as lagostas vivem no leito marinho e não gostam de claridade – se um aquário cheio de lagostas for colocado à luz do sol ou mesmo sob a luz fluorescente de uma loja, elas vão sempre se aglomerar na parte mais escura. Por serem bastante solitárias no oceano, as lagostas também claramente desgostam do amontoamento que é parte indissociável do seu cativeiro em aquários, pois (como também já foi mencionado) um dos motivos pelos quais se amarram as garras das lagostas assim que elas são capturadas é evitar que elas ataquem umas às outras por causa do estresse do armazenamento em espaços exíguos.



e qualquer modo, no FML, diante dos aquários borbulhantes em frente à Maior Panela para Lagostas do Mundo, observando as lagostas recém-pescadas se amontoando umas sobre as outras, sacudindo impotentes as garras amarradas, se escondendo nos cantos mais escuros ou se afastando inquietas do vidro quando alguém se aproxima, é difícil não sentir que estão infelizes, ou assustadas, mesmo que seja alguma forma rudimentar dessas emoções... e, a propósito, por que a rudimentariedade tem que ser incluída na questão? Por que uma forma primitiva e inarticulada de sofrimento seria menos urgente ou desconfortável para a pessoa que está colaborando com ela ao pagar pelo alimento resultante desse sofrimento? Não estou tentando passar um sermão ao estilo do Peta – ou pelo menos acho que não. Em vezdisso, estou tentando compreender e articular alguns dos questionamentos perturbadores que vêm à tona em meio às risadas, à animação e ao orgulho comunitário do Festival da Lagosta do Maine. A verdade é que, se comparecendo ao festival o sujeito se permitir cogitar que as lagostas podem sofrer e que prefeririam que isso não acontecesse, o flm começa a ficar parecido com um circo romano ou um festival de torturas medievais.

Parece uma comparação exagerada? Se for o caso, exatamente por quê? Ou que tal esta: é possível que as gerações futuras considerem as práticas de agronegócio e alimentares contemporâneas da mesma maneira como hoje enxergamos os espetáculos de Nero ou os experimentos de Mengele? Minha própria reação inicial é achar tais comparações histéricas e extremadas – todavia, o motivo pelo qual me parecem extremadas é que eu creio que os animais são moralmente menos importantes que os seres humanos;[4] e quando se trata de defender essa crença, ainda que para mim mesmo, preciso reconhecer que: (a) tenho um óbvio interesse egoísta nessa crença, pois gosto de comer certos tipos de animais e quero ser capaz de continuar fazendo isso, e (b) não consegui elaborar nenhum tipo de sistema ético pessoal dentro do qual essa crença se torne verdadeiramente justificável em vez de ser apenas uma conveniência egoísta.



evando em conta o lugar onde este artigo será publicado e minha própria falta de sofisticação culinária, tenho curiosidade de saber se o leitor se identifica com quaisquer dessas reações, confissões e desconfortos. Também não quero soar excessivo ou moralista, quando na verdade o que sinto é confusão. Perguntas aos leitores de Gourmet que apreciam refeições bem-feitas e bem-apresentadas envolvendo carne de vaca, vitela, cordeiro, porco, frango, lagosta etc.: Vocês pensam muito sobre a (possível) condição moral e o (provável) sofrimento dos animais envolvidos? Se pensam, quais convicções éticas desenvolveram para se permitir não apenas comer, mas também saborear e desfrutar de iguarias à base de carnes de animais (pois o desfrute refinado, em contraste com a mera ingestão, é naturalmente a razão de ser da gastronomia)? Se, por outro lado, vocês não dão a menor bola para confusões ou convicções e acham coisas como o parágrafo anterior puro umbiguismo sem sentido, o que em seu íntimo faz vocês sentirem que não existe realmente problema algum em desconsiderar de forma peremptória toda essa questão? Isto é, a recusa em pensar nessas coisas seria o produto de um raciocínio ou na verdade vocês apenas não querem pensar sobre o assunto? E se for isso mesmo, por que não? Vocês chegam a pensar, mesmo à toa, sobre as possíveis razões dessa relutância em pensar no assunto? Não estou tentando importunar ninguém – minha curiosidade é genuína. Afinal de contas, ser muito consciente, atencioso e cuidadoso a respeito do que se come e de todo o contexto englobante não é parte do que distingue um verdadeiro gourmet? Ou toda a atenção e a sensibilidade extraordinárias do gourmet devem se limitar ao sensorial? Tudo poderia realmente ser resumido a uma questão de sabor e apresentação?

Estas últimas indagações, todavia, ainda que sinceras, obviamente envolvem questões muito maiores e mais abstratas a respeito das conexões (caso existentes) entre estética e moralidade – sobre o que realmente significa o adjetivo em uma expressão como “A Revista da Boa Vida” –, e essas questões levam diretamente a águas tão profundas e traiçoeiras que talvez seja melhor encerrar por aqui a discussão pública. Existem limites mesmo para o que as pessoas interessadas podem perguntar umas às outras. J

03 de julho de 2015

DAVID FOSTER WALLACE




[1]No fim das contas se descobriu que um tal sr. William R. Rivas-Rivas, membro de alto escalão do quartel-general do Peta na Virginia, estava no festival este ano, ainda que sozinho, cuidando das entradas principal e lateral no sábado, dia 2 de agosto, distribuindo panfletos e adesivos com a inscrição “Ser Fervido Dói”.

[2]“Interesses” significa basicamente preferências fortes e legítimas, que obviamente exigem algum grau de consciência, reatividade a estímulos etc. Veja, por exemplo, o que diz o filósofo utilitarista Peter Singer, cujo livro Libertação Animal, de 1975, é a bíblia do movimento contemporâneo de direitos dos animais: Seria tolice dizer que não está nos interesses de uma pedra ser chutada por um garoto ao longo de uma estrada. Uma pedra não tem interesses, pois não pode sofrer. Nada que possamos fazer com ela representaria qualquer diferença em seu bem-estar. Um rato, por outro lado, tem interesse em não ser chutado ao longo da estrada, pois sofrerá se isso vier a acontecer.

[3]Este é o termo neurológico para receptores sensoriais específicos, “sensíveis a extremos de temperatura potencialmente nocivos, a forças mecânicas e a substâncias químicas liberadas quando os tecidos do corpo sofrem danos”.

[4]Significando bem menos importantes, ao que parece, posto que a comparação moral em jogo não é o valor de uma vida humana versus o valor de uma vida animal, mas sim o valor de uma vida animal versus o valor do gosto humano por um tipo específico de proteína. Até mesmo o “carnófilo” mais teimoso reconheceria que é possível viver e comer bem sem consumir animais.

O SUJINHO DA FOLIA






Vida e obra de um banheiro químico no pré-Carnaval carioca



Às cinco da tarde de 13 de janeiro, um domingo, cerca de 500 foliões aguardavam o início dos festejos pré-carnavalescos no Centro do Rio de Janeiro. Em meio a piratas, freiras, marinheiros e vendedores de cerveja, dezesseis banheiros químicos pintados de um laranja estridente esperavam desde as oito da manhã, enfileirados perto do palco montado em frente à Fundição Progresso, centro cultural que ocupa uma antiga fábrica atrás dos Arcos da Lapa.

Quando o grupo Toque Tambor abriu a batucada, ainda não havia filas de pierrôs e colombinas ansiosos para se livrar do excesso etílico nas cabines herméticas. Com a demanda pequena, o composto químico azulado nos sanitários desempenhava com razoável efi-ciência sua função de desodorizar o ambiente e dissolver os dejetos. Rolos de papel higiênico pela metade jaziam no chão dos cubículos de 2,30 metros de altura, com 1,10 metro de largura por 1,20 de profundidade. Os suportes de papel toalha já estavam vazios. As placas que distinguiam os compartimentos femininos e masculinos eram ignoradas pelos usuários.

No Carnaval de 2012, 5,3 milhões de cariocas e turistas saíram nos blocos do Rio. O banheiro químico é a alternativa ruim, mas possível, à infração cometida por foliões que improvisam mictórios em árvores, muros, bueiros e rodas de carros – e costumam ser saudados por gritos de “Pega mijão!”.

O cálculo básico dos organizadores de eventos ao ar livre é de uma cabine para cada 200 pessoas. “Calculamos a partir da nossa previsão de público. Mas há variáveis que não controlamos, como a chuva ou o calor excessivo, que interferem na quantidade de gente”, explicou Vanessa Damasco, da Fundição Progresso, responsável pelo evento pré-carnavalesco daquele domingo na Lapa. Vanessa não previu, por exemplo, que teria que acionar os seguranças para retirar usuários de crack de dentro dos banheiros antes de a aglomeração começar.

A diária de um sanitário portátil varia entre 200 e 350 reais, mas o valor diminui de acordo com a quantidade alugada. Ciosa do controle de gastos, Vanessa optou por banheiros standard, um modelo desprovido de descarga, em que os detritos misturados com a química ficam expostos pelo buraco do vaso. O privilégio de evitar o contato visual do usuário com o cocô e o xixi alheios é exclusivo dos modelos Luxo e vip. Ambospossuem um alçapão que abre quando o visitante aciona o pedal da descarga, deixando os dejetos caírem na caixa coletora. O modelo Luxo oferece ainda um recipiente com álcool gel para a limpeza das mãos, e o vip, o mais diferenciado dos banheiros portáteis, tem uma pequena pia de plástico. Em todos os casos, a caixa de dejetos fica abaixo do vaso, servindo-lhe de suporte. Sua capacidade de armazenamento costuma ser de cerca de 220 litros. Quando o público supera em muito o previsto, os tanques transbordam.



a Lapa, as filas começaram a se formar uma hora depois de soar a bateria do Toque Tambor. O mau cheiro já tomava conta dos banheiros, reivindicando seu lugar de praxe na folia. O líquido azul apenas tingia o branco do papel, misturado ao marrom dos detritos. A fórmula do produto químico, que geralmente vem em pó e é misturado à água, é um segredo industrial. Sabe-se apenas que contém ingredientes como sulfato de magnésio, álcool, bromo e propanodiol.

Quando a festa na Lapa chegava ao final, uma chuva fina ajudou a transformar o chão dos sanitários em pequenos mangues. O papel higiênico já se tornara mais escasso que pinguim em Copacabana, e o mau cheiro espalhava-se ao redor das cabines. Segundo os organizadores, 6 mil pessoas pularam aquele pré-Carnaval. Teriam sido necessários trinta banheiros, considerada a proporção ideal – quase o dobro do que havia ali. Mas não houve transbordamentos.

No dia seguinte, por volta do meio-dia, um caminhão da empresa que alugou os sanitários chegou para fazer a limpeza. O veículo tem um tanque com capacidade para 9 mil litros de sujeira e é equipado com uma mangueira. Acoplada à caixa de dejetos das cabines, ela suga o conteúdo, a vácuo. Foi apelidada de chupa-merda.

A empresa tem que pagar para se desfazer da carga. Há lugares públicos de despejo, como a Estação de Tratamento de Esgotos Alegria, e privados, como a companhia EnviroChemie. Nessas estações, processos de oxidação e decantação transformam os resíduos num lodo biológico que, depois de desidratado, é descartado em aterros industriais ou vira adubo. A água, quase limpa, é lançada ao mar. Uma empresa de aluguel e limpeza de banheiros químicos tem de ser licenciada pelo Instituto Estadual do Ambiente, o Inea. Em geral, a mesma firma aluga o equipamento, limpa e transporta os dejetos para tratamento.



esmo com a oferta gratuita de sanitários, alguns foliões aliviaram-se a céu aberto na Lapa. Nem os alicerces dos Arcos centenários foram poupados. O número de flagrantes de xixi na rua aumenta a cada ano na cidade. Segundo a Secretaria Municipal de Ordem Pública, foram 1 014 em 2012, incluindo 114 mulheres e 4 estrangeiros. Os infratores são levados para a delegacia sob a acusação de ato obsceno e acabam, no final do processo, pagando cestas básicas ou prestando serviços comunitários.

Para o Carnaval deste ano, a prefeitura autorizou o desfile de 492 blocos e contratou a empresa Dream Factory para produzir a infraestrutura do evento, patrocinado pela Ambev. A previsão é de que, nos 28 dias oficiais de folia, iniciados em 19 de janeiro, 8 500 banheiros químicos individuais, modelo standard, e 55 contêineres com sete vasos sanitários sejam postos à disposição dos adeptos das folias momescas. As empresas que alugam os banheiros reclamam das despesas causadas pela depredação. Pichações, queimaduras das paredes com cigarros e furtos de lâmpadas acontecem com frequência.

A Desentop, que fez a higienização dos banheiros químicos do Carnaval carioca de 2012, dispõe seu estoque de 150 sanitários em um galpão em Inhaúma, na Zona Norte da cidade. Um dos funcionários que colocam a mão na massa, João Batista lista os itens que mais encontra nos cubículos: celular, saquinho de cocaína vazio, absorvente feminino, camisinha e corrente de pescoço. “Na Lapa, costumo encontrar gente dormindo dentro do banheiro. Mas o que achei de mais inusitado foi um varal de calcinha, com vários tamanhos e modelos”, contou. Rindo, lembrou que um colega se deparou com dois homens transando quando abriu a porta da cabine, e estava prestes a entrar com a mangueira de sucção.


03 de julho de 2015
Renato Terra

SEM PALHAÇO PARA CALÇAR



No Centro do Rio, um espanhol exerce um ofício em extinção
As paredes empoeiradas da oficina de Ernesto Nieto são cobertas com velhos pôsteres do Flamengo, alguns do início da década retrasada. Sob um teto do qual ripas de madeira amea-çam saltar, espalham-se calçados de todos os tipos e tamanhos. O ambiente não lembra propriamente um picadeiro, mas vez por outra um palhaço pode ser visto adentrando o recinto – sempre disfarçado de cidadão comum.
Com mais de meio século de ofício, Ernesto Nieto é um dos mais antigos sapateiros de palhaço em atividade no Rio de Janeiro. Orgulha-se de ter confeccionado calçados usados nos mais reputados picadeiros do Brasil e até em circos dos Estados Unidos e da Europa, sem contar incontáveis bufões anônimos que atuam nos sinais de trânsito.
Seu Ernesto está instalado numa velha oficina na Praça da Bandeira, na região central da cidade. O saltimbanco que aparecer ali para encomendar um par de calçados vai encontrá-lo atrás do balcão, ilhado entre as montanhas de moldes de madeira pré-fabricados, provavelmente pregando um solado ou cortando uma tira de couro.
Para obter o tamanho exagerado característico de um típico sapato de palhaço, seu Ernesto primeiro mede o tamanho do pé do ladrão de mulher e depois acrescenta três dedos – ou dois números. “Corto o couro na forma determinada, cato uma espuma para enxertar no bico e costuro tudo à mão, ponto a ponto”, explicou. O toque final é uma sola de borracha com a espessura certa para permitir que o palhaço estale o calçado ruidosamente no palco.
Uma máquina de costura para o acabamento é a tecnologia mais avançada a que seu Ernesto recorre. A confecção de cada par pode ocupá-lo durante um dia inteiro. O espanhol vende por cerca de 400 reais os pares de sapato de palhaço que produz. “Cada modelo dura facilmente mais de três anos”, justificou. Desconfiado, preferiu não revelar os segredos do seu ofício. “A ciência do sapato de palhaço está no corte do couro”, sentenciou. “E mais não digo, afinal, em lagoa de sapo, mosquito não dá rasante.”

rnesto Nieto nasceu em Santiago de Compostela, na Espanha, há 72 anos. Em 1956, estudava numa escola de padres quando foi expulso por assediar uma freira.Para fugir à reprovação da família, que sonhava em vê-lo de batina, foi morar escondido com a avó. Mas sua vida de fugitivo acabou durando pouco: encantado por um filme de Carmen Miranda, decidiu que queria viver no Brasil. Com a ajuda de franciscanos, solidários com suas boas notas e compreensivos com a sua vocação, juntou os trapos e cruzou o Atlântico.
O espanhol carregou muito saco no cais do porto do Rio até conseguir um serviço extra como aprendiz de sapateiro na Praça da Bandeira, onde está desde 1959. O antigo patrão, um português, voltou para a terrinha cinco anos depois e deixou tudo de herança para Ernesto.
Nas horas vagas, o espanhol gostava de copiar modelos de sapato inusitados que via nas revistas de moda. Sua carreira mudou de rumo em meados dos anos 70, no dia em que um cliente, ao resgatar o calçado que tinha deixado para consertar na oficina, viu um desses pares diferentes. O freguês era figurinista da Rede Globo. Na época, a adaptação para a tevê do Sítio do Pica-Pau Amarelo fazia sucesso, e ele encomendou sapatos para todo o elenco.
“Daí foi um passo para começar a produzir também para o Carnaval, as turmas de teatro e do circo”, contou. Por muito tempo seu Ernesto foi o único a ocupar o seu nicho de mercado no Rio – “Até que descobriram o negócio na década de 90.” Ainda assim, a concorrência se conta nos dedos: “Tem um sapateiro de palhaço aqui na vizinhança e outros dois em Copacabana.”
Com a chegada dos concorrentes e o declínio da popularidade dos circos, a clientela para os calçados produzidos por seu Ernesto anda cada vez mais escassa. Em seu auge, na década de 70, chegou a produzir 120 pares por semana. Hoje, com sorte, fabrica quarenta por mês. Mas ele não perde a motivação com o ofício. “Embora os circos estejam rareando, tem toda a turma do teatro, que é muito grande”, afirmou. “Quando eles não têm dinheiro, nem me importo em dar um desconto.”
Ameaça maior, na avaliação do sapateiro, é a tendência dos clientes a buscar economia a qualquer custo. “As pessoas preferem pagar 60 reais por um sapato de plástico e papel que não dura nem um ano a investir num modelo sob medida e com material de qualidade”, lamentou. “Até marcas que apostam em produtos superiores estão acabando.”
Numa manhã recente, uma freguesa chegou para pegar o sapato que deixara para consertar o salto. A cliente questionou o serviço, reclamou da poeira, do preço, do tempo e do Flamengo. Tanto protestou que o sapateiro acabou baixando o preço de 40 para 10 reais. Nem assim adiantou. Só se convenceu depois que ele ameaçou quebrar o salto e deixá-lo como estava antes.
03 de julho de 2015
Felipe Sáles

CAMELÔ DIFERENCIADO



Escassez de cinemas impulsiona comércio de DVDs piratas em Niterói



Num almoço de família recente, o assunto na casa do médico aposentado Paulo da Silva era cinema. Não tardou até que a conversa chegasse aos filmes que concorreram ao Oscar de 2012. Seu genro elogiou O Artista, ganhador de cinco estatuetas, pela opção do preto e branco. O anfitrião aquiesceu e aproveitou para enaltecer também O Palhaço, pela coragem do diretor que havia feito a mesma escolha. O argumento deixou a família desorientada. Afinal, o filme de Selton Mello tinha sido rodado em cores bem vivas.


Quando enfim se convenceu de que era ele quem estava errado, Paulo da Silva se lembrou da vez em que tinha visto A Separação, de Asghar Farhadi. Intrigado com a complexidade da trama, ele primeiro praguejou contra o hermetismo do cinema iraniano. Só se tocou de que algo estava errado no momento em que,ao voltar um trecho do filme no DVD para tentar entender um diálogo, descobriu que as legendas apareciam de maneira aleatória, independentemente do que diziam os personagens.

Havia algo em comum entre os DVDs de Silva. Tanto O Palhaço como A Separação eram cópias piratas adquiridas de Jônatas, um camelô que costuma despachar numa praça arborizada de Icaraí, em Niterói.

Num domingo ensolarado de novembro, lá estava de novo Paulo da Silva, desta vez para trocar um DVD de Ted. Adquirido alguns dias antes, sua cópia viera inadvertidamente com legendas em chinês. Quando encontrou o camelô em frente a uma barraca de roupas importadas, já havia uma fila de sete fregueses. “Jônatas, meu filme travou no final”, queixou-se uma senhora, estendendo-lhe um DVD. “Vou pedir para meu pai deixar uma cópia perfeita na sua portaria”, respondeu o camelô, solícito, num acentuado sotaque carioca.

Naquela manhã, Jônatas vestia bermuda de tactel preta e vermelha, camiseta azul, chinelo de dedo e um par de óculos escuros. Na grade de plástico em que exibe as capas de DVDs à venda, sucessos de público como Hotel Transilvânia, Homem-Aranha e Valente dividiam o espaço com filmes “cabeça” como Cairo 678, do egípcio Mohamed Diab, ou Adorável Pivellina, uma coprodução ítalo-austríaca. É nesse último filão que o camelô encontrou seu público. “O pessoal aqui oferecia muita porcaria, com pouca qualidade. Vi que ninguém vendia filme cult. E é muito difícil conseguir ver esses filmes em Niterói”, explicou Jônatas. “Filme cult e desenho. Isso é o que mais vendo.”

Preocupado com a clientela, passou a assistir aos filmes e fazer recomendações. Seu atual campeão de vendas é Intocáveis, uma comédia francesa sobre a amizade de um milionário tetraplégico com seu enfermeiro negro, um descendente de imigrantes da periferia de Paris.“O filme é sensacional”, sentenciou Jônatas. Uma cliente endossou a opinião do camelô. “Por que você não leva um, meu filho?”, sugeriu ao repórter.

Curiosa, a senhora que veio trocar o DVD defeituoso não resistiu ao ver na banca de Jônatas o espanhol O Melhor de Eva, de Mariano Barroso. “Você já viu esse?”, perguntou, interessada. “Vi sim, é tipo A Separação, aquele iraniano, sabe?”, respondeu o camelô. O argumento foi suficiente para concretizar a venda – a cópia dela do filme de Farhadi por certo estava com as legendas sincronizadas.


ntre outras razões, a atividade ilegal de Jônatas prosperou porque a cidade de Niterói tem hoje apenas dois cinemas em funcionamento. Localizados em shopping centers movimentados, têm a programação dominada por blockbusters americanos. O Cine Icaraí, vedete do bairro mais famoso da cidade, virou um elefante branco. Está fechado desde 2006. O último reduto para filmes europeus, documentários e longas independentes – a sala de cinema da Universidade Federal Fluminense – está em obras desde 2009, sem previsão para reabrir. A principal rede de locadoras também fechou as portas.

No livro Cinematographos em Nictheroy, a ser lançado este mês, o professor da UFF Rafael de Luna refez a história das salas de cinema da cidade e mostrou como elas foram aos poucos substituídas por supermercados, igrejas evangélicas, agências bancárias, bingos, lojas e até a sede da escola de samba Viradouro. “Os cinemas de Icaraí não fecharam por falta de público, mas pela especulação imobiliária”, explicou o autor. “Os terrenos se valorizavam e houve a opção por outra atividade mais rentável.”

Luna lembrou que Niterói já teve uma das maiores salas do Brasil na primeira metade do século XX. O Cinema Colyseu abrigava até 3 mil pessoas. Nos anos 70, a cidade tinha onze salas de cinema de rua e se orgulhava de oferecer quase 11 mil assentos para 323 mil habitantes, ou uma poltrona para cada trinta moradores. No final de 2012, a capacidade caiu para 2 416 lugares. Como a população chegou a quase meio milhão, a proporção agora é de 201 niteroienses para cada poltrona, segundo as contas do professor.


tento à crescente demanda pelos chamados filmes de arte, Jônatas ampliou seus serviços. Além da entrega em domicílio, a vasta carteira de clientes conquistada agora conta com um sistema de compras on demand. “Tem um cliente que me pediu para procurar trinta filmes do Elvis Presley. Já achei 27, mas ainda não consegui baixar nenhum”, explicou, resignado. “Tenho lista de clientes com 103 filmes para procurar.”

Sua linha de produção é azeitada: o camelô baixa os filmes na internet, grava-os em DVDs, imprime a capa e embala num saquinho plástico retangular. “Acompanho os filmes que estão entrando em cartaz pelo site adorocinema.com.br”, disse Jônatas, entusiasmado. Para não chamar a atenção da fiscalização, fica posicionado atrás de uma barraquinha que comercializa camisetas. A mochila com os DVDs e a grade com as capas dos filmes ficam sempre por perto para garantir a agilidade no caso de uma batida policial.

Com suas estratégias de marketing, branding e fidelização de clientes tinindo, o camelô disse que vende cerca de 100 DVDs nos fins de semana a 5 reais cada. “Tem cliente que leva vinte títulos de uma só vez”, comemorou. A quantidade varia de acordo com a meteorologia. “Quando faz sol, vende que é uma beleza.”

03 de julho de 2015
Renato Terra