sexta-feira, 10 de julho de 2015

ONZE DA NOITE É HORA DOS SOLITÁRIOS



DE SEU POSTO NA SEÇÃO DE LATICÍNIOS DO SUPERMERCADO ZONA ZUL, LOJA 9, NA PRAÇA GENERAL OSÓRIO, EM IPANEMA, FRANCISCO É UM BEM HUMORADO OBSERVADOR DAS MANHAS E HÁBITOS DE SEUS FREGUESES. EM APENAS UM MÊS E MEIO NO POSTO, JÁ FEZ VÁRIAS AMIZADES. É O SEGUNDO EMPREGO COM CARTEIRA ASSINADA DESSE RAPAZ DE 21 ANOS QUE MORA NO BECO DO BICHEIRO, NA VILA VINTÉM.


2 de agosto, QUINTA-FEIRA Às 13 e 20, saio de casa para apanhar o trem rápido, que passa às 14, e, no caminho da estação, encontro o tio de um amigo, que me dá os parabéns pela vitória do meu Botafogo. Uma figura, esse tio do meu amigo. Eu não entendia por que ele passava o dia inteiro na rua, para cima e para baixo, com umas gaiolas com passarinho. Aí conheci a mulher dele e entendi. Ela é muito feia.

Às vezes, consigo pular o muro da estação e economizo uma passagem. Não é muito, mas são 2 reais. Nos últimos dias não tem dado, porque o pessoal da ferrovia passou graxa em cima do muro e já vi um cara que pulou e ficou todo lambuzado. Recebo vale-transporte, mas, de qualquer maneira, uma parte vem descontada do meu salário, que é uma miséria.

Quando entro no trem, já fico esperando alguém com alguma história triste, uma doença. Trem é lugar desses papos. Todo dia tem um. Hoje apareceu um homem que precisava de dinheiro para comprar uma prótese de olho. Ele pedia o dinheiro e abria o olho para mostrar. Sempre que o trem passa pela estação Maracanã, fico olhando o prédio da Uerj. Um dia eu chego lá. Quero ser cirurgião ortopédico. Estou economizando para fazer o pré-vestibular. Já tenho 320 reais na gaveta perto da minha cama.
Falta pouco para o fim da viagem e estou vendo que, o tempo todo, uma gordinha não tirou os olhos de mim. Está dando muito mole, mas não adianta, tenho de trabalhar.

São 15 e 40, e chego ao trabalho de bom humor. Atendo um casal conhecido, seu Ricardo e a mulher. Ele gosta de comprar de tudo para os filhos, mas a mulher manda ele parar. "Pra quê tudo isso?", ela diz.

Acaba o meu dia de trabalho e vou pegar o ônibus para a estação do trem. Chego em casa às 2 e meia da manhã, tomo um banho e desabo na cama.

SEXTA-FEIRA Saí mais cedo de casa. Queria passar na cidade para comprar um jeans. No caminho encontrei o Morcegão. Ele sempre me pede dinheiro para jogar na máquina de azar, mas hoje não deu. A grana está contadinha. A cena do trem hoje foi um cego, acompanhado do filho, pedindo dinheiro. Não dei. Fui direto comprar a calça. Entrei na loja, mas custou muito até ser atendido. Acho que foi por causa da sacola do supermercado que eu carregava com o uniforme. A cada dois dias, ando com essa sacola para casa e para o trabalho. Calça bege e camisa azul, que são lavadas em casa. Por isso a gente ganha dois uniformes, que ainda têm dois pares de sapatos pretos. Comprei, finalmente, a calça: 42 reais. Quarenta, com um desconto de 2 reais que o cara me deu.

Na chegada ao trabalho, os três funcionários na seção estavam estressados. É muito trabalho e pouca gente para trabalhar. São três pessoas num lugar onde deveria ter cinco. O problema é que não tem espaço para cinco atrás do balcão.

A fila cresce e vou atendendo. Um cliente me fala que vai demorar, porque vai comprar muita coisa. E compra mesmo. Gastou o que daria dois meses do meu salário. Era para um café da manhã, ele disse. E a fila não pára de crescer. Uma cliente fica exaltada com a demora. Ela tem razão, mas a demora também é porque os clientes pedem tudo fatiado na hora. A cliente está cada vez mais irritada e começa a xingar a gente. Até que algumas pessoas da fila pedem para ela ir embora, se não quiser esperar.

Jantei aquela comida do refeitório. Feijão e arroz é todo dia. O resto varia: um dia tem frango, outro carne. A verdura é legal, mas a fruta da sobremesa está sempre meio passada. O suco é legal também, manga, maracujá. O duro é a caminhada. São 25 minutos de ida e outro tanto para voltar, porque eu trabalho na filial da praça General Osório, em Ipanema, e o refeitório é na avenida Nossa Senhora de Copacabana, lá no Posto 5.

Quando volto para o balcão, chega um casal brigando e entra na fila. O cara também quer brigar comigo, mas o pessoal da fila manda ele descontar a raiva em outra pessoa, porque eu estava trabalhando e não tinha feito nada para ele.

Escolhi um ônibus via Lapa para chegar ao trem. Fiz mal. Fiquei na Lapa até 1 e 20 da manhã, num engarrafamento. Eram quase 3 horas quando cheguei em casa. O céu da favela vizinha, a Fumacê, estava iluminado. Pelas balas traçantes. São os alemão, o pessoal de outra facção do tráfico que quer tomar as bocas da favela. Lá no Fumacê quem manda é o Terceiro Comando.

SÁBADO Hoje a única coisa fora do normal em casa é que vai ter almoço. Há tempos não tem, porque minha mãe anda muito cansada. Ela tem 45 anos e está grávida: aos 21 anos vou ganhar um irmãozinho. Eu queria que ele se chamasse Ítalo, mas a minha mãe prefere Rian. Vai acabar sendo esse nome, claro. O Paulo Henrique, meu outro irmão, tem 13 anos, e a Crysli tem 5.

O dia no trabalho vai ser longo. Só saio às 2 da manhã de domingo. Logo que começo a trabalhar, chega um senhor que atendo há tempos. Carlos é o nome dele, um cara nota 10. Está sempre alegre, fala com todo mundo, cumprimenta. Depois vêm uns grupos de franceses e de chilenos. Nos entendemos através de sinais. É divertido atender estrangeiros.

Anoitece sem que eu veja. Noto porque as pessoas começam a me dar "boa-noite". O movimento no Laticínios cresce como nunca vi. Uma mulher me pede informações sobre um produto, e o pessoal pensa que ela quer furar a fila. Chove reclamação. Num momento de calmaria, outra freguesa me contou que brigou muito com o marido porque ele disse que ela estava uma baleia.

Quase 3 da manhã, chego à Central do Brasil para pegar o trem. Às 4 e 40 estou em casa, abro a porta e falta luz. Dia duro.

DOMINGO Acordo com barulho de tiros por perto. Os caras estão atirando da minha rua na polícia. Depois eu soube que foi porque se negaram a pagar o arrego. Foram uns trinta minutos de tiros.
Nove e meia já estou no trem, e bastante cansado. Vai ser outro dia daqueles, de meio-dia à meia-noite atrás do balcão.

Logo chega um cliente gay e me passa um papel com números de telefone. Diz que é para eu ligar a cobrar. Não adianta eu falar que gosto de mulher. Ele vai embora dizendo que eu não sei o que perdi.
Perto das 22 horas, chega uma cliente que mora em São Paulo e vem ao Rio para cuidar do pai. Ela só gosta que eu atenda. Hoje pediu para eu estender a mão e esfregou a mão dela na minha. Disse que era para eu lembrar do perfume dela quando fosse embora. Gostei.

SEGUNDA-FEIRA Hoje é FOLGA. Vou à casa do Gilmar, meu amigo de infância. Ele também nasceu na Vila Vintém. Brigou com a mãe e o irmão, e estava juntando as roupas para ir morar na casa da irmã. Essa história do Gilmar é longa. A mãe não gosta da namorada dele, acha que ela sai com todo mundo.

Parto para a casa de outro amigo de infância, o Fernando. A mãe dele pede que eu o acorde. Fernando chegou em casa de manhã, não trabalha, só quer saber de festa. Ele já acorda contando várias mentiras, exagera tudo. Mas é gente boa. Diz que é ecologicamente correto: só consome etanol.
No meio da tarde, ajudo Gilmar a levar as roupas para a casa da irmã. Não sei o que falar para ele, fico quieto. Gilmar me conta que a mãe lhe deu hoje um tapa na cara. Ele é sangue bom, coração maior que ele. Esses, e mais o Caolho, são os amigos de infância que me restam. Rafael, Baiano, Rogério, Daniel, acho que uns nove amigos que eu tinha desde pequeno, se meteram com o tráfico e morreram.

Passo em casa e minha avó fala que o primo Dejan, que trabalha na construção civil em São Paulo, pode me arrumar um emprego que pague mais. Prometo que vou pensar. Não sei se é bom sair agora que vai nascer o meu irmãozinho. Acho que devo ficar e ajudar a minha mãe. Eu faço assim: ganho 420 reais. Com os descontos, dá 168 reais por quinzena. A primeira quinzena eu entrego para minha mãe. Com a segunda, pago a conta da luz e trato da minha vida. O resto das despesas meu padrasto, o Paulo, é quem paga, porque a minha mãe não trabalha. Acho que é por causa da depressão. Ela toma uns remédios tarja-preta. Acho que a gravidez dela, por causa desses remédios, é de risco. E da idade, claro.

Esperei um pouco por causa de mais um tiroteio. Durou pouco. Deu para sair rapidinho e ir à lan-house ver os recados no Orkut. Um deles era de uma cliente do mercado que mora em Curitiba. Ela me conta que está morrendo de saudade do Rio, e que talvez venha em setembro. Na saída, encontro o Mau-Mau, um amigo, com dois dentes quebrados. Ele gosta de uma garota que tem um namorado. Mau-Mau é muito religioso, está sempre na igreja. Na verdade não é bem uma igreja, fica numa garagem. Lá, ele falou para o cara largar a garota porque Deus tinha dito que ele, Mau-Mau, é que ia ser o namorado dela. O cara quebrou os dentes dele, e ainda o deixou com um olho roxo. Que história para terminar a folga...

TERÇA-FEIRA Saio para o trabalho debaixo de bronca da minha avó. Ela acha que, ontem à noite, fiquei assistindo televisão e não falei com ela direito. Na minha rua está cheio de gente com fuzil na mão. Acho que vai ter guerra hoje.

No trabalho a coisa também não vai bem. Mal eu chego e um colega, o Caveirão, me conta que quase saiu pancada entre ele e o Capitão Sujeira, outro colega do Laticínios, por causa de limpeza ali na área de trabalho. O Caveirão foi falar para o Capitão que ali não era o lixão da casa dele, que ali precisava ser limpo, essas coisas. O Capitão ficou bolado. Pouco depois, o Capitão brigou com a demonstradora de queijo que trabalha com a gente. Ela mandou ele tomar um banho, escovar os dentes e lavar a camisa. Fechou o tempo.

Hoje decidi não jantar. Aquela caminhada até o posto 5 às vezes desanima. Comprei um pacote de biscoitos e fui passear um pouco na orla, para sentir aquele cheiro de mar. Assisti a três moleques de rua roubarem um sanduíche e um suco das mãos de um turista e voltei para o trabalho. Não sei por que, mas sempre achei que essas coisas só acontecessem na África.

Entro no Laticínios e a padeira vem por trás e pega uma azeitona do balcão frigorífico. Quando se virou para voltar à padaria, o segurança já estava chegando. Ele tinha visto e deu a maior bronca nela. Dia carregado.

SEXTA-FEIRA Estou muito cansado. Acho que dormi mal. Cochilei várias vezes no trem e no ônibus. O dia foi todo complicado. De madrugada, quando estava voltando para casa, depois de já ter saído do ônibus, ouvi os gritos de uma mulher. Ela saía de casa puxando uma garota, que estava passando mal. Ela tomou remédio para tirar o bebê, mas a gravidez estava muito adiantada. Um vizinho levou elas de carro para o hospital. Fiquei pensando nisso e na gravidez da minha mãe antes de dormir.

SÁBADO O Caveirão, não o meu colega, o blindado da PM, chegou cedo hoje na favela. Teve muito tiro, mas na hora de sair já tinha terminado tudo.

No trabalho, parece que vai ter festa. O gerente vem me dar os parabéns porque o Laticínios da nossa loja foi o que mais vendeu em julho. Está todo mundo feliz porque vai ganhar um dinheiro a mais este mês. Mas só quem tem mais de seis meses de trabalho. Eu não ganho: só tenho um mês e meio. Mas não vou perder essa. Aproveito e peço ao gerente para trabalhar mais cedo no domingo, porque está perigoso nos fins de semana lá na Vila. Ele topou, vai ser das 10 às 22 horas. Vou chegar cedo em casa.

TERÇA-FEIRA O dia hoje é de pouco movimento. É quando demoram mais a passar as horas de trabalho. Pelo menos foi divertido, porque tem um funcionário novo na minha seção. Tem pouco mais de um mês que veio de Alagoas. Sorte dele que já conseguiu emprego. Falei para ele que, no Rio, mulher a gente chama de "mandioca". Ele acreditou e me disse que, no domingo, pegou "duas mandiocas" no forró.

QUARTA-FEIRA Amanheço com gripe e um pouco de febre. Pode ser por causa do trabalho atrás daquele balcão frigorífico. Não é nada. Vou ao banco pegar a minha quinzena e volto para casa. Minha mãe quer dinheiro para comprar um caderno novo para o meu irmão. O dele está com só duas folhas em branco.

Saio para o trabalho e encontro com um garoto da favela. Ele tem uns 13 anos, é amigo do meu irmão. Chega perto e me pede um real para comprar um pão, porque não tinha comido nada ainda. Caderno, pão, ainda bem que recebi a quinzena.

No trabalho descubro que o funcionário novo continua acreditando em tudo. Já contei para ele que a história da "mandioca" foi só sacanagem, mas um colega disse para ele que ele vai ganhar muito dinheiro. Daqui uns três meses, já vai poder comprar uma moto, ele disse. Só não disseram que é uma moto de brinquedo, e ele está fazendo planos de trazer a namorada de Alagoas para o Rio.
São 17 horas, a hora das mulheres que queimaram calorias nas academias aparecerem para recompor as calorias. Só compram importados. Daqui a mais ou menos uma hora, um pouco mais, vão chegar os musculosos. Os homens vêm da malhação e compram peito de peru light. São mais preocupados que as mulheres com essa coisa de produtos light.

É também a hora dos estudantes e das velhinhas que compram comigo. A garotada fala sem a gente perguntar: "Aí, cara, tá vendo isso aí que eu tô comprando? É a minha janta, podes crer". As velhinhas dizem: "Meu filho, isso aí é para eu lanchar antes de dormir". Quase sempre compram um pouco de mortadela.

Às 19 horas começam a chegar os engravatados e as mães com filhos. Elas compram de tudo e dizem que, se não forem até em casa segurando os pacotes, as crianças comem tudo pelo caminho. O pessoal que chega de terno e gravata é engraçado. Eles compram peito de peru e queijo minas light. Quando compram presunto, sempre pedem uma fatia para provar. Pelo movimento, quarta e sábado são os dias de renovar os estoques na geladeira da casa dos clientes.

Mais tarde, lá pelas 22 horas, ainda vão chegar as pessoas que saíram da casa dos pais para morar sozinhas. Antes de comprar, muitas ligam para as mães pelo celular e fazem umas consultas. Quase sempre acabam comprando só queijo e presunto.

O movimento só diminui por volta das 23 horas, depois da briga do pão quente. A padaria é aqui ao lado do Laticínios, e eu fico só olhando. Às vezes, quando chega o pão novo, e tem muita gente esperando, parece que essas pessoas passaram o dia sem comer. E são sempre as mesmas.

QUINTA-FEIRA Estou com dor no corpo. Minha mãe pede o restante da quinzena para pagar uma conta de luz. O trem hoje está freqüentado. Tem três pedintes: um cego com as filhas, uma senhora que quer esmola e um senhor com um bebê. Diz que a criança está doente e ele precisa de dinheiro para os remédios. Tudo isso num vagão só.

Já chego ao trabalho cansado. Às 17 horas, a loja enche de estudantes, velhinhos e o povo que vem das academias. Hoje todos querem queijo prato.

Perto das 20 horas, um funcionário do açougue passa e diz que vai "secar" o Flamengo no jogo. Ele é vascaíno, mas não deu certo e o Flamengo ganhou.

Vinte e três horas é a hora dos solitários. A maioria é de homens e são quase sempre os mesmos. Hoje uma mulher falou comigo sobre a guerra do Iraque. Guerra é sempre uma barbaridade.

Quando desço do ônibus tem quatro caras estranhos do outro lado da rua. Resolvo tomar um caminho contrário ao da minha casa. Não estou a fim de passar por eles.

SEXTA-FEIRA Minha avó me acorda. Minha mãe está sentindo as dores do parto. É o bebê. Mas a mãe diz que não está na hora, e me manda ao supermercado Guanabara pagar duas parcelas das compras do mês. Arroz, feijão, carne, farinha. A conta de casa é alta. É muita gente.

Como somos cinco, com duas crianças, e mais um por chegar a qualquer momento, este mês está difícil. Por causa do bebê, tivemos compras extras: berço, fraldas e roupas para ele.

Começo a trabalhar às 16 horas. É a hora das empregadas domésticas que trabalham no final de semana. Elas sempre compram azeite, queijo prato, mortadela, salaminho, presunto, queijo minas. Sempre acima de meio quilo.

Às 18 horas são os casais que nunca sabem direito o que levar para casa no fim de semana. Olham tudo, perguntam, e muitas vezes não compram nada. É também a hora do pessoal que sai da praia e vai jantar frios ou sanduíche.

Bem mais tarde, lá por volta das 21 horas, chegam as pessoas que vieram passar o fim de semana no Rio. Compram de tudo que está à venda no Laticínios, e sempre dizem que eu tenho sorte de morar no Rio.

É engraçado o que a gente descobre das pessoas. Os solteiros também aparecem nas sextas-feiras. Trabalham a semana inteira, e na folga não querem saber de arroz. Levam azeitonas, queijo prato, presunto. Quase sempre meio quilo.

Os artistas e os casais gays chegam lá pelas 23 horas, fazem muita piada. Os gays sempre dão um jeito de falar alguma brincadeira sobre sexo. Não digo nada. Os artistas repetem a pergunta sobre quanto tempo os frios duram na geladeira. Depende, eu digo. Se não ficarem muito tempo fora do gelo, enquanto a pessoa está comendo, podem durar bastante, uma semana.

Estou quase chegando em casa quando encontro minha mãe e meu padrasto. Estão a caminho do hospital. O meu irmão vai nascer. Mais de 4 da manhã e uma enfermeira traz um recado da minha mãe: eu e meu padrasto devemos ir para casa porque o bebê não vai nascer ainda.

SÁBADO Nasceu de manhã cedo. Meu padrasto me acorda com a notícia. O cara nasceu com 4 quilos e 50 gramas. Mede 50 centímetros. É grandão. Nem sei qual foi o meu peso quando nasci. Fico feliz que correu tudo bem. Minha mãe falou para o Paulo que esse deu mais trabalho, ela sentiu dores por mais tempo. Pena que só vou poder ir ao hospital amanhã.

Hoje é o dia de maior movimento. Gente de todo o tipo. Solitários, casais, gente da minha idade, domésticas, estrangeiros, pessoas que fazem as compras da semana, do mês e, no final, passam ali no balcão para completar com frios e queijos. É dia de compra grande. Tem gente que leva mais de 2 quilos de presunto e queijo. É uma loucura, a fila não diminui, sai um, entra outro. Tem casais que se encontram nos fins de semana. Dá para perceber, porque ficam na fila se beijando o tempo todo. É engraçado adivinhar a vida das pessoas.

DOMINGO Acordo às 10 horas, ansioso para ir ver o meu irmão. Preciso esperar até as 2 da tarde, que é o horário de visitas, e parece que o tempo em casa não passa. Pouco depois de meio-dia, saio finalmente para o hospital Albert Schweitzer com o meu padrasto. Não é longe. A maternidade fica no 10o andar e a fila do elevador está enorme. Tento subir correndo pelas escadas, mas o fôlego termina no 3o andar. É melhor seguir devagar.

No quarto 1004 está a minha mãe, sorridente, com meu irmão. Ele é grande e cabeludo. Nasceu com as unhas tão grandes que arranhou a cara toda na primeira noite. Agora botaram umas luvinhas nele, para não se machucar mais. Tento pegar ele, mas foi só abrir o olho e começou a chorar. Só aceita a minha mãe.

Uma horinha só e acaba a visita. Volto para casa e fico pensando na minha família. Minha mãe não trabalha e meu padrasto tem 44 anos. Se ele sair do emprego, ninguém mais vai dar trabalho para ele. A responsabilidade pela família vai sobrar para mim. Acho que o meu dinheiro para o pré-vestibular vai para um preparatório para concurso público. O meu sonho mudou hoje, e vai ficar para mais tarde. Mas eu vou realizar, nem que demore 50 anos eu vou ser ortopedista.

Começo a arrumar a casa para parar de pensar no futuro. Dou um banho na minha irmã, boto toda a roupa suja na lavadora e vou para a rua conversar um pouco com os amigos. Eles estão muito animados, contam da festa que eu perdi, que só faltava eu, essas coisas. Acabei voltando para casa, para não deixar a minha avó sozinha com os meus irmãos, que são uns bagunceiros.

Paro um pouco para conversar com a minha avó. Ela acaba me dizendo que a "vida é dura para quem é mole" e diz que eu tenho que fazer por onde para ser recompensado. Já ouvi muito isso. Vou dormir.

10 de julho de 2015
Francisco A. Barbosa

ENTRE RATOS



Iván Izquierdo procura nos animais as chaves da formação e do armazenamento da memória


Porto Alegre, Hospital São Lucas. Instalado no segundo andar, R-1 não sabe que está sendo observado. Ele tem pouco tempo de vida, só se alimenta com comida desidratada, divide um modesto aposento com quatro colegas e não vê a luz do sol.

Sem vida sexual e sem filhos, sua rotina é sempre a mesma: de casa para o laboratório, do laboratório para casa e, apesar de não fazer trabalho voluntário, não é remunerado pelo que faz. Um tampão de resina acrílica lhe recobre o cérebro, protegendo o corte que lhe tirou um pedaço de pele e osso. Foi dentro de uma caixa, revestida de metal e fórmica branca, que aprendeu o básico: se pisar na grade de ferro, levará um choque elétrico. Horas depois, ele recebe a injeção de uma droga, por meio de uma cânula cravada em seu cérebro. Em poucos dias, não se lembrará mais que a placa de metal provoca choque.

R-1 é um rato de laboratório sem nome, identificado apenas por um traço de caneta na cauda. No ano passado, participou como cobaia de um experimento inédito. Um dos autores da pesquisa é Iván Antonio Izquierdo, neurocientista de origem argentina, naturalizado brasileiro, fundador do Centro de Memória, unidade de pesquisas biomédicas da PUC gaúcha. Izquierdo está completando 70 anos de vida, o seu cinqüentenário de dedicação à medicina e à pesquisa, e quatro décadas de estudo das drogas que afetam a memória e os processos bioquímicos que regulam sua formação, sua evocação e sua extinção. Ele mora em Porto Alegre, com Ivone Moraes, com quem tem dois filhos e quatro netos. Segundo Miguel Nicolelis, neurobiólogo da Universidade de Duke, nos Estados Unidos, "Iván é o neurocientista brasileiro mais citado e mais reconhecido fora do Brasil".

O estudo protagonizado por R-1 e outras centenas de ratinhos, publicado em janeiro passado, foi apresentado pela imprensa como a descoberta da "droga do esquecimento". A expressão alude ao filme americano Brilho Eterno de uma Mente sem Lembrança, no qual o personagem vivido por Jim Carrey recorre a uma empresa que apaga suas lembranças de uma ex-namorada. O experimento do grupo de Izquierdo, desenvolvido em parceria com a equipe de Jorge Medina, da Universidade de Buenos Aires, foi publicado na revista Neuron. Foram testadas quase 500 cobaias ao longo de dois anos. Alternadamente, uma parte da experiência era feita em Porto Alegre e outra em Buenos Aires. Nesse intervalo, Medina e Izquierdo visitavam-se regularmente, para acompanhar de perto os avanços um do outro.

O trabalho resultou na descoberta do momento-chave da persistência da memória, que ainda não havia sido definido por experimento científico algum. Izquierdo e sua equipe conseguiram apagar a memória de um rato por meio do bloqueio da ação da proteína BDNF (do inglês brain-derived neurotrophic factor, fator neurotrófico derivado do cérebro), que atua decisivamente no processo de persistência da memória no hipocampo, região cerebral envolvida na formação, no armazenamento e na evocação de lembranças. A experiência impediu que uma tarefa, ensinada à cobaia horas antes, fosse armazenada em seu cérebro e se tornasse uma memória duradoura.

O fulcro do estudo não é a possibilidade de criar uma droga que anule a memória, mas a descoberta de que o momento-chave para a perpetuação de determinada lembrança situa-se na 12a hora após a aquisição da nova informação. É nesse período que ocorre a síntese de proteínas responsáveis pelo armazenamento duradouro de uma memória recém-adquirida. Ao interferir na ação dessa síntese protéica, impedindo que ela se concluísse, Izquierdo e seus colegas fizeram com que a memória do rato fosse afetada.

O método usado para entender como funciona o mecanismo de síntese das proteínas no cérebro teve como efeito colateral a anulação da memória do animal. Esse desdobramento indireto deu origem à suposta "droga do esquecimento", expressão que Izquierdo abomina. Ele não viu e não gostou do filme americano que explorou essa hipótese. Ele explica que, por ser tóxica, a droga usada para bloquear a proteína BDNF, a anisomicina, não poderia ser aplicada diretamente no cérebro humano. "Seria impossível colocar uma cânula diretamente no cérebro, injetar uma droga por meio dela e apagar uma memória específica sem prejudicar outras funções vitais", ele diz. Nosso cérebro é bem mais complexo que o de um rato e, além disso, o animal é morto logo depois da experiência.

Izquierdo defende que não se devem produzir drogas que apaguem uma memória, seja ela qual for. No caso de traumas ou fobias, o professor recomenda que se trate com terapia e remédios. Para ele, a pessoa não deve esquecer aquilo que a incomoda, mas manter essa lembrança fora de alcance para poder viver. Sigmund Freud deu a esse mecanismo o nome de habituação, tratamento psicoterápico de extinção consciente de um trauma, fobia ou lembrança fortemente desagradável. Em um de seus artigos, Izquierdo conta que muitos brasileiros - "nessa sua obrigação de ter de ser um povo feliz" - o abordam perguntando por que não apagamos de vez as memórias ruins. Ao que ele responde: "Não as apagamos porque nosso cérebro é mais inteligente que nós". Reprimidas, as memórias ruins ficam numa posição de difícil acesso, em vez de serem apagadas, raciocina Izquierdo, porque precisamos conservá-las para saber como reagir caso sejamos expostos novamente a experiências semelhantes.

O cientista americano Joe LeDoux, que divulgou em março passado um experimento no qual foi apagada uma memória de medo em um rato, concorda com o colega brasileiro. O animal foi submetido à aplicação de choques elétricos na presença de dois tipos de campainhas, com sons diferentes. Assim, ele formou duas memórias de medo distintas, uma para a campainha A e outra para a campainha B. Depois de instaladas as memórias, fizeram soar a campainha A, que provocou no animal a evocação da lembrança do medo do choque. Simultaneamente à emissão do som dessa campainha, foi aplicada no seu cérebro uma droga que provoca amnésia - a U0126. A droga agiu sobre a amígdala, parte do cérebro que tem o mesmo nome do órgão da garganta e é responsável pelas memórias ligadas à emoção e ao medo. Mais tarde, ao soar novamente a campainha A, o animal já não demonstrava medo do choque, ao passo que o medo da campainha B mantinha-se intacto.

Em entrevista para a rede americana ABC, LeDoux disse o seguinte: "Acreditamos que a memória é vulnerável. Podemos melhorá-la ou enfraquecê-la. Estamos tentando entender como isso funciona, e não criar um novo medicamento". A diferença entre o experimento de Le Doux e o de Izquierdo é que o americano apagou uma memória específica já armazenada, e o brasileiro interferiu no momento da persistência de uma nova memória, impedindo que ela se armazenasse por longo tempo. LeDoux atuou na amígdala, onde a memória de medo estava armazenada, e Izquierdo interferiu no hipocampo, região relacionada com a formação das memórias.

Martin Cammarota, o braço direito de Izquierdo na pesquisa, explica o caminho usado para entender o bloqueio da memória: "Na ciência ocidental, para compreendermos como funciona um sistema, primeiro fazemos com que ele funcione mal e, a partir daí, inferimos como é que ele funciona bem. O que buscamos não é uma droga do esquecimento, ou uma droga da lembrança, mas entender como funciona o processo fisiológico normal que ocorre numa região do cérebro quando um animal aprende uma nova tarefa". Como Izquierdo, Cammarota considera que uma mente saudável já opera no limite máximo de sua capacidade de memória, sendo uma aberração tentar melhorar aquilo que já funciona bem. Ambos só admitem o uso de uma droga que possa melhorar uma mente doente.

No mês passado, Izquierdo preparava um artigo sobre a reconsolidação da memória. A reconsolidação ocorre quando recordamos uma memória antiga ou em estado latente - mas que está fora de acesso por falta de uso e por isso é considerada esquecida - e a regravamos no cérebro. A recordação da memória extinta pode ocorrer pela influência de um fator externo, uma dica ou um "gatilho". Ao ser recordada, essa memória é regravada pela segunda vez. "Ninguém lembra daquele colega de escola que sentava três fileiras atrás e depois nunca mais foi visto", diz Izquierdo. "Com o passar do tempo, todos os dados sobre esse coleguinha desaparecem. Mas se pouco tempo depois de tê-lo visto pela última vez, na aula, o encontramos na rua, ocorrerá o processo de reafirmação da lembrança que temos dele, devido à sua evocação. Esse processo de reafirmação de uma memória, por meio da sua evocação pouco depois, se denomina reconsolidação." Na vida diária, como a extinção predomina sobre a reconsolidação, a maioria de nossas memórias fica fora de alcance. No entanto, uma memória em vias de extinção pode vir à tona e ser reconsolidada. Já as memórias esquecidas são irreversíveis - elas se apagam para dar lugar a novas memórias.

A memória mais remota de Iván Izquierdo vem de sua primeira infância. Ele se lembra, com pouca exatidão mas grande intensidade, de uma amiga de seus pais, Dolly Mondragon, que ele conheceu antes de completar 3 anos de idade. A imagem que conserva dela é marcante: uma mulher de saia preta e pulôver verde, morena de cabelos compridos. Ele se lembra bem da sensação de bem-estar que tinha a seu lado, mais que de suas feições. "Tínhamos um elo emocional fortíssimo, nos gostávamos muito", lembra Izquierdo. Dolly morreu naquela mesma década de 30. Se o cérebro humano se comporta como o do rato no que diz respeito à persistência da memória, na 12a hora após o encontro do menino Izquierdo com Dolly ocorreu uma síntese de proteínas em seu hipocampo que resultou no armazenamento dessa memória de forma definitiva em seu cérebro. Essa memória não se extinguiu porque vem sendo reconsolidada a cada vez que ele se lembra dela. Além disso, hormônios ligados às emoções liberados durante seus encontros, ocorridos há quase setenta anos, atuaram como reforço, fazendo com que essa memória emocional prevalecesse sobre outras memórias neutras da vida de Izquierdo. Desafiado num teste que lhe fiz, Izquierdo reconsolidou um fato que estava adormecido em sua mente: conseguiu escalar, com certo esforço, o time campeão do Grêmio na Taça Libertadores da América em 1983.

Um fato histórico influenciou a escolha profissional de Iván Izquierdo. Na Argentina de 1955, depois do golpe que derrubou Juán Perón, muitos intelectuais retornaram do exílio ou reassumiram seus postos acadêmicos. O país vivia a chamada Revolução Libertadora, que duraria três anos. A área de pesquisa médica ganhou novo impulso com a volta de seus cientistas ao comando de institutos de pesquisas. Dentre eles, o fisiologista Bernardo Houssay era a maior estrela, pois havia ganho o prêmio Nobel de Medicina em 1947. Quando Iván Izquierdo entrou na faculdade de medicina, viu-se num meio extremamente favorável à pesquisa científica.

Izquierdo recorda seu primeiro dia de trabalho: 2 de janeiro de 1957. Morava em Buenos Aires, tinha 19 anos e estava no 2o ano de faculdade. Chegou às 6 e meia da manhã à garagem de um casarão do bairro de Palermo, onde funcionava a sede do Instituto de Biologia e Medicina Experimental, dirigido pelo primeiro prêmio Nobel de Medicina da América Latina e, portanto, ídolo nacional argentino. Pouco acessível, Houssay provocava receio nos mais jovens. Naquele primeiro dia, a tarefa de Izquierdo resumiu-se à pesquisa com um sapo, usado como cobaia para o estudo do efeito da cortisona sobre a liberação de espermatozóides no animal. Foi o bastante para saber que tinha encontrado seu universo.

Data daqueles tempos seu interesse pelo estudo do sistema nervoso. A curiosidade pelo tema da memória lhe fora despertada pela leitura de Jorge Luís Borges, que dela fez um dos temas centrais da sua obra. Izquierdo explica: "Borges escreveu contos magníficos sobre objetos reais criados pelo pensamento ou pela memória. O estudo da memória é um lado da ciência em que a magia está sempre presente". Izquierdo costuma recorrer ao exemplo do personagem do conto Funes, o Memorioso, a cada vez que é perguntado por que motivo não conseguimos nos lembrar de tudo. Funes é um camponês que, após um acidente, adquire memória absoluta: ele não consegue mais viver em paz, porque se lembra de cada detalhe de tudo que já viveu, e isso o impede de pensar livremente. "Pensar é esquecer diferenças, é generalizar, abstrair. No abarrotado mundo de Funes, não havia senão pormenores, quase imediatos", escreve Borges. Ao contrário do que prega o senso comum, esclarece Izquierdo, nossa capacidade de armazenamento e evocação de memória é saturável. Perdemos memória constantemente, para darmos lugar a outras, novas. Izquierdo cita um colega americano, James McGaugh: "O aspecto mais notável da memória é o esquecimento". Já o pensador italiano Norberto Bobbio diz: "Somos aquilo de que nos lembramos". Izquierdo acrescenta: "Somos aquilo que conseguimos lembrar".

Izquierdo se diz contrário a dogmas: "Deus me livre das ideologias", escreveu num de seus livros. Mesmo assim, foi considerado subversivo pelo regime de extrema direita na Argentina. Em 1973, morava há seis anos em Córdoba, onde fundara o departamento de farmacologia da universidade local. Estava casado e seus dois filhos já tinham nascido. Descobriu que o telefone de sua casa estava grampeado. Depois de uma conversa telefônica com um amigo considerado comunista, recebeu uma ameaça de morte numa ligação anônima. "Continue falando com esse bolchevique de merda, que nós vamos apagar você e a sua família", disse-lhe a voz no telefone. Izquierdo achou que era hora de se mudar.

Surgiu então a oportunidade de trabalhar em farmacologia na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, em Porto Alegre, onde morava a família da mulher. Fez as malas e partiu. O início foi difícil. "Chegamos a Porto Alegre e encontramos terreno pouco fértil para a pesquisa científica", ele lembra. "Tínhamos uma vida de imigrante, com dois filhos, não tínhamos casa, e a profissão não tinha prestígio algum." Hoje, com 34 anos de carreira no Brasil, Iván Izquierdo acumula 36 prêmios, participa de 23 sociedades científicas, dentro e fora do país, e fala cinco idiomas além do português. No final de abril, foi eleito para a National Academy of Sciences, nos Estados Unidos. Nos últimos vinte anos, apenas sete cientistas brasileiros integraram a academia americana.

Iván Izquierdo é um homem de ombros largos, 85 quilos, altura mediana e mãos grossas. Usa a aliança no dedo mindinho, tem cabelos brancos fartos e ondulados. Veste tênis e jeans sob o jaleco do laboratório e caminha sem pressa com uma bolsa a tiracolo, que contrasta com seu jeito sério. Do sotaque argentino, ainda traz o som fechado nas vogais. Ele fala de seus estudos em tom pausado e didático. Avesso à notoriedade, Izquierdo sempre se refere a seu trabalho no plural - fizemos, pesquisamos, descobrimos, publicamos. No prefácio do livro Memória, ele escreve: "Creio que o culto à personalidade não faz parte da ciência". No 2o Simpósio Internacional de Neurociência, em Natal, em fevereiro, ele se preocupou em passar a palavra a dois de seus colaboradores, bem mais jovens que ele, Cammarota e Marco Prado, apesar de os jornalistas só demonstrarem interesse em ouvir o mestre. Meses depois, Izquierdo foi homenageado pela Universidade Federal do Paraná com o título de doutor honoris causa. Após a premiação, em Curitiba, fez um breve discurso de agradecimento e no final arrematou com a frase "Yo no me lo creo". Explicou que é uma expressão argentina, que significa que não acredita em tudo que dizem a seu respeito. Ele vê o mundo dividido entre aqueles que se acreditam e os que não se acreditam.

A memória, com relação à sua função e à sua duração no cérebro, divide-se na de trabalho, na de curta duração e na de longa duração. A de trabalho - ou operacional - é aquela que dura alguns segundos e não deixa traço bioquímico. Nós a utilizamos continuamente, de forma quase automática, para, por exemplo, compreender uma conversa ou anotar um número de telefone. Essas informações não ficam armazenadas, é impossível recuperá-las mais tarde. Essa memória é processada fundamentalmente pelo córtex pré-frontal, a parte mais anterior do lobo frontal no cérebro.

Já as memórias de curta e longa duração têm uma divisão mecânica, ou seja, ocupam algumas das mesmas áreas do cérebro, que são o córtex entorrinal e o hipocampo. "Fora as áreas da linguagem, usamos as mesmas regiões do cérebro e mecanismos moleculares semelhantes para construir e evocar memórias totalmente diferentes", ensina o professor. Existem memórias que duram a vida toda, que têm um substrato químico sólido e sofreram a síntese protéica. Já a memória curta dura no máximo seis horas e envolve um processo paralelo e até certo ponto independente daquele da memória de longa duração. "Enquanto a memória de longa duração não está construída, alguém tem que mantê-la, para podermos conversar, por exemplo", diz Izquierdo. "São processos paralelos, ocorrem nas mesmas estruturas cerebrais - não sei se nas mesmas células - mas são independentes. É como morar num hotel enquanto sua casa está sendo construída."

A descrição desse mecanismo paralelo de formação das duas memórias, que ocorre simultaneamente, foi mais uma das descobertas da equipe de Izquierdo na UFRGS, nos anos de 1997 e 1998. Os conceitos de curta e longa duração já existiam, mas até então ninguém havia provado que eram processos independentes e paralelos. Pensava-se que podiam ser contínuos. Essa dúvida foi levantada pelo psicólogo e filósofo americano William James, há mais de um século. James dizia: "Enquanto a memória definitiva é construída, onde funciona a memória primária, a memória de gravação que estamos usando?" A equipe de Izquierdo partiu dessa pergunta. Fizeram a pesquisa com ratos, aplicando-lhes drogas antes do início das duas memórias - de curta e longa duração - e conseguiram interromper a de curta duração enquanto a outra persistia. O estudo resultante foi publicado na revista Nature.

Em agosto do ano passado, outro trabalho de Izquierdo foi publicado na revista Trends in Neuroscience. Ele condensa quinze anos de pesquisa, feita também em parceria com o laboratório de Jorge Medina. Eles conseguiram descrever a base bioquímica da memória mediante o estudo da LTP (do inglês long-term potentiation), ou potencialização de longa duração. A ação da LTP foi descrita pela primeira vez, há 34 anos, pelo fisiologista inglês Timothy Bliss, em parceria com o norueguês Terje Lomo. Num estudo com dezoito coelhos anestesiados em laboratório, a dupla nórdica aplicou choques elétricos de curta duração e alta freqüência no hipocampo dos animais e constatou que houve uma resposta de fortalecimento - ou potencialização - nas sinapses dos animais, que poderia durar minutos ou horas. Demonstraram que um estímulo externo intenso tornava a conexão neuronal, a sinapse, mais potente.

Esse processo ficou conhecido como um modelo experimental de aprendizado, e até então não se havia comprovado sua validade como base fisiológica da memória. A equipe de Izquierdo conseguiu demonstrar que a LTP, que era considerada apenas uma hipótese de aprendizagem e armazenamento de memória, é de fato a própria base da memória no hipocampo. Como é justamente na sinapse que são armazenadas as memórias, esse processo induzido em laboratório demonstra o que acontece quando aprendemos algo via hipocampo. A cada vez que uma nova informação é armazenada no cérebro, formam-se novas sinapses, ou se fortalecem as que já existem. Por meio do experimento em ratos, o grupo de Izquierdo conseguiu identificar a série de reações bioquímicas que ligam a LTP ao processo de aprendizado no hipocampo. Ele ressalta, porém, que "além da LTP, fora do hipocampo há outros processos paralelos e diferentes que também armazenam memórias".

Izquierdo considera o neuroanatomista espanhol Santiago Ramón y Cajal o maior neurocientista de todos os tempos. Há mais de cem anos, ele descobriu a sinapse, estrutura elementar no estudo da memória. Em seu livro A Arte de Esquecer, Izquierdo escreve: "Ramón y Cajal postulou, em 1893, que as memórias têm sua base biológica em modificações estruturais das conexões utilizadas pelo cérebro durante sua aquisição. As neurociências da época não estavam ainda maduras para acolher esse postulado". Cajal viveu numa época sem grandes recursos para a pesquisa, e comprou o primeiro microscópio do próprio bolso. A microscopia eletrônica só seria inventada quatro décadas depois. Ele ganhou o prêmio Nobel de Medicina em 1906, pela descoberta da estrutura neuronal. Cajal intuiu que o aprendizado não se dava pela multiplicação de neurônios no cérebro. Mais: que a memória se formava por meio do fortalecimento de conexões entre neurônios preexistentes, o que reforçaria a comunicação entre eles, e propôs que a sinapse era o meio de armazenamento da memória.

Hoje, sabe-se que as sinapses crescem, diminuem, estão sempre em movimento e que a falta de estímulo pode atrofiá-las. Sempre que aprendemos algo novo, estamos fortalecendo ou aumentando a rede de sinapses. Se não usamos a memória, as sinapses se retraem, e a informação se perde. "No caso de Alzheimer, a doença não acontece por falta de uso da memória, mas por lesões cerebrais que matam sinapses e células nervosas", explica Izquierdo. "A destruição é provocada por alterações metabólicas, que se dão em determinados genes. Esses genes começam a não se expressar corretamente e produzem proteínas erradas."

Ele conta que as perguntas mais freqüentes de amigos e leigos em ciência se referem justamente à busca da memória perfeita. Todos querem saber o que se deve fazer para manter uma boa memória e quais são os primeiros sintomas do mal de Alzheimer, doença neurodegenerativa caracterizada pela perda irreversível e progressiva da memória. O professor ensina que o melhor exercício para fortalecer a memória é a leitura, mais que outras atividades correlatas que exigem concentração e aprendizado, como assistir a um filme ou jogar um videogame. Ele explica que a leitura exige a simultaneidade de múltiplas funções cerebrais. Enquanto você lê e reconhece a palavra "memória", em fração de segundos seu cérebro mira na letra M e deixa em lista de espera todas as palavras que começam com ela. Ao mesmo tempo, ele registra que é uma palavra feminina e exclui a possibilidade de palavras masculinas. Ele avança mais um pouco e encontra a letra E, e descarta do catálogo palavras começadas com M que não servem: macaco, moleque, muxoxo. Até ler o conjunto todo, o cérebro inclui e elimina uma infinidade de combinações, até que a palavra seja entendida e registrada. Ao compreendermos o sentido de uma única palavra, nossa memória de trabalho - aquela que funciona instantaneamente - faz o escaneamento cerebral que permite incluir ou descartar tudo que não está incluído num determinado contexto. Milhões de sinapses são ativadas em regiões cerebrais diferentes e novas associações são feitas a partir daí. Essa rede de sinapses sai fortalecida a cada vez que entendemos e armazenamos o que foi lido.

Quanto à pergunta sobre o aparecimento do Alzheimer, Izquierdo adverte: "Geralmente, ninguém se dá conta até ver que é tarde demais - e aí nada se pode fazer. O que há são alguns paliativos, que nem funcionam muito bem". Em todo o mundo, as pesquisas no campo da memória convergem para o estudo e o tratamento do Alzheimer. Cientistas do mundo todo trabalham com a intervenção artificial dos processos bioquímicos da memória para entender como funciona e, por isso, se abriram várias frentes de pesquisa. Izquierdo descobriu o momento-chave da persistência da memória, Le Doux instalou uma memória específica num rato e em seguida a apagou seletivamente; pesquisadores de Harvard aplicaram em humanos uma droga que suavizou o estresse gerado no momento da recordação de um episódio traumático. O mapeamento e a manipulação da memória em diferentes estágios - fixação, reconsolidação, evocação e extinção - vêm sendo utilizados como meio de se chegar ao objetivo comum de combate ao Alzheimer.

Iván Izquierdo fala da doença com a experiência de quem viveu de perto seus males. Seu pai, o farmacologista Juán Antonio Izquierdo, morreu aos 82 anos com Alzheimer. Na fase terminal, já não reconhecia o filho, mas sabia identificar seus tangos preferidos quando os escutava no rádio. Chegava a corrigir o locutor, que ao final de uma música anunciava a ficha técnica: "O nome da orquestra está certo, mas não é de 1926, como disse o locutor, é de 27". Ele identificava o ano da gravação pela forma como o bandeonista tocava uma nota. Izquierdo relembra: "Para isso ele tinha memória, mas para saber que eu era seu filho, não". Ele lembra uma visita que fez ao pai doente, em Buenos Aires, há quase vinte anos. Estavam a sós quando Izquierdo levantou-se para ir ao banheiro. Ao passar pelo pai, fez-lhe um pequeno afago na cabeça. Na volta, percebeu que o pai estava com os olhos úmidos e ouviu dele:

- Ei, Iván, pega essa caixinha aí. Agora venha comigo ao banheiro.

- Preciso ir junto?

- Precisa.

E quando chegaram lá, o pai disse:

- Pega essa caixinha e vira toda no lixo.

- Pai, mas esse é o seu remédio. Custa dinheiro e é para sua memória.

- Pode jogar tudo fora. Esse carinho que você fez na minha careca vale muito mais que esse remédio, que não serve para nada e só me causa diarréia.

"Nesse dia, e em tantos outros, me dei conta de que ele tinha razão. Fui ficando mais tempo a seu lado e sua memória foi melhorando." Duas semanas depois, suspenderam o tratamento com tacrina, remédio que já não fazia mais efeito algum, devido ao avançado estágio da doença. "Ainda assim, por muito tempo depois disso, minhas mãos no seu ombro continuaram a ter seu valor terapêutico", conta o filho.

Iván Izquierdo não se atormenta com a hipótese de vir a sofrer de Alzheimer algum dia. Ele diz que "quando se chega aos 70, esse é um assunto que se deve encarar com mais naturalidade. Isso pode acontecer, mas hoje eu acordei e não aconteceu. Eu posso vir a ter Alzheimer, eu posso até morrer com Alzheimer, mas se hoje eu não tenho, tudo indica que no próximo mês não vou ter, e nos próximos seis meses provavelmente também não. Então dá pra pensar num futuro positivamente". Ele dá o exemplo de Ronald Reagan, ex-presidente americano, que concluiu um segundo mandato já acometido da doença. "Mesmo assim, ganhou a Guerra Fria", comenta o cientista. Reagan veio a morrer de Alzheimer somente 15 anos mais tarde.

Segundo Marco Prado, "hoje está claro que a qualidade de vida está fortemente relacionada com a doença de Alzheimer: leitura, alimentação, interação com os pares, convívio familiar". Prado diz que é difícil separar qual o componente que determina isso, mas explica que esse modelo pode ser reproduzido em animais de laboratório. "Num ambiente enriquecido e controlado, é possível suavizar os sintomas de Alzheimer e até melhorar o comportamento do animal", conclui Prado. O próprio Izquierdo segue à risca recomendações de uma vida regrada: às vésperas de completar 70 anos, faz exercícios aeróbicos três vezes por semana, dorme oito horas por dia, lê todas as noites, come churrasco sem culpa - "a carne sempre me cai bem" -, dirige no trânsito de Porto Alegre e trabalha diariamente de 9 às 5. Conta que fumou por mais de cinqüenta anos, mas há quatro largou o cigarro, não sem muito sacrifício. Nos últimos dezoito meses, publicou 49 artigos científicos. Evita levar trabalho para casa, mas não se desliga da internet e gosta de se distrair com joguinhos no computador. Tem sempre um poema na ponta da língua e acaba de ler o romance O Caçador de Pipas. "O livro contém horror em demasia, eu estava numa fase da vida em que preferia não ouvir histórias horripilantes, mas é um livro magnífico", diz.

Izquierdo calcula que, em 35 anos de trabalho em universidade, teve contato direto com cerca de mil alunos. Conhecido por seu espírito conciliador, contabiliza apenas duas expulsões de alunos. Uma delas ocorreu há quinze anos, quando um estudante disse a uma professora visitante, judia, que a pele dela era diferente, e por isso ele nunca a tocaria com a mão. Ele foi até o aluno:

-Tu falaste isso?

- Sim, falei.

- Então, vais juntar tuas coisas e ir embora, já, enquanto eu estiver aqui olhando.

Izquierdo se indigna quando lembra que o estudante sequer entendeu o alcance do seu ato: "Ele confirmou numa boa". Em outra ocasião, soube que um dos alunos, para se divertir, torturava animais do laboratório. O sujeito amarrava uma pata do rato à grade metálica e lhe dava choques sucessivos até que o animal não resistisse. Izquierdo apareceu de surpresa e o pegou no flagra: "Eu arranquei o fio com a mão, sacudi o cara pelo braço e o mandei embora. Era um bárbaro". Ele não admite crueldade com as cobaias. "São animais que ao final do experimento temos que matar, mas até para isso exigimos todo o cuidado possível para que o animal não sofra, senão isso vira um açougue", afirma.

Sócio e amigo de Iván Izquierdo, Jorge Medina, de Buenos Aires, conta que o colega foi orientador de mestrado e doutorado de mais de 60 jovens cientistas, e ainda hoje é continuamente procurado para essa função, não apenas pelo seu saber, mas também por seu lado educador. "Ele ensina muito mais que ciência, ensina lições de vida, mostra como enfrentar as dificuldades fora do mundo acadêmico", diz Medina.

Em fevereiro de 2003, Izquierdo havia sido convidado a dar uma palestra no Simpósio Internacional de Neurociência, nas Bahamas, patrocinado pela PEW, fundação privada de apoio à pesquisa científica. Na véspera de sua apresentação, a escritora Laurie Garrett discursara sobre política no Terceiro Mundo para uma platéia de bolsistas latinos e jovens cientistas americanos. O assunto causou alvoroço, pois os ânimos estavam aquecidos devido à iminente invasão americana ao Iraque (que se daria um mês depois). Houve gritaria, bate-boca e animosidade, pró e contra o presidente Bush. Com esse pano de fundo, havia expectativa em torno da palestra de Izquierdo, que não teria como evitar o assunto. Como ele se dirigiria a uma platéia de jovens cuja metade era formada por americanos que naquele momento apoiavam o presidente Bush? Antes de começar a falar de ciência, declarou apenas: "Não podemos ser antiamericanos. Eu mesmo morei e trabalhei nos Estados Unidos, um de meus filhos é nascido lá. Gosto de jazz, de blues, e não podemos ser simplesmente contra nossos colegas americanos. E como gosto muito deles e os respeito, me sinto no dever de alertá-los, como fazemos quando percebemos que algo não vai bem com um amigo. Acho que é hora de apontar-lhes o dedo, como quem diz: 'amigo, você está com a braguilha aberta'." Assim, descontraiu a platéia, deu seu recado diplomático aos americanos e engatou no tema científico do dia.

Em 1962, depois de se doutorar em Buenos Aires, ele ganhara uma bolsa de estudo de dois anos na Universidade da Califórnia, em Los Angeles. Antes de partir, decidiu fazer uma viagem pela América do Sul com um amigo, à la Ernesto Guevara e Alberto Granado. Sabiam que o dinheiro daria no máximo para chegar a Porto Alegre, mas embarcaram assim mesmo. De lá, tentaram chegar ao Rio para o carnaval, mas não encontraram passagem. Como prêmio de consolação, foram convidados a passar o feriado na casa de praia de um amigo de seu pai, com a mulher e o filho. Iván disse ao amigo: "O pior que pode nos acontecer é esse filho ser um chato, mas vamos lá". Entrou no carro e não era um filho, e sim uma filha. Acabou casando com ela. A união com Ivone já dura 44 anos. Autor de onze livros de neurociência e seis de contos e crônicas, que trazem coletâneas de artigos seus publicados em jornais, o professor tem na gaveta mais seis contos inéditos à espera de um tratamento final. "Ainda preciso depurar o estilo", avalia.

Ele passou por uma fase difícil quando se aposentou pela UFRGS, em 2003. "No mesmo lugar em que eu tinha trabalhado durante 25 anos, de repente eu não tinha mais voz nem voto no departamento que ajudei a criar", ele lembra. "Sentia-me um inútil. Para dar aula, eu tinha que pedir permissão, para ter um bolsista, eu tinha que ter permissão." Por sorte, na mesma época surgiu o convite da PUC gaúcha para a instalação do Centro de Memória, que seria inaugurado dois anos depois. Ali, considera-se feliz. Suas principais atividades são o acompanhamento de experiências no laboratório e a produção de artigos. Passa a maior parte do tempo escrevendo. "Enquanto escrevo eu reflito melhor sobre o meu trabalho", diz. Com freqüência, é convidado para compor bancas examinadoras em todo o Brasil, mas tem recusado todas, para se poupar para viagens em que faz palestras e participa de congressos.

O professor atende ele mesmo as ligações que chegam direto à sua mesa e organiza pessoalmente a agenda de compromissos. Na porta da entrada de seu gabinete, há uma placa do exército americano: You are leaving the american sector - US Army (Você está saindo do setor americano - Exército dos EUA). No chão da sala, repousa um radinho, sempre sintonizado na Rádio Guaíba, que toca de Moon River a clássicos do tango. Sobre a mesa, está o laptop azul-marinho. Nas paredes, há três fotos da família, duas de seus netos e uma em que aparece com a mulher em Helsinque, na Finlândia, além de dois quadros pintados com cenas do centro antigo de Buenos Aires e uma bandeirinha da Argentina. Izquierdo almoça no trabalho, geralmente um sanduíche de croissant e café, e usa um discreto aparelho de audição.

Numa tarde recente de inverno em Porto Alegre, vestindo suéter de lã azul-marinho sob o crachá da PUC, onde se lê: I. A. Izquierdo - Famed Professor, ele conseguiu apanhar um mosquito no ar com a mão. Ficou orgulhosíssimo com a própria destreza. Apesar da boa disposição física e mental, e do prestígio profissional, Izquierdo conta que há catorze anos sofreu pela primeira vez uma forte crise de depressão. Ele voltava de um congresso em Buenos Aires, onde havia estado com amigos, hospedara-se no hotel Sheraton, que não conhecia e do qual gostou muito. Chegou em casa e, no final da noite, soube de uma crise na família. Dormiu e acordou subitamente, às 5 da manhã, desesperado: "Algo ocorreu na química do meu cérebro que me transformou de uma pessoa que estava tranqüila e apenas tinha ouvido uma notícia ruim num cara que queria morrer. Foi uma sensação indescritível". Pensou que, a partir dali, sua carreira científica estaria encerrada. Tratou-se com psicoterapia e remédios, e toma antidepressivos até hoje.

Proveniente de família católica, não se considera um praticante, embora seja profundamente religioso. Nunca duvidou da existência de Deus, mas deixou a religião de lado no final da adolescência. Retornou a ela justamente devido ao trabalho científico, quando se deparou com problemas que ultrapassavam sua compreensão. Se os problemas existiam, conclui, não existiam pelo acaso, mas por uma seqüência de razões, que ele não compreendia, mas alguém sabia. "Daí a vislumbrar a idéia de Deus é um passo", diz. "Eu vejo um bando de pássaros voando e não sei quantos são, mas alguém sabe. E essa é a prova de que Deus existe." Izquierdo sabe que, como cientista, na melhor das hipóteses, conseguirá responder como as coisas acontecem, mas não por que.

No final de maio, um grupo evangélico inaugurou o Museu da Criação, no estado americano de Kentucky. O museu criacionista é uma resposta aos museus de história natural que têm como base a teoria evolucionista. Os criacionistas renegam as teses do Big Bang - a grande explosão que teria dado origem ao universo há 18 bilhões de anos - e da evolução das espécies, e só crêem no que está escrito na Bíblia. O museu coloca no mesmo barco - literalmente - todos os seres vivos. Há uma Arca de Noé com humanos, um casal de cada espécie animal e dinossauros. Izquierdo considera a corrente criacionista "uma insensatez completa", mas pondera que "alguém deu o pontapé inicial nesse grande jogo que chamamos universo". Ele acha difícil crer que coisas tão complexas e organizadas tenham surgido do nada, e por isso crê em Deus. "O problema", diz ele, "é que, uma vez que se acredita em Deus, pode-se acreditar em qualquer coisa que nos contem sobre ele, pois não temos como provar o contrário."

R-1 pertence à classe dos seres complexos e organizados e seria, portanto, filho de Deus. Seu destino foi selado ao ser comprado, por 9 reais, por um laboratório de pesquisas biomédicas. De sua curta biografia, pouco se sabe. Talvez tenha vivido dois anos. Foi entregue à ciência com 1 mês de vida e, quando atingiu 200 g de peso, tornou-se apto a virar cobaia. Tinha pêlos brancos e olhos vermelhos. Quando não estava na mesa de pesquisa, ficava numa estante com luz e temperatura controladas. Logo que chegou, recebeu um traço de caneta em sua cauda, daí passou a ser chamado de Rato-1. Se fossem dois traços, seria o R-2 de sua equipe. Prestou-se a apenas um experimento e teve parte de sua memória apagada. Foi guilhotinado depois de usado.


10 julho de 2015
Raquel F. Zangrandi

JOGO DOS SETE ERROS



A construção do teatro do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro conclui, depois de mais de meio século, um marco do modernismo arquitetônico. Mas o resultado valeu a espera?


"Ora veja: eu quis fazer esta coluna, mas não tinha armação desse tipo", sussurrou um dos grandes arquitetos do século XX. O desabafo, em tom de superioridade, e talvez com uma ponta de inveja, foi feito por Le Corbusier, enquanto ele caminhava pelo piloti do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, o MAM, ainda em construção. 
Era o final de 1962, quando da terceira e última viagem do projetista franco-suíço ao Brasil, num banquete em sua homenagem. O motivo da viagem foi seu projeto da embaixada francesa em Brasília, nunca construído. Havia um clima de despedida no ar. Além de representantes oficiais - diplomatas do Brasil e da França -, compareceram alguns dos principais arquitetos brasileiros. Entre eles, Lucio Costa e Affonso Eduardo Reidy, o projetista do MAM.

O discurso do ex-ministro da Educação de Getúlio Vargas, Gustavo Capanema, emocionou Corbusier, que estava com 75 anos. Sua conturbada, mas frutífera, relação com o Brasil, iniciada no final dos anos 20, terminava com um balanço ambíguo. Se, de um lado, apesar de inúmeras tentativas, ele nada edificou por aqui, do outro, a arquitetura moderna brasileira, ainda que com vida própria, dava sinais evidentes de ter incorporado suas lições. 
No almoço, vestindo terno claro e usando os acessórios que o identificavam (os pesados óculos de aro redondo e a gravata-borboleta), Corbusier sentou-se ao lado de uma senhora dezesseis anos mais jovem, que usava um vestido com pregas e estava com os braços à mostra. Era Carmen Portinho, companheira do projetista do museu. A posição de destaque dela à mesa não se devia a seus laços com Reidy: além de dirigir o museu, ela fora também a responsável pela sua construção. Ou seja, era a anfitriã do banquete.

Carmen Portinho foi a terceira brasileira a receber um diploma de engenharia. Se o pioneirismo acadêmico não bastasse, ela também dirigiu a Escola Superior de Desenho Industrial, a Esdi, e editou a revista municipal de engenharia. Com uma personalidade política e expansiva, ela serviu de suporte para o desenvolvimento do talento de Reidy, um homem reservado e tímido. 
Nunca oficializado, o casamento deles durou quase trinta anos e não deixou descendentes. Deixou para a cultura brasileira, contudo, um invejável conjunto de obras públicas que pensaram juntos - ela como diretora do Departamento de Habitação Popular do Rio, e ele como arquiteto responsável pelos projetos. Nesse espólio, está o Museu de Arte Moderna. Mesmo não sendo público, o museu foi criado e construído por eles, como oferecimento da municipalidade, e ambos não receberam honorários.

O museu, fundado em maio de 1948, surgiu graças à iniciativa de Nelson Rockefeller, que convenceu políticos e empresários da então capital federal da importância de a cidade ter uma instituição cultural do gênero. As duas primeiras sedes foram temporárias: o último piso do Banco Boavista, na avenida Rio Branco, e parte do piloti do Ministério da Educação e Saúde. Ambas foram desenhadas por Niemeyer que, preferido de Capanema, por pouco não foi designado para desenhar a sede à beira-mar. Com a segunda diretoria eleita, tendo à frente Carmen e a empresária Niomar Muniz Sodré, o museu deslanchou. A fim de construir sede própria, em dezembro de 1952 o MAM ganhou da prefeitura um terreno de 40 mil metros quadrados, numa área a ser aterrada, no Flamengo, com o desmonte do morro Santo Antônio.

A obra de Reidy foi a primeira de porte, no Brasil, a usar o concreto à vista. O ponto forte do desenho é a solução estrutural do volume de exposições: a coluna em V, que invejou Corbusier, apóia no braço interno a laje do primeiro piso (o salão de exposições) e, no braço externo, a cobertura. 
O pórtico formado pelos pilares de fora sustenta o segundo piso, por meio de tirantes. O mote desse malabarismo estrutural, tal como pregava a arquitetura moderna, é deixar a paisagem fluir pela construção. Essa é a origem dos pilotis, dos ambientes contínuos, do uso do vidro, das rampas e circulações generosas. A filosofia do projeto foi a de criar um espaço de liberdade, de diluir a noção de espaços público e privado.

Desde os primeiros esboços de Reidy, fica clara essa intenção. Numa sequência de três croquis explicativos, quase um diagrama, ele demonstra o desejo de que o prédio não influísse na "belíssima paisagem". Para isso, há poucos pontos de apoios deixando "livre grande parte do pavimento térreo". O desenho-diagrama é ilustrado com o pavilhão de exposições. Disposto no sentido leste-oeste do terreno, o pavilhão é o mais significativo dos três que compõem o museu. Situados em extremidades opostas, os outros dois são o bloco-escola e o teatro.

Carmen Portinho encarava a construção do museu como uma missão cívica. Deve-se a ela a correlação entre projeto e obra. Além da dificuldade em colocar de pé a complexa estrutura, havia também o detalhamento minucioso de Reidy, um dos mais rígidos e exigentes arquitetos brasileiros. 
Em seu projeto, por exemplo, o perfil das janelas coincide com a junta dos tijolos, e as tomadas, nos banheiros, ficam bem no meio dos azulejos. Não se fez economia na construção. Por isso, o museu foi executado em partes. Reidy só conheceu o bloco-escola, inaugurado por Juscelino Kubitschek em janeiro de 1958. Aos 54 anos, ele morreu de câncer nos pulmões em agosto de 1964. 
Três anos mais tarde, o pavilhão de exposições foi aberto. Um incêndio fez desaparecer parte do acervo em 1978 e o museu foi reaberto só quatro anos depois do fogo, após uma restauração malsucedida. Em 1999, outra restauração mais minuciosa deixou o MAM no prumo. Mas o teatro ficou para trás. Carmen morreu em 2001, aos 98 anos, sem imaginar que ele seria construído.

O teatro só foi construído devido a um hipermercado. Em 2002, ao participar do projeto de um Extra no Maracanã, onde havia ainda uma construção de interesse histórico - a primeira fábrica de cerveja da cidade -, o arquiteto Luís Antônio Rangel entrou em contato com a Rio Arte. O seu cliente gostaria de restaurar o edifício e passar a gestão dele para a prefeitura. 

Foi assim que ele conheceu o presidente da instituição, o também arquiteto Ricardo Macieira. Eles não só se tornaram amigos como projetaram juntos o Centro Coreográfico do Rio, inaugurado em 2004. Quando César Maia se reelegeu prefeito, Macieira foi nomeado secretário da Cultura. 
Antes de assumir, conversou com conhecidos sobre idéias para tocar no governo. Para o novo amigo, perguntou: "o que você acha que devo construir?" De bate-pronto, Rangel respondeu: "pelo amor de Deus, completa o teatro do Reidy!", e contou a história do projeto. Macieira registrou a idéia.

Ele lembrou da conversa meses depois, ao saber do interesse de um grupo paulista em construir uma casa de espetáculos no Rio. "Estávamos procurando há mais de cinco anos um lugar no Rio", diz Gladston Tedesco, um dos sócios da Tom Maior Empreendimentos, que controla a Tom Brasil e o Tom Jazz, em São Paulo. Tedesco, corpulento e falante, cuida da parte administrativa. Seu sócio Paulo Amorim, mais tímido e reservado, faz o trato com os artistas. Ambos trabalharam no governo Quércia.

Em 1995, eles abriram o primeiro Tom Brasil, na Vila Olímpia, e em 2003 outra casa, na chácara Santo Antônio. Ambas foram inauguradas por João Gilberto, em shows inesquecíveis, o que lhes conferiu um atestado técnico de qualidade do sistema de som. Do ponto de vista arquitetônico, a primeira foi mais bem cuidada, pois a segunda sofreu com o corte de verba. Além dos espetáculos, eles usam a estrutura do Tom Brasil para abrigar eventos corporativos. "Não é raro que uma apresentação musical dê prejuízo", relata Tedesco. "Por isso, no ano passado, em São Paulo fizemos 96 shows contra 140 eventos, que são uma garantia de lucro."

Era exatamente uma casa desse gênero, para shows e eventos, que Amorim e Tedesco queriam abrir no Rio. Tentaram primeiro um acordo com o Canecão e depois com a Marina da Glória. Nas conversas com os administradores da Marina, Macieira conheceu a dupla. Por problemas de contrato e de tombamento da área da Marina, as negociações não foram adiante. Macieira lembrou do museu e falou com Tedesco: "Olha, pouca gente sabe, mas existe no MAM um projeto de um teatro que nunca foi construído. Como faz parte do desenho original, pode ser que se consiga construir agora". Levantando as sobrancelhas, seu interlocutor respondeu: "Isso me interessa".

No encontro seguinte, Macieira e os dois empresários paulistas se reuniram em torno da mesa de um restaurante no Rio com João Maurício de Araújo Pinho e Carlos Alberto Gouvêa, presidente e vice-presidente do museu. Dias depois, a direção do MAM foi a São Paulo, para conhecer de perto os empreendimentos. Começou um namoro, que logo chegou ao altar. 
Para a cúpula do museu, a idéia representaria a possibilidade de independência financeira. Para os empresários, a oportunidade de abrir no Rio uma casa bem localizada, num conjunto arquitetônico nobre. "Não queríamos nada na Barra", lembra Tedesco. O contrato de vinte anos, renovável por mais vinte, reza o seguinte: o grupo paulista fica responsável pelo financiamento e pela construção do teatro, pagaria um aluguel reajustável para o museu e teria uma participação proporcional à quantidade de vezes que o espaço fosse utilizado.

Do ponto de vista formal, o teatro é a peça mais expressiva do conjunto. Enquanto as outras duas construções são contidas, o teatro, pelo próprio uso, possui formas curvas e tem uma massa mais densa e pesada. A idéia foi descrita por Reidy em 1953: "Na extremidade leste do conjunto ficará situado o teatro, com mil lugares. 
O palco terá uma largura disponível de 50 metros, 20 de profundidade e 20 de altura livre. A construção cênica baseia-se num sistema de carros movimentados eletronicamente, que se deslocarão para os espaços laterais e de fundo do palco. A boca de cena terá 7,5 metros de altura e 12 metros de largura, podendo chegar a 16 metros em caso de abertura total, para a realização de concertos sinfônicos".

Ou seja, era um teatro de grande dimensão para uso cênico, com acústica para atender também a apresentações musicais. Existem apenas dois teatros cariocas com capacidade maior: o Municipal (2 365 lugares) e o João Caetano (1 220 lugares), ambos construídos antes do projeto de Reidy. O teatro daria uma estrutura invejável ao MAM: que outro museu no mundo possui um teatro com essa dimensão? O Masp, para ficar com um exemplo nacional, tem somente dois pequenos auditórios.

Pelos desenhos originais, percebe-se que o foyer seria dividido em dois níveis: um no térreo e outro no piso superior, que coincidiria com a parte mais alta da platéia (que teria também um balcão). Assim como no Municipal, o foyer superior se abriria para uma generosa varanda, um terraço-jardim, cujo piso é a marquise que protege a entrada e conecta o museu ao teatro. No subsolo, estariam o fosso da orquestra, os camarins e duas salas de ensaio, com 450 metros quadrados cada.

Mas não era nada disso que os empresários do Tom Brasil desejavam. Eles queriam uma casa de show que pudesse alternar, dependendo do gênero, de 2 500 lugares sentados (em configuração de mesas) a 6 000 espectadores de pé (como uma imensa pista de dança). E, para os eventos corporativos, seria necessário fazer cozinha industrial, capaz de servir pratos quentes para até 6 000 pessoas.

Pela qualidade do desenho e de seu entorno, desde 1965 o museu é protegido por tombamento federal. Depois disso, os órgãos estadual e municipal que cuidam do patrimônio histórico também criaram leis para protegê-lo. Em miúdos: o museu é quase blindado, pois qualquer modificação, mesmo que mínima, deve ser aprovada por diversos órgãos públicos, que costumam ser rigorosos. 
Quando existe tombamento em mais de um âmbito, a praxe funciona assim: se não há disputa política, todos esperam e acompanham a resolução da esfera superior. No caso do MAM, foi o órgão federal - o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, Iphan - quem deu as cartas. E no início de 2005, a superintendência fluminense do Instituto, na época dirigida pela arquiteta Thays Pessotto, entendeu o seguinte: o que interessava preservar era o volume externo, que deveria ser construído de acordo com o que foi imaginado por Reidy, mesmo que o uso e os interiores fossem alterados. Era tudo o que a direção do MAM e os empresários paulistas queriam ouvir.

Faltava um arquiteto para bolar o novo arranjo. Pelo telefone, Rangel recebeu a notícia do secretário da cultura: "Arrumei um pessoal que vai fazer esse negócio". Além de ter fomentado a retomada da construção, Rangel tinha no currículo uma qualificação especial para trabalhar naquela idéia: durante mais de dois anos, ele foi estagiário de Reidy no projeto do museu. "Reidy era um cara muito sério", recorda o arquiteto, que gosta de contar histórias da época. Ele lembra que, com a nova capital federal na pauta do dia, perguntou ao mestre: "Doutor Reidy, o senhor não entrou no concurso de Brasília?" A resposta negativa que ouviu foi ácida: "Eu faço as coisas com mais seriedade".

Formado no início dos anos 60, Rangel tem escritório num prédio antigo do Flamengo que era residencial e agora tem uso misto. Fica lá só à tarde: pela manhã acompanha, como contratado pela prefeitura, a construção da Cidade da Música, na Barra, desenhada pelo francês Christian de Portzamparc. Sua faceta profissional mais conhecida é em restauração (além do Centro Coreográfico do Rio, fez ainda a recuperação do Copacabana Palace) e, principalmente, em hotelaria. É dele o desenho do Le Méridien da avenida Atlântica, feito com Paulo Casé, seu ex-sócio.

Tudo caminhava bem: empresários bem intencionados, um museu de renome prestes a ganhar independência financeira, um marco da arquitetura modernista a ser concluído com a ajuda de um ex-aprendiz, e a cidade que ganharia um equipamento cultural de peso. O que poderia ser melhor? Algo na receita, no entanto, desandou. Para entender o que aconteceu, é preciso comparar o projeto original com a obra finalizada. O que resulta é um jogo de sete erros.

A primeira dessemelhança diz respeito ao uso. A mudança de uso - de teatro para casa de espetáculos - em vez de ser complementar, conflita com as atividades do museu. Gerido por terceiros, o espaço não é pautado pela programação cultural do museu. João Maurício se defende: "Adoraria que apresentássemos ópera - aliás, nem sei se adoraria -, mas as coisas mudaram". 
Segundo ele conta, nos últimos anos investiu-se para atrair o público jovem, por exemplo com desfiles de moda. O presidente alega também que o museu não conta com receita do governo. Segundo afirma, quando iniciou sua gestão, havia uma dívida de cerca de 10 milhões de reais, e hoje o MAM está tão azul quanto o céu de inverno carioca. Parte da dívida foi conseguida com a receita gerada pelos eventos, inclusive festas de casamento.

O argumento dos empresários paulistas é outro: "Quem no Brasil visita um museu?" pergunta Tedesco. "Revitalizamos aquilo tudo: na região, havia ponto de drogas e prostituição. Hoje está completamente diferente. E, depois que inauguramos, triplicou a freqüência do museu." Os empresários informam também que, vez ou outra, há parceria entre o MAM e a casa de shows: ao comprar um ingresso, o espectador ganha uma entrada para o museu. "Não houve mudança de uso: houve uma atualização", diz, por sua vez, o atual superintendente do Iphan, Carlos Fernando de Andrade.

O problema da mudança de uso é outro. Um dos preceitos básicos da arquitetura moderna é que a forma segue a função. Assim, o teatro do MAM não tinha aquela forma por acaso: sua expressividade era fruto dos espaços que ele abrigaria. Dito de outro modo, a expressão volumétrica de Reidy para um teatro de 1 000 lugares se tornou falsa com outro uso. O volume da caixa do palco, por exemplo, só teria aquela altura para abrigar os urdimentos (a parafernália que suporta a troca de cenários, iluminação e outros recursos). Na casa de show, aquele volume não tem função. 
A cozinha e o público maior, igualmente, exigem acessos diferentes, estacionamento e rotas de fuga com outras dimensões, como as duas saídas laterais que não estavam previstas no projeto. Ficam as questões: se era para modificar o uso, não seria mais verdadeiro construir um volume diferente? O que é melhor, um Reidy falso ou outra coisa, mais verdadeira?

O segundo dos sete erros diz respeito, especificamente, à relação interior-exterior. Para os arquitetos modernos, como Reidy, há uma continuidade entre os conceitos daquilo que se vê dentro com aquilo que está por fora. Eles não concebem o exterior como se fosse uma casca de ovo, nem o interior como se fosse um cenário: há uma unidade. A partir do momento que o projeto do interior de Reidy foi para o lixo, a unidade se perdeu. Mesmo admitindo a mudança de uso, e só valorizando o lado externo, os problemas persistem: o foyer transparente, por exemplo, faz parte de dentro ou de fora? Um usuário do museu que visite o espaço durante o dia leva um choque ao avistar aqueles interiores, mesmo sem entrar no teatro. Fica a segunda pergunta no ar: por fazer parte do conjunto, o desenho de Rangel, com suas virtudes e defeitos, já nasceu tombado?

Continuando a comparação do passado com o presente, da utopia com a realidade, o terceiro erro se refere ao volume. Nesse caso, a questão é concreta: as alterações feitas feriram a lógica da diretriz do Iphan. "Externamente, o projeto de Reidy foi seguido no milímetro", afirma João Maurício. Não é bem assim. Era impossível atender às inúmeras solicitações novas do interior do prédio num volume predefinido. A saída que Rangel encontrou foi simples e radical: se não dá para mudar para cima, vamos para baixo da terra. Mesmo com a dificuldade do lençol freático alto, o arquiteto usou profundamente o subsolo, botando nele a cozinha industrial e todos os demais serviços. Nesse caso, foi fundamental sua experiência em hotelaria, pois ele aprimorou a lógica utilizada pelo Tom Brasil em São Paulo. "É na verdade um programa de convenções", ele diz.

Mesmo assim, só a área do público e do palco não caberiam no volume de Reidy. Por isso, Rangel propôs ao Iphan que o caixilho do foyer avançasse 10 metros sob o espaço da marquise, que estava vazia no projeto de Reidy. Das três linhas de pilares da marquise, duas ficavam para fora do teatro e uma para dentro. A proposta, infelizmente, foi aceita pelo Instituto, e o desejo de liberdade de Reidy desapareceu nos 500 metros quadrados que o novo foyer invadiu. Massudo e fechado, como é todo teatro, certamente essa era a peça mais difícil de lapidar. Reidy tratou de deixá-lo mais leve por meio de elementos secundários, dos quais a marquise era o principal. Quando o volume finalmente foi construído, admiradores de Reidy, acostumados com a leveza do pavilhão de exposições, ficaram chocados. "Não é nada daquilo!", ouvi de um professor, especialista em arquitetura moderna.

A gravidade desse terceiro erro abriu a porteira para passar uma boiada de modificações no volume externo - algumas ilegais. Uma das mais graves se refere à rampa lateral. O terraço-jardim, sob a marquise de entrada do teatro, era conectado ao térreo através de uma rampa ao ar livre. Tanto a marquise como a rampa já estavam construídas, ou seja, eram tombadas. Vendo na rampa problemas de segurança, os empresários pediram sua demolição. A superintendente do Iphan, Thays Pessotto, atendeu ao pedido. (Ela é hoje assessora do presidente do Instituto e não quis falar sobre o assunto.) "O nível de violência hoje no Rio é muito diferente do que existia há 50 anos", justifica Tedesco. "Não tínhamos como fechar aquela rampa, e tudo ficaria vulnerável." Já João Maurício argumenta que a rampa atrapalharia a saída de emergência, cuja legislação ficou, de Reidy a Rangel, mais rigorosa. O presidente do museu acha que a o fim da rampa é uma mudança "insignificante". E o arquiteto diz que desenhou uma escada "ao sabor de Reidy" para substituir a rampa. O desenho do ex-pupilo, de fato, lembra a que o mestre utilizou em sua casa, em Itaipava.

Só que uma escada, mesmo de Reidy, é muito diferente de uma rampa. Quando subimos um plano inclinado, como era o caso da rampa destruída, ao lado de um jardim de Burle Marx, podemos apreciar a paisagem com calma e segurança. Já o ritmo duro dos degraus de uma escada torna essa contemplação mais difícil. A rampa torna maior a percepção de continuidade entre o térreo e o terraço-jardim. É o que Le Corbusier chamava de "passeio arquitetônico": um percurso que dá visões diferenciadas.

Para piorar, a escada que vingou não é a que foi aprovada. O arquiteto se defende: "Não digo que minha proposta seria igual ou melhor do que a solução em rampa. Era apenas uma solução factível. Mas aquela coisa que está lá não é o meu desenho!" Trata-se de uma escada desengonçada, cercada de grades, cujo desenho envergonharia um aluno do primeiro ano de arquitetura. Junto à escada, foi feito ainda um "puxadinho" no caixilho.

Existem outros elementos do volume que não correspondem ao projeto original, entre eles a falta da abertura superior da fachada principal (que também ajudaria a deixar mais leve a massa construída), a estação de energia (que poderia ser subterrânea, atrapalhando a visão do volume) e a bilheteria. Para vender ingressos, Reidy tinha pensado em um volume circular externo, pequenino, embaixo da marquise. Como a área externa foi ocupada pelo foyer, Rangel criou na lateral alguns volumes circulares semelhantes, de concreto e tijolos.

Os tijolos utilizados, assim como os outros que Reidy havia previsto para a parte posterior do palco, são diferentes dos escolhidos na década de 50. Não é um crime trocar um material, desde que exista argumento pertinente. Ele pode não mais existir (como alguns tipos de pedras), não ser mais fabricado ou ser proibido (como o amianto ou o jacarandá). Mas a troca de tijolos maciços refratários para tijolos de revestimento comum por causa de rapidez e falta de rigor na execução - tudo o que Carmen e Reidy não aprovariam - parece muito esquisita. O MAM, seguindo o viés brutalista, foi construído com poucos tipos de materiais, todos deixados à vista. A lógica desse raciocínio é transmitir a idéia da "verdade construtiva": quando vemos um painel de tijolo, ele é realmente construído com tijolos, e não com um material falso, de revestimento, que o imita.

A troca de materiais externos por "genéricos" é o quarto erro na comparação entre o desenho cinqüentenário e a obra executada. Além dos tijolos, há diferença no tipo de vidro do foyer e no concreto. E aí se chega à técnica construtiva, ao quinto erro. A cobertura, no desenho dos anos 50, tinha estrutura de concreto armado. Ela tem hoje treliças metálicas, escolhidas por serem mais baratas e de execução mais rápida. Nos anos 80, Carmen reagiu com irritação, na imprensa, quando colocaram telhas metálicas na cobertura do MAM, sabendo que elas só poderiam ser vistas do alto de prédios, ou de aviões e helicópteros. Imaginem o que ela diria a respeito dessas novas trocas?

Outro ponto, este mais grosseiro, diz respeito ao concreto aparente. Reidy fazia questão de marcar o concreto com texturas. Nas colunas e nas empenas do pavilhão de exposições há uma caligrafia própria, que procura desvendar o processo construtivo. Na casa de espetáculos, a construtora sugeriu ao arquiteto uma técnica mais moderna e rápida de concretagem, a de formas deslizantes, que dá origem a uma configuração totalmente diversa do concreto. Enquanto o concreto aparente de Reidy convida o olhar, o das formas aparentes dá vontade de sair correndo. Algo semelhante ocorreu com o volume ovalado da caixa de palco, que foi estruturado em metal e fechado com chapas cimentícias. O resultado? Em vez de uma linha contínua, ficou evidente que o volume é formado por uma série de trechos de retas. Que comentário faria Le Corbusier?

A falta de dinheiro, somada à pressa de inaugurar, aumentou todos os problemas. "Exigi que a construção só fosse iniciada quando estivesse disponível todo recurso necessário", diz João Maurício, que temia ganhar um esqueleto como vizinho. Para fazer a obra, que custou 25 milhões de reais, os empresários paulistas pediram empréstimo no BNDES, que não o concedeu. Eles tentaram obter uma linha de crédito no Banco do Brasil. O acordo foi feito, verbalmente, mas o escândalo do mensalão fez com que o banco, fugindo dos holofotes, desistisse do empréstimo. Sem dinheiro, eles recorreram à Vivo, que paga para ter seu nome vinculado à casa de shows. Quem financiou a obra foi a própria construtora, a Company, de São Paulo. O dinheiro entrou apenas oito meses antes da inauguração. "É muito difícil fazer uma obra com data marcada para abrir", informa Tedesco.

Mas e o sétimo e último erro? É a ocupação. Não, não vou reclamar das baias que servem aos serviços de manobristas. Mas como aceitar as grades que fecham a área de carga e descarga do teatro? Além das cercas, há por cima um arame farpado que, em vez de espaço cultural, mais faz lembrar Guantánamo. E o gesto de liberdade de Reidy? Não dá para imaginar que, dentro dos 40 mil metros quadrados do terreno do MAM exista um quintalzinho, ainda mais se tratando de uma área nobre, o eixo de circulação de acesso ao museu e a casa de shows.

"Eu tinha a obrigação moral de fazer o projeto do Reidy e pensei que o Iphan e o museu fossem segurar a barra", diz, cabisbaixo, Rangel. Algumas modificações não constam do projeto aprovado pelo Iphan - como a escada desengonçada e o puxadinho do vidro lateral - apesar de o órgão ter acompanhado a execução. "Duas arquitetas do Iphan visitavam a obra toda semana", relata Tedesco. "Toda semana é exagero", diz o atual superintendente, Carlos Fernando. "Acho a obra muito mal acabada, mas que eu saiba não há pendência alguma de aprovação. Se houvesse, a obra estaria embargada." João Maurício é pragmático: "Foi o melhor que conseguimos fazer. Não está bom?" Dá para imaginar a resposta de Reidy e Carmen...

A programação de shows da casa de espetáculos é intensa e variada. Talvez seja um caso de justiça poética, mas João Gilberto não a inaugurou. Quem fez o show de abertura, em 10 de novembro passado, foi outro Gilberto, o ministro da Cultura, a quem o Iphan está subordinado.


10 de julho de 2015
Fernando Serapião

CÔNCAVO E CONVEXO


Um problema lendário da matemática e a batalha sobre quem o solucionou


O auditório do Hotel da Amizade, em Pequim, recebia naquela tarde centenas de físicos, inclusive um vencedor do prêmio Nobel. Eles estavam ali para uma palestra do matemático chinês Shing-Tung Yau. No final da década de 70, quando ainda nem chegara aos 30 anos, Yau fizera uma série de descobertas incríveis, que ajudaram a lançar a revolução da teoria das cordas em física e lhe valeram, além da medalha Fields - o prêmio mais cobiçado da matemática -, a reputação, nas duas disciplinas, de um pensador com poder técnico inigualável.

Desde então, Yau dividia seu tempo entre os Estados Unidos e a China: havia se tornado professor de matemática em Harvard e diretor dos institutos de matemática de Pequim e Hong Kong. Sua palestra no Hotel da Amizade fez parte de uma conferência internacional sobre a teoria das cordas, que ele organizara com o apoio do governo chinês, em parte para promover os avanços recentes do país em física teórica. (Mais de 6 000 estudantes compareceram à palestra do amigo próximo de Yau, Stephen Hawking, no Grande Salão do Povo.) O tema da palestra de Yau era um ponto pouco conhecido pelo público: a conjectura de Poincaré, um enigma com um século de duração sobre as características de esferas tridimensionais. Devido às suas importantes implicações para a matemática e a cosmologia, e por ter se esquivado a todas as tentativas de solução, a conjectura é considerada pelos matemáticos um Santo Gral.

Yau, um homem atarracado de 57 anos que usa óculos de aro preto, subiu à tribuna em mangas de camisa. Com as mãos nos bolsos, descreveu como, semanas antes, dois de seus alunos, Xi-Ping Zhu and Huai-Dong Cao, haviam obtido a prova da conjectura de Poincaré. "Estou muito otimista com o trabalho de Zhu e Cao", Yau disse. "Os matemáticos chineses têm motivos de sobra para se orgulhar de tamanho sucesso na solução completa do enigma." Ele disse que Zhu e Cao deviam muito a um colaborador americano de longa data, Richard Hamilton, a quem cabia grande parte do mérito da solução da conjectura. Ele também mencionou Grigory Perelman, um matemático russo que, reconheceu, dera uma contribuição importante. Mesmo assim, Yau disse: "No trabalho de Perelman, por mais espetacular que seja, muitas idéias-chave das provas estão esboçadas ou delineadas, e os detalhes completos muitas vezes estão faltando". E acrescentou: "Gostaríamos de receber Perelman para ouvir seus comentários. Mas Perelman mora em São Petersburgo e não quer se comunicar com outras pessoas".

Durante noventa minutos, Yau discutiu alguns dos detalhes técnicos da prova de seus alunos. Quando enfim terminou, ninguém fez qualquer pergunta. Naquela noite, porém, um físico brasileiro postou uma notícia sobre a palestra no seu blog. "Parece que a China logo tomará a dianteira também em matemática", ele escreveu.

Grigory Perelman é realmente solitário. Deixou o emprego de pesquisador do Instituto de Matemática Steklov, em São Petersburgo, tem poucos amigos e mora com a mãe num apartamento na periferia da cidade. Embora jamais tivesse concedido uma entrevista antes, mostrou-se cordial e franco quando o visitamos, pouco após a conferência de Yau em Pequim, conduzindo-nos por uma longa caminhada pela cidade. "Estou em busca de amigos, e não precisam ser matemáticos", ele contou. Na semana antes da conferência, Perelman passara horas discutindo a conjectura de Poincaré com sir John M. Ball, o então presidente de 58 anos da International Mathematical Union (IMU), a influente associação profissional da disciplina. O encontro, realizado num centro de conferências de uma mansão com vista para o rio Neva, foi bastante incomum. Semanas antes, um comitê de nove matemáticos proeminentes votara pela concessão da medalha Fields a Perelman, pelo trabalho sobre a conjectura de Poincaré, e Ball viajara a São Petersburgo para tentar persuadi-lo a receber o prêmio, numa cerimônia pública no congresso quadrienal da IMU, que seria realizado em Madrid.

A criação da medalha Fields, como o prêmio Nobel, resultou, em parte, da vontade de elevar a ciência acima das animosidades nacionais. Os matemáticos de países que perderam a I Guerra Mundial - Alemanha, Áustria, Hungria e Bulgária - foram excluídos do primeiro congresso da IMU, em 1924, e embora a exclusão fosse revogada antes do congresso seguinte, o trauma causado levou, em 1936, à criação da medalha Fields, prêmio que pretendia ser "o mais puramente internacional e impessoal possível".

A medalha Fields, concedida a cada quatro anos para dois a quatro matemáticos, pretende não apenas premiar realizações passadas, mas também estimular pesquisas futuras. Por esse motivo, é concedida apenas a matemáticos de até 40 anos. Nas últimas décadas, com o crescimento do número de matemáticos profissionais, aumentou o prestígio da medalha. Até 2002, somente 44 medalhas foram concedidas - inclusive três por trabalhos intimamente ligados à conjectura de Poincaré - e nenhum matemático jamais recusou o prêmio. Não obstante, um dos escolhidos de 2006, Perelman informou a Ball que não tinha a menor intenção de aceitá-lo. "Eu me recuso", disse ele simplesmente.

Durante um período de oito meses, começando em novembro de 2002, Perelman postou uma prova da conjectura de Poincaré na internet, em três partes. À semelhança de um soneto ou uma ária, uma prova matemática possui uma forma característica e respeita um conjunto de convenções. Começa por axiomas, ou verdades aceitas, e emprega uma série de enunciados lógicos para chegar a uma conclusão. Se a lógica é considerada irrefutável, o resultado constitui um teorema. Ao contrário de uma prova em Direito, ou nas ciências empíricas, baseados em dados e, portanto, sujeitos a ressalvas e revisões, a prova de um teorema é definitiva. Os julgamentos da precisão de uma prova são mediados por revistas especializadas. Para assegurar a justeza, os examinadores devem ser cuidadosamente escolhidos pelos editores da revista e a identidade do acadêmico cujo artigo está sob exame é mantida em segredo. A publicação implica que uma prova é completa, correta e original.

Por esses padrões, a prova de Perelman era pouco ortodoxa. Espantosamente breve para um trabalho tão ambicioso, seqüências lógicas que poderiam ter-se estendido por várias páginas estavam muitas vezes fortemente comprimidas. Além disso, a prova não fazia menção direta alguma a Poincaré e incluía muitos resultados elegantes, mas irrelevantes ao argumento central. Antes, contudo, ao menos duas equipes de especialistas haviam checado a prova sem encontrar inconsistências ou erros. Um consenso vinha emergindo na comunidade da matemática: Perelman solucionara a conjectura de Poincaré. Mesmo assim, a complexidade da prova - e os atalhos de Perelman em algumas das afirmações mais importantes - tornaram-na vulnerável à contestação. Poucos matemáticos dispunham dos conhecimentos necessários para avaliá-la e defendê-la.

Depois de uma série de palestras sobre a prova, nos Estados Unidos, em 2003, Perelman retornou a São Petersburgo. Desde então, embora continuasse respondendo às consultas por e-mail, mantinha com os colegas o mínimo de contato possível e, por motivos que ninguém entendeu, não tentou publicá-la. Mesmo assim, havia pouca dúvida de que Perelman, então com 40 anos, merecia a medalha Fields. Ao planejar o congresso da IMU de 2006, Ball começou a concebê-lo como um evento histórico. Mais de 3 000 matemáticos compareceriam, e o rei Juan Carlos, da Espanha, concordara em presidir a cerimônia de premiação. O boletim informativo da IMU previu que o congresso seria lembrado como "a ocasião em que a conjectura se tornou um teorema". Determinado a assegurar o comparecimento de Perelman, Ball decidiu ir a São Petersburgo.

Ball procurou manter sua visita em segredo - os nomes dos ganhadores da medalha Fields são anunciados oficialmente na cerimônia de premiação - e o centro de conferências onde se encontrou com Perelman estava deserto. Por dez horas, durante dois dias, ele tentou persuadi-lo a aceitar o prêmio. Perelman, um homem esguio, cuja calva vem avançando, barba crespa, sobrancelhas espessas e olhos azul-esverdeados, escutou com polidez. Ele não falava inglês havia três anos, mas recusou o pedido fluentemente. Perelman sintetizou assim a conversa: "Ele me propôs três alternativas: aceitar e vir; aceitar e não vir, e mandamos a medalha mais tarde; e a terceira, eu não aceitar o prêmio. Desde o início, deixei claro que optei pela alternativa três". Perelman explicou que não tinha o menor interesse pela medalha Fields. "Ela era totalmente irrelevante para mim", ele frisou. "Se a prova está correta, nenhum outro reconhecimento é necessário."

Provas da conjectura têm sido anunciadas quase todos os anos, desde a sua formulação por Henri Poincaré, há mais de cem anos. Poincaré, primo de Raymond Poincaré, o presidente da França durante a I Guerra Mundial, foi um dos matemáticos mais criativos da virada do século XX. Delicado, míope e famoso pela distração, concebeu o problema em 1904, oito anos antes de morrer, incluindo-o discretamente como uma pergunta improvisada no final de um artigo de 65 páginas.

Poincaré não avançou muito na prova da conjectura. "Cette question nous entraînerait trop loin" (esta questão nos levaria longe demais), escreveu. Ele foi um dos fundadores da topologia, também conhecida como "geometria da folha de borracha", por seu foco nas propriedades intrínsecas dos espaços. Da perspectiva de um topologista, não há diferença entre uma rosca e uma xícara de café. Ambas possuem um só orifício e podem ser manipuladas para ficar semelhantes, sem se rasgar ou cortar. Poincaré empregou o termo "variedade" para descrever tal espaço topográfico abstrato. A variedade bidimensional mais simples possível é a superfície de uma bola de futebol, que, para um topologista, é uma esfera. A prova de que um objeto é uma biesfera, já que pode assumir um número indefinido de formas, é o fato de estar "ligado de forma simples" - ou seja, não ter furo algum. Ao contrário de uma bola de futebol, uma rosca não é uma esfera verdadeira. Se você amarra um nó corrediço em torno de uma bola de futebol, pode facilmente apertar o nó ao longo da superfície da bola. Mas se você amarra um nó corrediço em torno de uma rosca, envolvendo o furo do meio, não consegue apertar o nó sem destruir a rosca.

As variedades bidimensionais eram bem compreendidas em meados do século XIX. Mas, se o que era verdade para duas dimensões também seria para três, continuou duvidoso. Poincaré propôs que todas as variedades tridimensionais fechadas e ligadas de forma simples - aquelas sem furos e de extensão finita - eram esferas. A conjectura era potencialmente importante para cientistas que estudavam a maior variedade tridimensional que se conhece: o universo. Prová-la matematicamente, porém, não era nada fácil. A maioria das tentativas foi constrangedora. Mas algumas levaram a descobertas matemáticas importantes, como as provas do Lema de Dehn, o Teorema da Esfera e o Teorema do Circuito, que são hoje conceitos fundamentais em topologia.

Na década de 60, a topologia se tornara uma das áreas mais produtivas da matemática, e topologistas jovens enfrentavam regularmente a conjectura de Poincaré. Para espanto da maioria dos matemáticos, as variedades de quarta e quinta dimensões, e mesmo de dimensões mais altas, se mostraram mais manejáveis que as de terceira dimensão. Em 1982, a conjectura de Poincaré havia sido provada em todas as dimensões, exceto a terceira. Em 2000, o Instituto de Matemática Clay, uma fundação privada de pesquisa, considerou a conjectura de Poincaré um dos sete problemas em aberto mais importantes da matemática, e ofereceu 1 milhão de dólares a quem conseguisse prová-la.
"Minha vida inteira como matemático tem sido dominada pela conjectura de Poincaré", disse John Morgan, o chefe do Departamento de Matemática da Universidade de Columbia. "Nunca achei que veria uma solução."

Grigory Perelman não planejava tornar-se matemático. Estávamos diante do prédio de apartamentos onde ele mora, em Kupchino, um bairro de edifícios altos e insípidos. O pai de Perelman, um engenheiro elétrico, estimulou seu interesse por matemática. "Ele me passou uma porção de problemas lógicos e matemáticos", Perelman contou. "Deu-me um monte de livros para ler. Ensinou-me a jogar xadrez. Ele se orgulhava de mim."

Foi uma surpresa para Perelman a descoberta de que a sociedade russa considerava útil o que ele fazia por prazer. Aos 14 anos, ele era o astro de um clube de matemática local. Em 1982, o ano em que Shing-Tung Yau ganhou uma medalha Fields, Perelman conseguiu a pontuação máxima e a medalha de ouro da Olimpíada Internacional de Matemática, em Budapeste. Ele era gentil com os colegas de equipe, mas não tinha intimidade com eles. Era um dos dois ou três judeus de sua turma e cultivava uma paixão por ópera, o que também o distinguia dos colegas. Sua mãe, professora de matemática numa escola técnica, tocava violino e começou a levá-lo à ópera quando ele tinha 6 anos. Aos 15 anos, Perelman gastava sua mesada em discos. Orgulhava-se de possuir uma gravação da famosa interpretação da Traviata de 1946, com Licia Albanese no papel de Violeta.

Na Universidade de Leningrado, onde ingressou em 1982, aos 16 anos, Perelman cursou cadeiras avançadas de geometria. Lá, resolveu um problema formulado por Yuri Burago, um matemático do Instituto Steklov, mais tarde orientador do seu doutorado. "Existe uma série de estudantes altamente capazes, que falam antes de pensar", Burago disse. "Grisha era diferente. Ele pensava profundamente. Suas respostas estavam sempre certas. Ele as verificava com muito cuidado." Burago acrescentou: "Ele não era rápido. Velocidade não quer dizer nada. A matemática não depende de velocidade. O que vale é a profundidade".

No Instituto Steklov, no início dos anos 90, Perelman se especializou na geometria dos espaços riemanniano e de Alexandrov - extensões da geometria euclidiana tradicional - e passou a publicar artigos nas principais revistas de matemática russas e americanas. Em 1992, foi convidado a passar um semestre na Universidade de Nova York e outro na Stony Brook University. Quando partiu para os Estados Unidos, naquele outono, a economia russa havia entrado em colapso. Dan Stroock, um matemático do MIT (Massachusetts Institute of Technology), lembra que contrabandeou maços de dólares para a então URSS, a fim de entregar a um matemático aposentado do Instituto Steklov que, como muitos colegas, passava necessidades.

Perelman estava contente por morar nos Estados Unidos, a capital da comunidade matemática internacional. Vestia todos os dias a mesma jaqueta de cotelê marrom e contou aos amigos da Universidade de Nova York que vivia à base de uma dieta de pão, queijo e leite. Gostava de caminhar até o Brooklyn, onde tinha parentes e podia comprar o pão preto russo tradicional. Alguns de seus colegas ficaram surpresos com suas unhas, de vários centímetros de comprimento. "Se elas crescem, por que impedi-las?", costumava dizer, quando alguém perguntava por que não as cortava. Uma vez por semana, ele e um jovem matemático chinês, chamado Gang Tian, iam de carro até Princeton, para assistir a um seminário no Instituto de Estudos Avançados.

Durante décadas, o Instituto e a vizinha Universidade de Princeton foram centros de pesquisa topológica. No final da década de 70, William Thurston, um matemático de Princeton que gostava de testar suas idéias usando tesoura e cartolina, propôs uma taxonomia para classificar variedades de três dimensões. Ele argumentou que, embora as variedades pudessem assumir várias formas diferentes, possuíam uma geometria "preferida" - assim como um tecido de seda que, ao ser jogado sobre um manequim, assume a forma do manequim.

Thurston propôs que toda variedade tridimensional podia ser decomposta em até oito tipos de componentes, incluindo um tipo esférico. A teoria de Thurston - que se tornou conhecida como a conjectura da geometrização - descreve todas as variedades tridimensionais possíveis, sendo, portanto, uma generalização poderosa da conjectura de Poincaré. Caso fosse confirmada a teoria de Thurston, a conjectura de Poincaré também o seria. Provar as conjecturas de Thurston e Poincaré "definitivamente abre portas", observou Barry Mazur, um matemático de Harvard. As implicações das conjecturas para outras disciplinas poderão não transparecer durante anos, mas, para os matemáticos, os problemas são fundamentais. "Esse é um tipo de teorema de Pitágoras do século XX", Mazur acrescentou. "Ele muda a paisagem."

Em 1982, Thurston ganhou uma medalha Fields pelas contribuições para a topologia. Naquele ano, Richard Hamilton, matemático de Cornell, publicou um artigo sobre uma equação chamada fluxo de Ricci, que ele suspeitava pudesse ajudar a resolver a conjectura de Thurston e, assim, a de Poincaré. À semelhança de uma equação do calor - que descreve como o calor se distribui uniformemente por uma substância, fluindo das partes mais quentes para as mais frias, por exemplo, de uma placa de metal para criar uma temperatura mais uniforme -, o fluxo de Ricci, ao aplainar as irregularidades, confere às variedades uma geometria mais uniforme.

Hamilton, filho de um médico de Cincinnati, desafiava o estereótipo de nerd dos matemáticos. Impetuoso e irreverente, ele cavalgava, praticava windsurf e teve uma sucessão de namoradas. Tratava a matemática como apenas mais um dos prazeres da vida. Aos 49 anos, embora considerado um professor brilhante, havia publicado relativamente pouco além de uma série de artigos seminais sobre o fluxo de Ricci, e tinha poucos alunos de pós-graduação. Perelman havia lido os artigos de Hamilton e foi ouvir uma palestra sua no Instituto de Estudos Avançados. No final, timidamente, Perelman foi falar com ele.

"Eu realmente queria perguntar algo a ele", Perelman recordou. "Ele estava sorrindo e foi bem paciente. Na verdade, contou-me algumas coisas que veio a publicar alguns anos depois. Ele não hesitou em me contar. A franqueza e a generosidade de Hamilton... aquilo realmente me atraiu. Não posso dizer que a maioria dos matemáticos age assim."

"Eu estava trabalhando em várias coisas diferentes, embora ocasionalmente pensasse sobre o fluxo de Ricci", Perelman acrescentou. "Não é preciso ser um grande matemático para ver que ele seria útil para a geometrização. Eu sentia que não sabia muita coisa. Não parava de fazer perguntas."

Shing-Tung Yau também vinha fazendo perguntas a Hamilton sobre o fluxo de Ricci. Yau e Hamilton haviam se conhecido nos anos 70, tendo se tornado íntimos, apesar das diferenças consideráveis de temperamento e formação.

A família de Yau mudou-se da China continental para Hong Kong em 1949, quando ele tinha 5 meses, junto com centenas de milhares de outros refugiados fugindo dos exércitos de Mao. No ano anterior, seu pai, que trabalhava em ajuda humanitária para as Nações Unidas, perdera grande parte da poupança da família numa série de empreendimentos fracassados. Em Hong Kong, para sustentar a esposa e oito filhos, dava aulas particulares de literatura e filosofia chinesas clássicas a estudantes de faculdade.

Quando Yau tinha 14 anos, o pai morreu de câncer no rim, deixando a mãe na dependência de donativos de missionários cristãos e do pouco dinheiro que arrecadava vendendo artesanato. Até então, Yau havia sido um estudante indiferente. Mas, para ganhar dinheiro, começou a dedicar-se aos trabalhos escolares e deu aulas particulares de matemática aos colegas. Yau estudou matemática na universidade chinesa de Hong Kong, onde atraiu a atenção de Shiing-Shen Chern, proeminente matemático chinês. Ele ajudou Yau a obter uma bolsa de estudos na Universidade da Califórnia, em Berkeley. Chern foi o autor de um teorema famoso, combinando topologia com geometria. Passou grande parte da carreira nos Estados Unidos, em Berkeley. Fazia visitas freqüentes a Hong Kong, Taiwan e, mais tarde, à China, onde era venerado como símbolo da realização intelectual chinesa, a fim de promover o estudo de matemática e ciências.

Em 1969, Yau iniciou a escola de pós-graduação em Berkeley, matriculando-se em sete cursos por semestre e assistindo como ouvinte a vários outros. Ele enviava metade do dinheiro da bolsa à mãe, em Hong Kong, e impressionou os professores pela tenacidade. Em 1976, ele provou uma conjectura formulada vinte anos antes, referente a um tipo de variedade crucial para a teoria das cordas. Um matemático francês havia formulado uma prova do problema, conhecida como a conjectura de Calabi, mas a de Yau, por ser mais geral, foi mais poderosa. (Os físicos agora se referem às variedades de Calabi-Yau.) "Em vez de criar algum meio original de examinar um tema, ele vinha solucionando problemas técnicos dificílimos que, na época, somente ele poderia resolver, pelo puro intelecto e pela força de vontade", observou Phillip Griffiths, ex-diretor do Instituto de Estudos Avançados.

Em 1979, aos 30 anos, Yau tornou-se um dos matemáticos mais jovens de todos os tempos a ser nomeado para o corpo docente do Instituto de Estudos Avançados e começou a atrair estudantes talentosos. Ele ganhou a medalha Fields pouco depois, sendo o primeiro chinês a conseguir a façanha. Àquela altura, Chern, aos 70 anos, estava prestes a se aposentar. Segundo um parente de Chern, "Yau resolveu que seria o próximo matemático chinês famoso e que estava na hora de Chern sair de cena".

Harvard vinha tentando recrutar Yau e, quando ia fazer uma segunda oferta ao matemático em 1983, Phillip Griffiths contou ao reitor da faculdade um episódio de O Romance dos Três Reinos, um clássico chinês. No século III, um chefe guerreiro chinês sonhou em criar um império, mas o general mais brilhante da China estava trabalhando para um rival. Depois de duas tentativas mal-sucedidas, o chefe guerreiro foi ao reino do inimigo pela terceira vez em busca do general. Impressionado, o general concordou em unir-se a ele e juntos conseguiram fundar uma dinastia. Aceitando a dica, o reitor voou até Filadélfia, onde Yau morava na época, para lhe fazer uma oferta. Mesmo assim, Yau recusou o cargo. Finalmente, em 1987, concordou em ir para Harvard.

A garra empreendedora de Yau estendeu-se a colaborações com colegas e estudantes. Além de conduzir suas próprias pesquisas, começou a organizar seminários. Com freqüência, aliava-se a matemáticos brilhantes e inventivos, incluindo Richard Schoen e William Meeks. Mas Yau impressionou-se especialmente com Hamilton, tanto por sua ousadia como pela imaginação. "Consigo me divertir com Hamilton", Yau nos contou, durante a conferência da teoria das cordas em Pequim. "Posso ir nadar com ele, saio com ele e suas namoradas." Yau estava convencido de que Hamilton poderia usar a equação do fluxo de Ricci para solucionar as conjecturas de Poincaré e Thurston, e estimulou-o a se concentrar nesses problemas. "O encontro com Yau mudou sua vida matemática", um amigo dos dois matemáticos disse sobre Hamilton. "Foi a primeira vez que ele viu a perspectiva de algo realmente grande. Conversar com Yau deu-lhe coragem e rumo."

Yau acreditava que, se conseguisse ajudar a solucionar a conjectura de Poincaré, a vitória não seria só sua, mas também da China. Em meados da década de 90, Yau e vários outros cérebros chineses se reuniram com o presidente Jiang Zemin para discutir como reconstruir as instituições científicas do país, em grande parte destruídas durante a revolução cultural. As universidades chinesas estavam em péssimas condições. Segundo Steve Smale, professor em Hong Kong depois de se aposentar por Berkeley, a Universidade de Pequim tinha "salas que cheiravam a urina, só um salão comunitário e um único escritório para todos os professores auxiliares", e pagava ao corpo docente salários de fome.
Yau persuadiu um magnata dos imóveis de Hong Kong a ajudar a financiar um instituto de matemática na Academia de Ciências Chinesa, em Pequim, e a conceder uma medalha tipo a Fields para matemáticos chineses com menos de 40 anos. Nas viagens à China, Yau elogiou Hamilton, falando que ele era um modelo para os jovens matemáticos chineses. Como ele disse em Pequim: "Como vivem dizendo que o país inteiro deveria aprender com Mao ou alguns grandes heróis, fiz uma brincadeira, mas em parte falava sério: disse que o país inteiro deveria aprender com Hamilton".

Grigory Perelman já vinha aprendendo com Hamilton. Em 1993, iniciou uma bolsa de dois anos em Berkeley. Durante a permanência de Perelman, Hamilton deu várias palestras no campus e em uma delas mencionou que vinha trabalhando na conjectura de Poincaré. Sua estratégia do fluxo de Ricci era extremamente técnica e de difícil execução. Depois de uma de suas palestras em Berkeley, ele contou a Perelman sobre seu pior obstáculo. À medida que um espaço é aplainado sob o fluxo de Ricci, algumas regiões se distorcem, até formar o que os matemáticos denominam "singularidades". Algumas regiões, denominadas "gargalos", tornam-se áreas atenuadas, de densidade infinita. Mais preocupante para Hamilton era um tipo de singularidade que ele denominou "charuto". A preocupação de Hamilton era que, se charutos se formassem, poderia ser impossível obter uma geometria uniforme. Perelman percebeu que um artigo que ele escrevera sobre os espaços de Alexandrov poderia ajudar Hamilton a provar a conjectura de Thurston - e a de Poincaré - desde que fosse resolvido o problema do charuto. "A certa altura, perguntei a Hamilton se ele conhecia um resultado sobre o colapso que eu havia provado, mas não publicado - que acabou se mostrando bastante útil", Perelman contou. "Mais tarde, percebi que ele não entendeu do que eu estava falando." Dan Stroock, do MIT, observou: "Perelman pode ter aprendido coisas com Yau e Hamilton, mas na época esses não estavam aprendendo com ele".

No final de seu primeiro ano em Berkeley, Perelman escrevera diversos artigos, de uma originalidade impressionante. Foi convidado a dar uma palestra no congresso da IMU de 1994, em Zurique, e a se candidatar a cargos em Stanford, Princeton, no Instituto de Estudos Avançados e na Universidade de Tel Aviv. Assim como Yau, Perelman era um tremendo solucionador de problemas. Em vez de passar anos desenvolvendo uma estrutura teórica intricada, ou definindo novas áreas de pesquisa, concentrava-se na obtenção de resultados específicos. De acordo com Mikhail Gromov, um renomado geômetra russo que tem colaborado com Perelman, ele vinha tentando superar uma dificuldade técnica relacionada com os espaços de Alexandrov e, aparentemente, ficara aturdido.

Perelman contou-nos que gostava de atacar vários problemas ao mesmo tempo. Em Berkeley, porém, vivia retornando à equação do fluxo de Ricci e ao problema que Hamilton acreditava poder resolver com ela. Alguns amigos de Perelman notaram que ele vinha se tornando, cada vez mais, um asceta. Visitantes que iam ao seu apartamento em São Petersburgo se impressionavam com a falta de móveis. Para outros, ele parecia querer reduzir a vida a um conjunto de axiomas rígidos. Quando um membro de um comitê de contratação de Stanford pediu o seu currículo para incluir nos pedidos de cartas de recomendação, Perelman se recusou. "Se eles conhecem o meu trabalho, não precisam do currículo", ele disse. "Se precisam do currículo, não conhecem o meu trabalho."

Perelman acabou recebendo diversas ofertas de emprego. Mas recusou todas elas e, no verão de 1995, retornou ao antigo emprego no Instituto Steklov, em São Petersburgo, para ganhar menos de 100 dólares mensais. (Ele contou a um amigo que poupara dinheiro suficiente nos Estados Unidos para o resto da vida.) Seu pai se mudara para Israel dois anos antes e a irmã mais nova planejava juntar-se a ele depois de terminar a faculdade. Sua mãe, porém, decidira permanecer em São Petersburgo, e Perelman foi morar com ela. "Sinto que na Rússia produzo melhor", ele contou aos colegas do instituto.
Aos 29 anos, Perelman desfrutava de uma reputação sólida como matemático, embora não tivesse grandes responsabilidades profissionais. Estava livre para estudar os problemas que desejasse e sabia que teria a atenção de toda a comunidade matemática por qualquer trabalho que publicasse. Yakov Eliashberg, um matemático de Stanford que conheceu Perelman em Berkeley, acha que ele retornou à Rússia para se dedicar à conjectura de Poincaré. "Por que não?", Perelman respondeu, quando indagamos se o palpite de Eliashberg estava certo.

A internet permitiu a Perelman trabalhar sozinho, enquanto continuava consultando um acervo comum de conhecimentos. Ele pesquisou os artigos de Hamilton, em busca de pistas sobre seu pensamento, e deu vários seminários sobre seu trabalho. "Ele não precisava de ajuda alguma", Gromov comentou. "Ele gosta de ficar sozinho. Faz-me lembrar Newton - essa obsessão com uma idéia, o trabalho solitário, o desprezo pela opinião das outras pessoas. Newton era mais antipático. Perelman é mais gentil, mas muito obcecado."

Em 1995, Hamilton publicou um artigo em que discutiu algumas de suas idéias para obter uma prova da conjectura de Poincaré. Ao ler o artigo, Perelman percebeu que Hamilton não fizera qualquer progresso para superar seus obstáculos - os gargalos e charutos. "Não vi o menor sinal de progresso após o início de 1992", Perelman nos contou. "Talvez ele tenha empacado até antes." Perelman achou, porém, que tivesse encontrado uma forma de contornar o impasse. Em 1996, escreveu uma longa carta a Hamilton esboçando sua idéia, na esperança de colaborar. "Ele não respondeu", Perelman disse, "e decidi trabalhar sozinho."

Yau não tinha a menor idéia de que o trabalho de Hamilton sobre a conjectura de Poincaré chegara a um impasse. Ele estava cada vez mais ansioso com sua própria posição no mundo da matemática, particularmente na China, onde temia que algum acadêmico mais jovem pudesse suplantá-lo como o herdeiro de Chern. Mais de uma década decorrera desde que Yau provara seu último grande resultado, embora continuasse publicando prolificamente. "Yau quer ser o rei da geometria", observou Michael Anderson, geômetra da Universidade de Stony Brook. "Ele acredita que tudo deve emanar dele, que ele deve estar na supervisão. Ele não gosta que as pessoas invadam seu território." Determinado a conservar o controle sobre seu campo, Yau estimulou seus alunos a atacarem grandes problemas. Em Harvard, conduziu um seminário notoriamente difícil sobre geometria diferencial, que se reunia durante três horas seguidas, três vezes por semana. Cada aluno recebia uma prova recentemente publicada e a incumbência de reconstituí-la, corrigindo quaisquer erros e preenchendo as lacunas. Yau acreditava que um matemático tinha a obrigação de ser explícito, e convenceu seus alunos da importância do rigor em cada etapa do trabalho.

Existem duas maneiras de obter o reconhecimento por uma contribuição original em matemática. A primeira é produzir uma prova original. A segunda é identificar uma lacuna importante na prova de outro matemático e fornecer o bloco faltante. Somente lacunas matemáticas reais - argumentos faltantes ou errados - podem servir de base para se reivindicar a originalidade. Preencher lacunas na exposição - atalhos e abreviações usados para dar mais eficiência a uma prova - não conta. Quando, em 1993, Andrew Wiles revelou que uma lacuna havia sido encontrada em sua prova do último teorema de Fermat, o problema ficou em aberto para qualquer um, até que, no ano seguinte, Wiles corrigiu o erro. Em contrapartida, a maioria dos matemáticos concordaria que, ainda que passos implícitos de uma prova possam ser explicitados por um especialista, nesse caso houve uma lacuna de exposição e a prova pode ser considerada originalmente completa e correta.

Às vezes, pode ser difícil discernir a diferença entre uma lacuna matemática e uma na exposição. Em pelo menos uma ocasião, Yau e seus alunos parecem ter confundido as duas, reivindicando uma originalidade que outros matemáticos consideram injustificável. Em 1996, um jovem geômetra de Berkeley chamado Alexander Givental provou uma conjectura matemática sobre a simetria do espelho, um conceito fundamental para a teoria das cordas. Embora outros matemáticos achassem a prova de Givental difícil de acompanhar, estavam otimistas no sentido de que ele havia solucionado o problema. Nas palavras de um geômetra: "Ninguém na época reclamou que era incompleta e incorreta".

No outono de 1997, Kefeng Liu, um ex-aluno de Yau que lecionava em Stanford, deu uma palestra em Harvard sobre a simetria do espelho. De acordo com dois geômetras na platéia, Liu passou a apresentar uma prova muito semelhante à de Givental, dizendo constar de um artigo que ele escrevera com Yau e outro aluno dele. "Liu mencionou Givental, mas ele era apenas um nome em uma longa lista de pessoas que haviam contribuído para o campo", lembrou um dos geômetras. (Liu sustenta que sua prova foi bem diferente da de Givental.)

Mais ou menos na mesma época, Givental recebeu um e-mail assinado por Yau e seus colaboradores, explicando que haviam achado seus argumentos impossíveis de seguir e sua notação confusa, de modo que formularam uma prova nova. Elogiaram Givental por sua "idéia brilhante" e escreveram: "Na versão final de nosso artigo, sua importante contribuição será reconhecida".

Algumas semanas depois, o artigo "Princípio do Espelho I" apareceu no Asian Journal of Mathematics, do qual Yau é co-editor. Nele, Yau e seus co-autores descrevem seu resultado como "a primeira prova completa" da conjectura do espelho. Eles mencionaram o trabalho de Givental apenas de passagem e alegaram que a prova dele estava incompleta, mas sem identificar uma lacuna matemática específica.

Givental ficou abismado. "Eu queria saber qual era a objeção deles", disse. Em março de 1998, ele publicou um artigo que incluiu uma nota de rodapé de três páginas, na qual apontou uma série de semelhanças entre a prova de Yau e a sua. Vários meses depois, um jovem matemático da Universidade de Chicago, incumbido pelos colegas de investigar a controvérsia, concluiu que a prova de Givental era completa. Yau afirma que se dedicou à prova com seus alunos e obtiveram seu resultado independentemente de Givental. "Tivemos nossas próprias idéias e as redigimos", ele afirma.

Nessa época, Yau teve seu primeiro conflito sério com Chern e a comunidade matemática chinesa. Durante anos, Chern tentara atrair o congresso da IMU para Pequim. De acordo com vários matemáticos, Yau fez um esforço de última hora para que o congresso ocorresse em Hong Kong. Mas não conseguiu persuadir um número suficiente de colegas a aderir à proposta. A IMU acabou decidindo realizar o congresso de 2002 em Pequim. (Yau nega que tenha tentado atrair o congresso para Hong Kong.) Entre os delegados designados pela IMU para selecionar oradores para o congresso, estava o aluno mais bem-sucedido de Yau, Gang Tian, que estivera na Universidade de Nova York com Perelman e então lecionava no MIT. O comitê anfitrião em Pequim também pediu a Tian um discurso na sessão plenária.

Yau foi pego de surpresa. Em março de 2000, ele publicara um levantamento de pesquisas recentes em seu campo, repleto de referências entusiásticas a Tian e aos seus projetos conjuntos. Ele retaliou organizando sua primeira conferência sobre a teoria das cordas, aberta em Pequim alguns dias antes do início do congresso de matemática, no final de agosto de 2002. Ele persuadiu Stephen Hawking e vários premiados com o Nobel a comparecerem. Durante dias, os jornais chineses estiveram repletos de fotos de cientistas famosos. Yau conseguiu até uma audiência de seu grupo com o presidente Jiang Zemin. Um matemático que ajudou a organizar o congresso de matemática lembra que, ao longo da estrada entre Pequim e o aeroporto, viu cartazes com fotos de Stephen Hawking colados por toda parte.

Naquele verão, Yau não estava pensando muito na conjectura de Poincaré. Ele tinha confiança em Hamilton, apesar de seu ritmo lento. "Hamilton é um ótimo amigo", Yau contou-nos em Pequim. "Ele é mais que um amigo. É um herói. Ele é tão original. Estávamos tentando terminar nossa prova. Hamilton dedicou-se a ela durante 25 anos. O trabalho deixa a pessoa cansada. Ele deve ter ficado um pouco cansado - com vontade de descansar."

Até que, em 12 de novembro de 2002, Yau recebeu um e-mail de um matemático russo cujo nome lhe passou despercebido. "Gostaria de submeter à sua atenção meu artigo", o e-mail dizia.

Em 11 de novembro, Perelman havia postado um artigo de 39 páginas, intitulado "A Fórmula de Entropia para o Fluxo de Ricci e suas Aplicações Geométricas" no arXiv.org, um site usado por matemáticos para divulgarem preprints - artigos aguardando publicação em revistas especializadas. Ele enviou então por e-mail uma síntese de seu artigo para uma dúzia de matemáticos dos Estados Unidos - inclusive Hamilton, Tian e Yau -, nenhum dos quais tinha notícias dele havia anos. Na síntese, explicou que escrevera "um esboço de uma prova eclética" da conjectura da geometrização.

Perelman não mencionara a prova nem a mostrara a ninguém. "Eu não tinha quaisquer amigos com quem discutir aquilo", ele disse em São Petersburgo. "Não queria discutir meu trabalho com alguém em quem não confiasse." Andrew Wiles também mantivera em segredo o fato de estar trabalhando no último teorema de Fermat, mas havia pedido que um colega examinasse a prova antes de divulgá-la. Perelman, ao postar despreocupadamente na internet uma prova de um dos problemas mais famosos da matemática, além de desprezar a convenção acadêmica, corria grande risco. Se a prova fosse falha, seria publicamente humilhado e não haveria como impedir que outro matemático corrigisse eventuais erros e reivindicasse a vitória. Mas Perelman explicou que não estava particularmente preocupado. "Meu raciocínio foi: se cometesse um erro e alguém usasse meu trabalho para construir uma prova correta, eu ficaria satisfeito", ele disse. "Nunca pretendi ser o único solucionador da conjectura de Poincaré."

Gang Tian estava no seu escritório no MIT quando recebeu o e-mail de Perelman. Eles haviam sido amigos em 1992, quando ambos estavam na Universidade de Nova York e haviam assistido ao mesmo seminário semanal de matemática em Princeton. "Imediatamente percebi sua importância", disse Tian sobre o artigo de Perelman. Tian começou a ler o artigo e discuti-lo com os colegas, que se mostraram igualmente empolgados.

Em 19 de novembro, Vitali Kapovitch, um geômetra, enviou a Perelman um e-mail:
Oi Grisha, desculpe incomodá-lo, mas um monte de pessoas está me perguntando sobre seu preprint 'A Fórmula de Entropia para o Fluxo'. Será que entendi certo que, embora você ainda não consiga realizar todos os passos do programa de Hamilton, consegue fazer o suficiente de modo que, usando alguns resultados sobre o colapso, consegue provar a geometrização? Vitali.

A resposta de Perelman, no dia seguinte, foi sucinta: "Está certo, Grisha".

Na verdade, o que Perelman havia postado na internet foi apenas a primeira parte de sua prova. Mas foi suficiente para os matemáticos perceberem que ele havia descoberto como solucionar a conjectura de Poincaré. Barry Mazur, o matemático de Harvard, recorre à imagem de um pára-lama amassado para descrever a realização de Perelman: "Suponha que seu carro está com um pára-lama amassado e você liga para o mecânico para perguntar como desamassá-lo. O mecânico teria dificuldade em explicar pelo telefone. Você teria que levar o carro à oficina para ele examinar. Aí ele poderia dizer onde dar umas marteladas. O que Hamilton introduziu, e Perelman completou, é um procedimento independente das particularidades do amassado. Se você aplicar o fluxo de Ricci a um espaço tridimensional, começará a desamassá-lo e aplainá-lo. O mecânico sequer precisaria ver o carro - bastaria aplicar a equação".

Perelman provou que os "charutos" que preocuparam Hamilton não poderiam realmente ocorrer e mostrou que o problema do "gargalo" poderia ser solucionado por uma seqüência intricada de cirurgias matemáticas: recortar as singularidades e remendar as margens brutas. "Agora temos um procedimento para aplainar as coisas e, em pontos cruciais, controlar as rupturas", disse Mazur.

Tian escreveu a Perelman e pediu que desse uma palestra sobre seu artigo no MIT. Colegas de Princeton e Stony Brook enviaram convites semelhantes. Perelman aceitou todos eles e marcou um mês de palestras, em abril de 2003. "Por que não?", ele nos disse, com indiferença. Referindo-se aos matemáticos em geral, Fedor Nazarov, um matemático da Michigan State University, disse: "Depois de resolver um problema, você sente uma forte ânsia em falar a respeito".

Hamilton e Yau ficaram aturdidos com o anúncio de Perelman. "Achávamos que ninguém mais seria capaz de descobrir a solução", Yau contou-nos em Pequim. "Mas aí, em 2002, Perelman disse que publicou algo. Basicamente, ele seguiu um atalho sem todas as estimativas detalhadas que realizamos." Além disso, Yau reclamou, a prova de Perelman "foi escrita de forma tão confusa que não entendemos".

A viagem de conferências de abril de Perelman foi tratada pelos matemáticos e pela imprensa como um grande evento. Entre o público de sua palestra em Princeton estavam John Ball, Andrew Wiles, John Forbes Nash, Jr., que havia provado o teorema do encaixe riemanniano. Para espanto de muitos na platéia, Perelman não mencionou Poincaré. "Eis um sujeito que provou um teorema mundialmente famoso e sequer o mencionou", observou Frank Quinn, matemático da Virginia Tech. "Ele expôs alguns pontos-chave e propriedades especiais e, depois, respondeu às perguntas. Ele estava tentando ganhar credibilidade. Se tivesse batido no peito e declarado, 'Eu solucionei', teria gerado grande resistência." Ele acrescentou: "As pessoas estavam esperando uma figura estranha. Perelman era bem mais normal que esperavam".

Para o desapontamento de Perelman, Hamilton não compareceu à palestra nem às seguintes, em Stony Brook. "Sou um discípulo de Hamilton, embora não tenha recebido sua autorização", Perelman contou-nos. Mas John Morgan, da Universidade de Columbia, onde Hamilton agora lecionava, estava em Stony Brook e convidou Perelman a falar em Columbia. Perelman, na esperança de ver Hamilton, concordou. A palestra teve lugar na manhã de sábado. Hamilton apareceu atrasado e não fez pergunta alguma durante a longa sessão de discussão depois da palestra, nem no almoço subseqüente. "Tive a impressão de que ele havia lido somente a primeira parte de meu artigo", Perelman comentou.

Na edição da Science de 18 de abril de 2003, Yau publicou um artigo sobre a prova de Perelman: "Muitos especialistas, embora nem todos, parecem convencidos de que Perelman apagou os charutos e domou os gargalos estreitos. Mas estão menos confiantes de que ele consiga controlar o número de cirurgias. Isso poderia se mostrar uma falha fatal", Yau advertiu, observando que muitas outras tentativas de provar a conjectura de Poincaré tropeçaram em passos faltantes similares. "As provas devem ser tratadas com ceticismo até que os matemáticos tenham tido a oportunidade de examiná-las minuciosamente", Yau contou-nos. "Até então", ele disse, "não se trata de matemática - trata-se de religião."

Em meados de julho, Perelman havia postado as duas partes finais de sua prova na internet e matemáticos haviam começado o trabalho de explicação formal, reconstituindo minuciosamente seus passos. Nos Estados Unidos, pelo menos duas equipes de especialistas haviam se incumbido da tarefa: Gang Tian (rival de Yau) com John Morgan e um par de pesquisadores da Universidade de Michigan. Ambos os projetos foram patrocinados pelo Instituto Clay, que planejava publicar em livro o trabalho de Tian e Morgan. O livro, além de fornecer aos outros matemáticos um guia à lógica de Perelman, permitiria que este se candidatasse ao prêmio de 1 milhão de dólares do Instituto Clay pela solução da conjectura de Poincaré. (Para fazer jus, uma prova deve ser publicada em um veículo especializado e resistir a dois anos de escrutínio pela comunidade matemática.)

Em 10 de setembro de 2004, mais de um ano depois do retorno a São Petersburgo, Perelman recebeu um longo e-mail de Tian, que contou que acabara de participar de um seminário de duas semanas, em Princeton, dedicado à prova de Perelman. "Acho que entendemos o artigo todo", Tian escreveu. "Está OK."

Perelman não respondeu. Ele nos explicou: "Eu não estava muito preocupado. Esse era um problema famoso. Algumas pessoas precisavam de tempo para se acostumar ao fato de que ele não é mais uma conjectura. Decidi que o certo seria eu me afastar da verificação e não participar de todos aqueles encontros. É importante, para mim, não influenciar o processo".

Em julho daquele ano, a National Science Foundation concedera quase 1 milhão de dólares em subvenções para Yau, Hamilton e vários alunos de Yau estudarem e aplicarem a "revolução" de Perelman. Todo um ramo da matemática decorrera dos esforços em resolver a conjectura de Poincaré, e agora aquele ramo parecia em risco de se tornar obsoleto. Michael Freedman, vencedor de uma medalha Fields por provar a conjectura de Poincaré para a quarta dimensão, contou ao New York Times que a prova de Perelman era "uma pequena desgraça para esse ramo particular da topologia". Yuri Burago se queixou: "Ela mata o ramo. Depois de concluída, muitos matemáticos mudarão para outros ramos da matemática".

Cinco meses depois, Chern faleceu e os esforços de Yau para assegurar o reconhecimento como seu sucessor - e não Tian - tornaram-se frenéticos. "O que está em jogo é seu predomínio na China e sua liderança entre os chineses expatriados", esclareceu Joseph Kohn, um antigo chefe do departamento de matemática de Princeton. "Yau não sente ciúme da matemática de Tian, mas de seu poder lá na China."

Embora Yau jamais passasse mais que alguns meses seguidos na China continental desde a infância, estava convencido de que sua posição de único ganhador chinês da medalha Fields o habilitava a ser o sucessor de Chern. Em um discurso na Universidade de Zhejiang, em Hangzhou, durante o verão de 2004, Yau lembrou seus ouvintes de suas raízes chinesas. "Quando saí do avião, toquei no solo de Pequim e senti grande alegria por estar na minha terra natal", ele disse. "Orgulho-me de dizer que, ao receber a medalha Fields em matemática, não tinha passaporte de qualquer país, e deveria certamente ser considerado chinês."

No verão seguinte, Yau retornou à China e, numa série de entrevistas a repórteres chineses, atacou Tian e os matemáticos da Universidade de Pequim. Num artigo publicado em um jornal científico de Pequim, intitulado "Shing-Tung está combatendo a corrupção acadêmica na China", Yau acusou Tian de acumular várias cátedras ao mesmo tempo e de receber 125 mil dólares por alguns meses de trabalho numa universidade chinesa, enquanto os estudantes viviam com 100 dólares por mês. Ele também acusou Tian de ser um matemático fraco e um plagiador, e de coagir os alunos de pós-graduação a incluírem seu nome nos artigos deles. "Como eu promovi sua ascensão à fama acadêmica atual, também sou responsável por sua conduta imprópria", Yau teria dito a um repórter, explicando por que se sentia obrigado a pôr a boca no trombone.

Em outra entrevista, Yau descreveu como o comitê da medalha Fields havia ignorado Tian em 1988 e como ele havia defendido Tian perante vários comitês de premiação, inclusive um da National Science Foundation, que concedeu a Tian 500 mil dólares em 1994.

Tian ficou abismado com os ataques de Yau, mas sentiu que, como seu ex-aluno, não podia fazer muita coisa. "Suas acusações eram infundadas", Tian nos contou. Mas acrescentou: "Tenho raízes profundas na cultura chinesa. Um professor é um professor. Existe respeito. É muito difícil eu pensar numa reação".

Na China, Yau visitou Xiping Zhu, um pupilo seu, agora chefe do departamento de matemática da Universidade Sun Yat-sen. Em 2003, depois que Perelman completou sua viagem de palestras pelos Estados Unidos, Yau havia recrutado Zhu e outro estudioso, Huaidong Cao, professor da Universidade de Lehigh, para realizarem um esclarecimento da prova de Perelman. Zhu e Cao haviam estudado o fluxo de Ricci com Yau, que considerava Zhu, em particular, um matemático excepcionalmente promissor. "Temos de descobrir se o artigo de Perelman se sustenta", Yau lhes disse. Yau providenciou que Zhu passasse o ano acadêmico de 2005-06 em Harvard, onde este ministrou um seminário sobre a prova de Perelman e continuou trabalhando com Cao em seu artigo.

Em 13 de abril de 2006, os 33 matemáticos do conselho editorial do Asian Journal of Mathematics receberam um breve e-mail de Yau e do co-editor da revista, informando que teriam três dias para comentar um artigo de Xi-Ping Zhu e Huai-Dong intitulado "A Teoria de Hamilton-Perelman do Fluxo de Ricci: As Conjecturas de Poincaré e da Geometrização", que Yau pretendia publicar na revista. O e-mail não incluiu uma cópia do artigo, pareceres de peritos ou um resumo. Ao menos um membro do conselho pediu para ver o artigo, mas foi informado de que não estava disponível. Em 16 de abril, Cao recebeu uma mensagem de Yau informando que o artigo havia sido aceito pelo AJM e que um resumo fora postado no site da revista.

Um mês depois, Yau almoçou em Cambridge com Jim Carlson, presidente do Instituto Clay. Yau disse a Carlson que gostaria de trocar uma cópia do artigo de Zhu e Cao por outra do manuscrito do livro de Tian e Morgan. Yau contou-nos que temia que Tian tentasse roubar o trabalho de Zhu e Cao, e queria dar a ambas as partes acesso simultâneo ao que a outra havia escrito. "Almocei com Carlson para pedir a troca dos manuscritos, a fim de assegurar que ninguém conseguisse copiar do outro", Yau explicou. Carlson hesitou, explicando que o Instituto Clay ainda não recebera o manuscrito completo de Tian e Morgan.

No final da semana seguinte, o título do artigo de Zhu e Cao no site do AJM mudara para "Uma Prova Completa das Conjecturas de Poincaré e da Geometrização: Aplicação da Teoria de Hamilton-Perelman do Fluxo de Ricci". O resumo também havia sido revisado. Uma frase nova explicava: "Esta prova deve ser considerada o coroamento da teoria de Hamilton-Perelman do fluxo de Ricci".

O artigo de Zhu e Cao, de mais de 300 páginas, preencheu toda a edição de junho do AJM. A maior parte dele se dedica a reconstituir muitos dos resultados de Hamilton do fluxo de Ricci - incluindo aqueles de que Perelman lançara mão em sua prova - e grande parte da prova de Perelman da conjectura de Poincaré. Em sua introdução, Zhu e Cao creditam a Perelman ter "trazido idéias novas e estimulantes para se entenderem passos importantes na superação dos obstáculos principais remanescentes no programa de Hamilton". Entretanto, eles escrevem que foram obrigados a "substituir vários argumentos-chave de Perelman por abordagens novas baseadas em nosso estudo, porque não conseguimos compreender esses argumentos originais de Perelman essenciais à conclusão do programa de geometrização". Os matemáticos familiarizados com a prova de Perelman contestaram a idéia de que Zhu e Cao tivessem contribuído com abordagens novas significativas à conjectura de Poincaré. "Perelman já fez tudo, e o que fez estava completo e correto", disse John Morgan. "Não me parece que Zhu e Cao tenham realizado algo diferente."

Em 3 de junho, no seu instituto de matemática em Pequim, Yau concedeu uma entrevista coletiva à imprensa. O diretor em exercício do instituto, procurando elucidar as contribuições relativas dos diferentes matemáticos que haviam trabalhado na conjectura de Poincaré, afirmou: "Hamilton contribuiu com mais de 50%; o russo Perelman, com cerca de 25%; e os chineses Yau, Zhu e Cao etc., com cerca 30%" (Constate-se que uma simples soma às vezes consegue derrubar até um matemático.) Yau acrescentou: "Dada a importância da conjectura de Poincaré, o fato de matemáticos chineses terem desempenhado um papel de 30% não é trivial. É uma contribuição importantíssima".

Em 12 de junho, na semana anterior ao início da conferência de Yau sobre a teoria das cordas em Pequim, o South China Morning Post informou: "Matemáticos da China continental que ajudaram a decifrar um 'problema matemático do milênio' apresentarão a metodologia e as descobertas ao físico Stephen Hawking. [...] Shing-Tung Yau, que organizou a visita do professor Hawking e também é professor de Cao, declarou ontem que apresentaria as descobertas ao professor Hawking por acreditar que as informações ajudariam em sua pesquisa sobre a formação dos buracos negros".

Na manhã de sua palestra em Pequim, Yau contou-nos: "Queremos que nossa contribuição seja entendida. E isso também é uma estratégia para encorajar Zhu, que está na China e realizou um trabalho realmente espetacular. Quer dizer, um trabalho importante sobre um problema centenário, que provavelmente terá mais alguns séculos de implicações. Se você pode associar seu próprio nome de alguma forma, é uma contribuição".

E. T. Bell, autor de Men of Mathematics, uma história brilhante da disciplina, publicada em 1937, certa vez lamentou "as escaramuças em torno da prioridade que desfiguram a história científica". No período anterior a e-mails, blogs e sites, certo decoro costumava prevalecer. Em 1881, Poincaré, então na Universidade de Caen, teve uma altercação com um matemático alemão de Leipzig, chamado Felix Klein. Poincaré havia publicado vários artigos em que rotulara certas funções de "fuchsianas", em homenagem a outro matemático. Klein escreveu a Poincaré observando que ele e outros também tinham realizado trabalhos importantes naquelas funções. Uma troca de cartas polidas entre Leipzig e Caen veio em seguida. A última palavra de Poincaré sobre o assunto foi uma citação do Fausto, de Goethe: "Name ist Schall und Rauch" - que, numa tradução livre, corresponde à pergunta de Shakespeare: "O que há num nome?"

Isso, em essência, é o que os amigos de Yau estão indagando. "Estou ficando aborrecido com Yau porque parece que ele sente necessidade de mais glória", confessou Dan Stroock, do MIT. "Ele é um sujeito que realizou coisas magníficas, pelas quais foi magnificamente recompensado. Ele ganhou todos os prêmios possíveis. Acho um pouco mesquinho de sua parte que pareça estar tentando conseguir uma participação nisso também." Stroock observou que, 25 anos atrás, Yau esteve numa situação bem semelhante à de Perelman hoje. Seu resultado mais famoso, sobre as variedades de Calabi-Yau, foi importantíssimo para a física teórica. "Calabi delineou um programa", disse Stroock. "Num sentido real, Yau foi o Perelman de Calabi. Agora, ele está do outro lado. Ele não teve o menor escrúpulo em ficar com a parte do crédito pelas variedades de Calabi-Yau. E agora parece ressentido com Perelman por ficar com o crédito pela conclusão do programa de Hamilton. Não sei se a analogia chegou a ocorrer a ele."

A matemática, mais que muitos outros campos, depende de colaboração. A maioria dos problemas requer os insights de diversos matemáticos para ser resolvida, e a comunidade matemática desenvolveu um padrão de reconhecimento de contribuições individuais tão rigoroso quanto as regras que governam a própria matemática. Nas palavras de Perelman: "Se todos são honestos, é natural compartilhar idéias". Muitos matemáticos vêem a conduta de Yau com relação à conjectura de Poincaré como uma violação dessa ética básica e se preocupam com o dano que ela causou ao grupo profissional. "Política, poder e controle não têm papel legítimo algum em nossa comunidade e ameaçam a integridade de nosso campo", disse Phillip Griffiths.

Perelman gosta de assistir aos espetáculos de ópera do Teatro Mariinsky, em São Petersburgo. Sentado no alto da galeria, não consegue discernir as expressões dos cantores ou ver os detalhes de seus figurinos. Para ele, importa apenas o som de suas vozes, e ele acha a acústica onde se senta melhor do que em qualquer outro lugar no teatro. Perelman vê a comunidade da matemática - e grande parte do mundo mais amplo - a uma distância semelhante.

Antes de chegarmos em São Petersburgo, havíamos enviado várias mensagens ao seu e-mail do Instituto Steklov, na esperança de marcar um encontro, mas ele não respondeu. Pegamos um táxi até seu prédio e, relutantes em invadir sua privacidade, deixamos um livro - uma coletânea de artigos de John Nash Jr. - em sua caixa do correio, junto com um cartão dizendo que estaríamos sentados num banco da pracinha ao lado, na tarde seguinte. No dia seguinte, depois que Perelman não apareceu, deixamos-lhe uma caixa de chá de Taiwan e um bilhete descrevendo algumas questões que gostaríamos de discutir com ele. Repetimos o ritual uma terceira vez. Finalmente, acreditando que Perelman estivesse ausente da cidade, apertamos a campainha de seu apartamento, esperando falar ao menos com sua mãe. Uma mulher atendeu e deixou-nos entrar. Perelman recebeu-nos no corredor mal iluminado do apartamento. Descobrimos que havia meses ele não acessava o e-mail do instituto e não olhara a caixa do correio naquela semana. Não tinha a menor idéia de quem éramos.

Marcamos um encontro às 10 horas da manhã seguinte na Perspectiva Nevski, a principal artéria da cidade. Dali, Perelman, que vestia uma jaqueta esporte e mocassim, levou-nos por uma caminhada de quatro horas pela cidade, comentando cada prédio e vista. Depois, fomos a uma competição vocal no Conservatório de São Petersburgo, que durou cinco horas. Perelman repetiu várias vezes que havia se afastado da comunidade matemática e não se considerava mais um matemático profissional.
Ele mencionou uma discussão, que tivera anos antes com um colaborador, sobre como reconhecer o autor de uma prova específica, e confessou-se desanimado com a falta de ética da disciplina. "Não são as pessoas que rompem os padrões éticos as que são consideradas estranhas", ele observou. "São as pessoas como eu que estão isoladas." Perguntamos se ele havia lido o artigo de Zhu e Cao. "Não está claro para mim que contribuição nova eles deram", ele respondeu. "Aparentemente, Zhu não entendeu totalmente o argumento e reformulou-o." Quanto a Yau, Perelman disse: "Não posso dizer que esteja indignado. Outras pessoas fazem pior. Claro que existem muitos matemáticos mais ou menos honestos. Mas quase todos são conformistas. Eles são mais ou menos honestos, mas toleram aqueles que não são honestos".

A perspectiva de receber a medalha Fields o forçara a romper totalmente com seu grupo profissional. "Enquanto eu não era visível, tinha uma escolha", Perelman explicou. "Fazer alguma coisa bem desagradável" - um auê pela falta de integridade da comunidade matemática - "ou, se não fizesse esse tipo de coisa, ser tratado como uma pessoa boazinha. Ora, ao me tornar uma pessoa bem visível, não posso permanecer bonzinho e não dizer nada. Por isso tive de sair." Perguntamos a Perelman se, ao recusar a medalha Fields e se afastar da profissão, estava eliminando qualquer possibilidade de influenciar a disciplina. "Não sou um político!", ele respondeu, contrariado. Perelman confirmou o que disse ao não comparecer, em agosto do ano passado, à cerimônia de entrega do prêmio, em Madrid. Perelman não quis dizer se sua objeção às recompensas se estendia ao prêmio de 1 milhão de dólares do Instituto Clay. "Só vou decidir se aceitarei o prêmio depois que ele for oferecido", respondeu
Mikhail Gromov, o geômetra russo, declarou que entendia a lógica de Perelman. "Realizar um grande trabalho requer uma mente pura. Você só pode pensar em matemática. Todo o resto é fraqueza humana. Aceitar prêmios é mostrar fraqueza." Segundo Gromov, outras pessoas poderiam achar arrogante a recusa de Perelman em aceitar a medalha Fields, mas seus princípios são admiráveis. "O cientista ideal faz ciência e nada mais importa para ele", explicou Gromov. "Ele quer viver seu ideal. Ora, não acho que ele viva realmente nesse plano ideal. Mas gostaria."

Artigo originalmente publicado na revista New Yorker


10 de julho de 2015
Sylvia Nasar e David Gruber