sexta-feira, 19 de junho de 2015

MORAR NA RUA EM IPANEMA



Quem são os mendigos de um dos bairros mais ricos do Brasil e o que o poder público faz com eles



Pouco antes das quatro horas de uma madrugada recente, um comboio de seis veículos encostou junto à calçada da rua Visconde de Pirajá, a mais movimentada de Ipanema, no Rio de Janeiro. A picape prata da subprefeitura da Zona Sul era seguida por um carro da Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social, uma viatura da Guarda Municipal, outra da Polícia Militar, um ônibus da prefeitura e um caminhão da companhia municipal de lixo.

Um homem de óculos, na faixa dos 50 anos, vestido de camisa polo e calça jeans, bateu a porta da picape com força e, seguido por quatro seguranças musculosos, andou em direção à entrada de uma loja. Embaixo de uma marquise, três homens dormiam. Enrolados em panos velhos, usavam papelão encardido como colchão e sacolas de plástico como travesseiro. Em volta, havia garrafas pet vazias e jornais. O grupo recendia a suor, álcool, urina.

"Bom dia", disse o homem da picape, "os senhores queiram se conduzir ao ônibus para nós os levarmos ao abrigo." Um dos maltrapilhos, o que havia coberto a cabeça com a camiseta, colocou parte do rosto para fora, esforçando-se para entender o que se passava. Resignados, os mendigos começaram a se movimentar em câmera lenta. Trôpegos de sono, ou pelo evidente consumo de bebida na véspera, abaixaram-se para catar alguma coisa e caminharam em direção ao ônibus vazio.

Mal levantaram, dois garis entraram em cena como um furacão. Em menos de cinco minutos, sumiram com as sacolas, um carrinho de feira, os restos de papelão, os jornais e as garrafas de plástico. Tudo foi jogado dentro da caçamba do caminhão. Para os garis, era lixo. Para os mendigos, tudo o que tinham na vida.

"Antes, fazíamos a ronda às sete da manhã, mas dava tempo da pessoa correr, causar tumulto", explicou dias depois o cérebro da limpeza, Bruno Ramos, um advogado de 31 anos, de camisa e cabelos engomados. "Agora é só na madrugada. Quando todo mundo está dormindo é mais fácil." Subprefeito da Zona Sul, Bruno Ramos tem o apelido de "Eduardinho" devido à sua relação simbiótica com o prefeito Eduardo Paes, de quem é amigo há mais de dez anos.

Há um ano e meio, a retirada de mendigos da rua passou a integrar o Choque de Ordem, a bandeira da gestão de Eduardo Paes. A tolerância zero da prefeitura carioca se estende a cachorros e futebol nas praias, aos ônibus fora da faixa destinada a eles, aos camelôs e carros nas calçadas, e aos caminhões em determinadas vias e horários. Nada disso deu certo: basta os poucos fiscais se ausentarem (com ou sem motivos pecuniários) e cachorros, bolas, ônibus, camelôs, carros e caminhões voltam tranquilamente aos locais proibidos.

Com uma população de 50 mil moradores, Ipanema abriga os prédios mais caros da América Latina. Um apartamento na Vieira Souto, a avenida da praia, já foi vendido a 24 mil reais o metro quadrado. O condomínio chegava a 8 mil reais. O bairro é o único do Rio onde o comércio de luxo subsiste em lojas de rua - nos outros, foi confinado a centros comerciais.

Ipanema era uma vila de pescadores até o começo do século xx, quando um acordo entre a companhia de transporte e o governo expandiu a linha de bondes até a divisa com Copacabana. Em 1920, além das choupanas dos pescadores, havia menos de cinquenta construções na beira-mar. Na virada dos anos 50 para os 60, veio a fama nacional e internacional, embalada pela canção composta por Tom Jobim e Vinicius de Moraes e gravada por Frank Sinatra. Durante a ditadura, virou sinônimo da resistência artístico-boêmia, encarnada pelo semanário O Pasquim.

Veio então a especulação imobiliária, que destruiu a maioria das casas e permitiu a construção das torres de apartamentos e escritórios. Ipanema, junto com o Leblon, ficou sendo apenas um bairro da classe média alta e dos ricos. Mas manteve algo do glamour, da condição de centro de irradiação de modas e tendências, o que não aconteceu com Copacabana.

O bairro tem pobres espalhados por calçadas, marquises, bancos de praças e parques. Durante um passeio de dez minutos pelas ruas mais movimentadas, sempre se cruza com uma meia dúzia de mendigos. Um deles é o sergipano José Augusto Soares. Ele dormia nas imediações da praça Nossa Senhora da Paz quando o Choque de Ordem levou-lhe o carrinho de feira com todos os pertences: mudas de roupa, documentos, dentadura e algumas latinhas que catara no dia anterior.

Uma semana depois da expropriação, enquanto almoçava uma quentinha dada por uma ipanemense, Soares contabilizou o que lhe havia restado: "Essas havaianas, essa camiseta preta, esse moletom verde e essa bermuda xadrez: só sobrou a roupa que eu estava usando."

Soares chegou ao Rio nos anos 70, incitado por um primo que falara maravilhas sobre oportunidades de emprego na construção da Barragem de Saracuruna, em Duque de Caxias. A aposta deu certo. Ao final da obra, trabalhou como pedreiro no porto, na Fiocruz e em presídios de Bangu. Entre uma coisa e outra, namorou, casou, teve um filho e comprou uma casa.

Houve a crise da dívida externa, a recessão, a inflação. As vagas na construção civil escassearam e Soares ficou desempregado. "Aí, já viu: eu com a mulher o dia inteiro em casa, sem ganhar dinheiro, não podia dar boa coisa", contou Soares. Uma briga mais violenta acabou com o casamento. "Fui embora levando só o carrinho de feira, com umas poucas coisas", disse-me com os olhos marejados.

Passava o dia na rua. Recolhia latinhas em lixeiras de lanchonetes para ganhar algum dinheiro com a venda do alumínio. Morava em um albergue na Lapa, onde pagava 17 reais por noite. Não era uma vida fácil, mas piorou. "Logo o lugar fechou e fiquei na rua da amargura", contou, agora em lágrimas. Dobrou cuidadosamente a quentinha e guardou metade da comida para a próxima refeição.

A economia melhorou. A vida de Soares não. Nunca mais viu a família nem arrumou emprego. Ainda não se acostumou com a situação. Não tem coragem de abordar transeuntes e pedir esmola. "Ganho algum vendendo o que consigo catar, ou o que me dão", falou.

Ainda que todos sejam pobres, cada um tem um motivo específico para viver da mão para a boca em Ipanema. Há jovens que cresceram fora de casa ou que fugiram da agressão dos pais. Moradores de favelas expulsos por traficantes. Alcoólatras e doentes mentais abandonados pela família. Retirantes que não conseguiram reorganizar a vida. Bandidos ocasionais e pedintes profissionais.

Há também os que têm emprego, mas moram tão longe do trabalho que dormem algumas noites na rua, para economizar o dinheiro do ônibus e do trem. Há aqueles que só dormem por lá na sexta-feira e no sábado, quando Ipanema se enche de turistas e é mais fácil receber restos de comida e trocados. A proximidade da praia é outro atrativo: a orla conta com serviços gratuitos ou baratos, como duchas e banheiros nos postos de salva-vidas.

Em 2004, houve a primeira tentativa de se contar o número de pobres que vive ao relento. O Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome encaminhou questionários a 76 cidades com mais de 300 mil habitantes. Das 53 que responderam, 22 informaram ser impossível precisar o tamanho do problema. O Rio foi uma delas.

A estimativa carioca foi feita há dois anos. Um censo da Secretaria de Assistência Social contabilizou 4 800 moradores de rua na capital. Desse total, 2 800 estavam abrigados. Os outros vagavam perpetuamente. O município mantém quarenta albergues, com 2 885 vagas no total. O descompasso entre demanda e oferta é evidente. E pode ser bem maior porque ninguém garante que os números estejam corretos.

"No final da pesquisa, eu ainda via funcionários discutindo se pessoas que só morassem temporariamente na rua ou crianças deveriam ser incluídas na contagem, ou seja, a metodologia não estava clara", explicou o assistente social Marcelo Jaccoud da Costa, que participou do levantamento. Segundo ele, nos primeiros levantamentos ficaram fora da contagem bairros enormes, como a Barra da Tijuca, o Recreio dos Bandeirantes e toda a Ilha do Governador.

José Antonio Pereira Bastos empurra todos os dias um carrinho de compras abarrotado de papelão em Ipanema. O Choque de Ordem também o pegou. Enquanto dormia, os homens da prefeitura jogaram num caminhão a sucata que acumulara em semanas de peregrinação pelo bairro. "Tinha uns 800 reais ali", disse.

Bastos tem 60 anos. Há 45 alterna temporadas no Rio e em Pirapetinga, no interior de Minas Gerais, onde moram sua mulher e as filhas. Quando o emprego míngua na roça, ele vem para o Rio e se hospeda na casa de um cunhado, na favela do Cantagalo. "Só volto depois de juntar um dinheiro bom", afirmou.

Latas, papelão, plástico, madeira e esquadrias são sua fonte de receita. Vende o material num depósito na Cruzada São Sebastião, um conjunto habitacional mal cuidado na divisa do Leblon e Ipanema. Perdeu a conta de quantas vezes foi levado para albergues. "Eu não sou mendigo", disse. "Pode ser que os homens da prefeitura me peguem porque ando maltrapilho, mas ninguém vai pôr a melhor roupa pra carregar sucata."

No começo do mandato de Eduardo Paes, Bastos era conduzido para o albergue da Praça da Bandeira. Nos últimos meses, passou a ser levado para a Ilha do Governador. "Quando estou muito cansado, nem pego ônibus para voltar para Ipanema, pego táxi mesmo. Com eles não tem conversa. Por isso agora ando sempre com 50 reais no bolso", disse, coçando a barba com suas unhas compridas. "Eles dizem que vêm limpar a rua, mas quem limpa a rua mesmo sou eu."

A Praça da Bandeira fica na interseção viária entre as Zonas Norte, Sul, Oeste e Niterói. Com grande movimento de pedestres e carros, é um lugar sujo, que inunda infalivelmente quando chove mais de meia hora. Ali, num prédio de quatro andares e sem elevador, funcionava o centro de triagem da prefeitura. Estava sempre lotado. Na ala feminina, só as grávidas, as idosas e as com problemas psiquiátricos tinham uma cama garantida. Numa noite, em uma operação com três ônibus, o Choque de Ordem recolheu 130 mendigos em Copacabana. Não havia cama para nenhum deles no albergue da Praça da Bandeira.

Quando isso acontecia, os indigentes se amontoavam na porta do prédio, buscavam algum lugar para dormir pelas redondezas ou iam embora antes mesmo do atendimento. Segundo estatísticas da Secretaria de Assistência Social, 95% dos mendigos levados para o centro de triagem da Praça da Bandeira voltavam para as ruas.

Conversei com um ex-funcionário do abrigo, que pediu para não ser identificado. Ele disse se lembrar do dia em que agentes da prefeitura entraram no prédio dizendo que deveria ser esvaziado imediatamente. "Achei que era um incêndio", contou. Mais tarde, ele soube que a ordem de fechamento partira do próprio Eduardo Paes, que teria passado pela frente do prédio e ficara chocado com a quantidade de mendigos do lado de fora. "No dia seguinte, o Choque de Ordem já levava as pessoas para o abrigo Stella Maris, na Ilha do Governador", disse o servidor.

O Stella Maris fica perto do aeroporto do Galeão, a 24 quilômetros de Ipanema. O prédio está a uma quadra da subida do Morro do Barbante, há anos controlado por milícias, numa área com pouco trânsito de pessoas e carros.

Eram quase duas da tarde quando Gustavo Villas-Boas contou as moedas no bolso e resolveu comer alguma coisa antes de voltar para a porta do banco. A lanchonete mais próxima era o kfc, mas ele torceu o nariz: detesta frango. Andou mais uma quadra e chegou ao McDonald's.

Ao entrar na fila, percebeu que os demais clientes o encaravam com insistência. Fez de conta que não era com ele. Ao chegar sua vez, pediu a "promoção número 1 para viagem", pela qual pagou 13 reais. "Vou levar isso para minha mulher, para ver se ela melhora de cara", disse-me Villas-Boas. "Ela falou que eu estava fedendo, mas ontem mesmo tomei banho."

Villas-Boas é muito magro, tem a pele tomada por escaras, vários hematomas ao longo das pernas e, de fato, seu mau cheiro era percebido de longe. Ele disse ter 16 anos, mas levando em consideração datas e situações que menciona, é provável que tenha mais. Falou que foi expulso de casa pelo padrasto aos 5 anos e desde então passou a morar na rua.

Desde os 12 anos, vive com a mulher, Patrícia, com quem tem um filho de 3 anos. Ela está grávida novamente. Villas-Boas a conheceu depois que "um gringo muito bacana" lhe deu de presente 350 reais. "Eu ficava olhando para ela na praia e, quando peguei o dinheiro, fomos ao McDonald's. Gastamos tudo. Aí ela viu que eu era legal e foi morar comigo."

Quando o entrevistei, eles haviam brigado e Patrícia pedia esmola na praça General Osório, a poucas quadras dali. O ponto do casal é a porta do banco Itaú, na rua Visconde de Pirajá. É onde Villas-Boas pode ser encontrado de segunda a segunda, com a palma da mão direita virada para cima, pronunciando as mesmas frases: "Senhora, me dá uma ajuda?", "Moço, me paga um lanche?" e "Tem um trocado?"

A escolha do banco não é estratégica. "É só um ponto, não fico achando que vão me dar o dinheiro que eles pegaram lá", disse. Para ele, os dias, meses e anos na rua são quase indistinguíveis. "Eu sei que o tempo está passando quando o banco coloca enfeites de Natal na calçada", disse. "Aí, já é dezembro. Quando é Páscoa, tem coelho por todo o lado", explicou.

"Dar esmolas: uma droga que vicia e rouba o futuro", dizia uma faixa que ficou pendurada durante meses na praça Nossa Senhora da Paz. Ela foi posta lá pelo Projeto de Segurança de Ipanema, formado por moradores do bairro. O grupo se reúne uma vez por mês para discutir o que fazer com a segurança, a ordem, camelôs, barraqueiros de praia e, principalmente, mendigos.

Quinze pessoas participaram da reunião do Projeto de Segurança de Ipanema que acompanhei, numa sala do campus ipanemense da Universidade Candido Mendes. A primeira a falar foi uma senhora de vestido estampado e sandálias, aparentando uns 70 anos, que se apresentou como advogada. "Eu boto muita fé nesse prefeito, porque ele vai tirar os mendigos daqui. É impossível isso, com o iptu que a gente paga", disse.

Apesar de seus companheiros não lhe darem muita atenção, a senhora continuou: "Uma vez, um moleque veio me roubar. Eu prendi o braço dele com o vidro do carro, e o arrastei por dois quarteirões. Eles dizem que são 'de menor', mas eu sou idosa, já posso revidar."

Ninguém disse nada, e ela continuou: "Mendigos, ladrões, são todos uns delinquentes... tem que matar! Vai pôr na cadeia para eles ficarem pondo fogo nos colchões?" A coordenadora do grupo, Ignez Barreto, uma senhora de cabelo preto e liso, vestida com elegância, interveio: "O.k., o.k., vamos focar no primeiro item da pauta que é o policiamento no bairro", disse.

Ignez Barreto explicou depois, num café de Ipanema, como o grupo nasceu. "Quando os traficantes da Rocinha fecharam a Escola Parque por vários dias, minha filha, que tinha só 15 anos, se mobilizou completamente, alugou até carro de som", lembrou. "Pensei então: 'E eu fico aqui, dentro de casa, reclamando?'"

Ela aderiu ao movimento Basta!, depois integrou um grupo em Santa Teresa para combater a desordem no local, e finalmente criou um grupo semelhante em Ipanema. Esperar que o poder público resolva os problemas do bairro, segundo ela, é esperar em vão. "Nosso governo é mais do que paternalista, é demagógico", afirmou.

Também disse que Ipanema melhoraria se o Projeto conseguisse convencer os moradores a parar de dar comida aos pedintes. O subprefeito da Zona Sul, Bruno Ramos, também crê que conscientizar os ipanemenses é uma das tarefas mais difíceis no combate à mendicância diuturna. "Quando você dá comida para quem está no meio da rua, você traz um monte de vetor: rato, pombo, bandido camuflado no meio", explicou.

Sentada na calçada em frente a uma agência do Banco do Brasil, Fátima Aguiar da Silva cheirava a sabonete. Apesar das roupas puídas e da aparência descuidada, ela se apressou para esclarecer a vaidade. "Eu carrego tudo nessa mochilinha", disse, abrindo uma bolsa de viagem para mostrar artigos de perfumaria e duas mudas de roupa.

Fátima tem 49 anos. Mora em Duque de Caxias, na Baixada, com outras doze pessoas, entre filhos e netos. De segunda a quinta-feira, fica em casa. No fim de semana, muda para as ruas de Ipanema. "Num dia bom de verão, dá para tirar 80 reais", contou.

Durante toda a vida, trabalhou apenas uma vez, lavando roupa para fora. Achou que o dinheiro não compensava. Com o que ganha de esmola, sustenta a família e ainda paga uma senhora para cuidar dos netos pequenos. "Sei que ganharia mais se andasse com criança no colo", disse. "Mas, como já vi muitas mães perderem o filho para o Juizado de Menores por causa disso, não me arrisco, não."

Fátima costuma tomar banho nos Postos 8 ou 9 da praia, onde se cobra 1 real pela chuveirada. Quando o tempo está bom, dorme sob os coqueiros. Como ocorreu com todos os entrevistados que moravam na rua, ao final da entrevista ela pediu dinheiro.

Segundo Bruno Ramos, o roteiro das operações de retirada dos pobres da rua é em boa parte definido a partir de reclamações de moradores, que entram em contato com a ouvidoria por telefone ou e-mail. A ouvidoria, no entanto, enviou-me uma nota oficial informando que, entre dezembro de 2009 e abril de 2010, recebeu "cerca de 33 reclamações sobre moradores de rua", o que equivale a menos de 6% das queixas no período.

Às vezes, as reclamações vão direto para o endereço eletrônico do prefeito Eduardo Paes. Seis meses depois de sua posse, ele recebeu um e-mail iracundo da Associação de Moradores do Leblon, bairro que faz fronteira com Ipanema e onde mora o governador Sérgio Cabral. Ela reclamava que, quase 200 dias depois de o prefeito tomar posse, as calçadas ainda estavam cheias de mendigos.

É o caso da praça Antero de Quental. Ali, é possível ver mendigos defecando entre arbustos, à luz do dia, ao lado de crianças brincando e idosos que jogam dominó. À noite, sem constrangimento, fazem amor no chão e nos bancos da praça.

Eduardo Paes encaminhou a mensagem ao titular e a vários funcionários da Secretaria Municipal de Assistência Social, com uma ameaça: se a situação não melhorasse, outro órgão assumiria as operações de rua. O assistente social Marcelo Jaccoud da Costa, que abordava os mendigos para convidá-los a entrar nos ônibus, foi informado do desígnio do prefeito.

"Não tenho dúvidas de que a estratégia do Choque de Ordem vai funcionar", Marcelo Jaccoud me disse, meses depois. "Afinal, 300 pessoas que estavam na Nossa Senhora de Copacabana estão agora escondidas na Ilha do Governador. Mas a questão é: estamos fazendo isso tudo para quem? Para a pessoa que está na calçada ou para quem mora no prédio em frente à calçada? Na lógica da assistência social, quem deveria ser o foco principal do trabalho é o morador de rua."

Nilo Alves de Oliveira é visto no coreto da praça Nossa Senhora da Paz há 33 anos. Vítima de paralisia infantil, ele se locomove em um skate, o que lhe valeu no bairro o apelido de "skeitinho". "Olha só, que pantera!", disse ele, numa tarde recente, enquanto acompanhava com a cabeça uma loira que usava uma calça tão justa que se poderia jurar que havia nascido dentro dela.

Aos 50 anos, vestindo apenas bermuda, Nilo Oliveira deixava à mostra os braços desproporcionalmente fortes em relação ao corpo. Em um deles, exibe uma tatuagem da caveira da morte, de capa preta e cajado. "Aqui tem que andar reto, certo e correto para nunca sofrer reflexo", disse ele, mal-humorado. Encadeou outra frase desconexa e uma risada sarcástica. Quando uma flanelinha se aproximou, perguntei se a mulher incomodava os moradores da praça. "Ela não é doida: se fizer isso, morre", disse.

A seu lado, um mendigo que arrastava a perna e parecia estar há dias sem tomar banho falou que Oliveira tinha uma "mansão" no bairro da Mangueira. "Eu tenho um barraco", esclareceu Oliveira. "Quando estou a fim, vou para lá, mas em geral durmo aqui."

Um garoto de bicicleta passou e ergueu o polegar em sinal de positivo. "É foguete do pessoal do movimento", disse. O seu companheiro serviu de tradutor: "É o cara que passa os bagulhos das favelas para os playboys daqui."

Oliveira foi levado inúmeras vezes para albergues. E sempre voltou para Ipanema: "A gente chega lá, não tem vaga. Eles só anotam o nome, dão café, biscoito, e eu pego o ônibus de volta." Em sua opinião, as operações não vão durar muito tempo. "Estão querendo fazer com o Rio o que não pode", comentou.

Durante dezessete anos, o Stella Maris, na Ilha do Governador, funcionou como um abrigo de família, destinado apenas a pais e filhos. Depois que os alvos do Choque de Ordem passaram a ser levados para lá, as famílias foram transferidas e sua capacidade aumentou. Além dos quarenta leitos, um auditório foi adaptado para comportar mais quarenta beliches. A prefeitura comprou dezenas de colchonetes e os espalhou pelos corredores e pelo gramado do abrigo. Mas continua contando com apenas dois banheiros, lavados duas vezes ao dia.

"Ainda estamos ajustando tudo porque tivemos que trocar o pneu com o carro andando", disse o secretário de Assistência Social, Fernando William, em seu gabinete no centro da cidade. "Na Ilha, a evasão é de 10%, o inverso da Praça da Bandeira. E não tem nada a ver com o fato de ser mais longe", disse.

No ano passado, pelas cifras da prefeitura, houve 7 600 encaminhamentos para abrigos. O número faz supor que uma mesma pessoa possa ter sido levada quatro ou cinco vezes. A maioria dos mendigos voltou às ruas depois de um banho e uma refeição. "Há casos aqui de a gente acolher o mesmo cara dez, doze vezes", reconheceu o subprefeito Bruno Ramos. "Nossa ideia é vencer pelo cansaço, fazê-lo desistir. O cara tem que voltar para a casa, para a sua cidade, procurar uma alternativa de trabalho." Manter os pedintes nos albergues é inviável: "Não existe amparo legal para manter uma pessoa em cárcere privado."

A prefeitura admite a precariedade dos abrigos. Por isso, anunciou um gasto de 26 milhões de reais para a criação de 500 novas vagas e de melhorias nos locais já existentes. O plano é construir mais dois, um em Paciência, com 250 vagas, e outro em Bonsucesso, com 150. Em ambos, a prefeitura promete criar cursos profissionalizantes.

"São espaços muito interessantes, onde funcionam creches, cursos técnicos de altíssimo nível, com área para esporte, saúde; dá para fazer, digamos assim, um abrigo vip", disse o secretário Fernando William. "Esse tipo de alternativa vai ser um incentivo para que eles permaneçam no local."

Segundo a Secretaria Municipal de Assistência Social, 70% das pessoas que moram nas ruas têm alguma atividade profissional. São catadores de lixo, guardadores de carros, vendedores de sucata ou pedreiros. Um exame nos registros de triagem dos abrigos, no entanto, mostra que aqueles que optam por morar nos albergues não querem trabalhar.

O assistente social Jaccoud da Costa tirou duas conclusões dessa informação: "Primeiro, que a atividade no abrigo é frágil. E outra: as pessoas que topam ficar num abrigo são mais dependentes, enquanto quem fica na rua é mais safo." Para ele, só o fato de a prefeitura discutir o assunto já é um avanço. "Nas gestões anteriores, ficava aquela briga se era competência municipal ou estadual, já que grande parte dos moradores de rua vem de outros lugares", disse. "Mas, se alguém mora nas ruas do Rio há vinte anos, isso não é um problema do Rio?"

Em 1997, o então secretário de Segurança do Rio, o general Nilton Cerqueira, disse que o aumento do número de indigentes não era um problema de assistência social. "Só com atos violentos poderíamos livrar a cidade de mendigos", disse. No ano seguinte, o ex-prefeito Cesar Maia anunciou que usaria creolina para tirar os mendigos das ruas da cidade. O desinfetante chegou a ser aplicado em alguns pontos de concentração de moradores de rua. A oposição protestou. A creolina saiu e os pedintes voltaram.

Em muitos prédios da Zona Sul, condôminos instalaram canos de pvc perfurados, ligados a uma mangueira, ao longo de toda marquise do edifício. É a "técnica do chuveirinho". O zelador ou o síndico de vez em quando ligava a água, que caía sobre quem estava na calçada. A queda intermitente impedia que se dormisse no local.

A atual prefeitura também lançou mão de medidas espanta-mendigos. Debaixo de todos os viadutos da avenida Presidente Vargas, ao longo de túneis próximos ao Sambódromo e na praça Carlo del Prete, em Laranjeiras, foram fixadas pedras pontiagudas no concreto, para repelir os pobres que moravam ali. Na Praça da Cruz Vermelha, no centro, cerca de vinte bancos foram divididos ao meio por estruturas de ferro, que impedem as pessoas de se deitar.

Em função dessas iniciativas, o defensor público do estado Leonardo Rosa Melo entrará com um processo judicial contra a prefeitura. "São medidas discriminatórias travestidas de disciplinamento do espaço público", disse Melo, no seu gabinete. "Se um restaurante pode puxar um toldo e ocupar a calçada sem ser repreendido, por que um cidadão não pode ocupar um espaço na rua?", indagou. "É uma política belicista de coação da pobreza."

Dificilmente se notava o compensado de madeira apoiado na base da construção do Posto 8, na avenida Vieira Souto. Mas duas malas grandes na areia, uma florida e outra preta, chamavam a atenção. Eram dez e meia da manhã, quando se abriu uma fresta no compensado. Dali saiu uma garota loira, vestida com calça legging e bustiê preto e rosa, exibindo uma pontuda barriga de oito meses de gravidez. Na frente do Posto 8 fica um prédio, projetado por Oscar Niyemer, cujo apartamento de cobertura foi colocado à venda no início do ano por 23 milhões de reais.

Uma faxineira da Comlurb saudou a moça: "Bom dia, barriguda! Dormiu bem?" Michele de Castro Pereira deu de ombros. "Estou cheia de fome", reclamou. Avistou um vendedor de biscoitos Globo e conseguiu um pacote de graça. Comendo biscoitos com avidez, ela contou sua história. Morando em Niterói, frequentava aquele ponto da praia de Ipanema, onde tinha uma turma de amigos. Ali, conheceu Jonathan, morador do subúrbio de Campo Grande. Apaixonaram-se.

E Michele teve uma ideia: por que não largar tudo e ir morar ali? Havia um vão na lateral do posto que, se fechado, funcionaria quase como uma gaveta, fazendo as vezes de cama, assim como se vê em hotéis japoneses. Uma noite, Michele e Jonathan fizeram o teste. Na manhã seguinte, mudaram-se com as malas para a areia.

A prefeitura já a levou para o abrigo em três ocasiões. "Aquele lugar é para quem não tem nada na vida", ela explicou. "Eu tenho casa, moro aqui porque eu quero." Vi quando Michele abordou um casal italiano. Depois de dez minutos de conversa, os estrangeiros foram embora com cara de poucos amigos. Michele tentara lhes vender o bebê que trazia na barriga. Pedira 50 mil reais.

Duas semanas mais tarde, um funcionário da prefeitura, vestindo um colete escrito "Controle de Ratos", passou no Posto 8 e indagou sobre o casal. A mesma faxineira da Comlurb que a saudara semanas antes lhe contou que o bebê nascera prematuro. Ao saber da notícia, os pais de Jonathan abrigaram o filho, Michele e o bebê em Campo Grande.

O pesquisador argentino Jorge Muñoz foi um dos fundadores do Fórum Permanente sobre População Adulta em Situação de Rua. Morando no Brasil desde 1967, quando veio estudar as ações sociais apadrinhadas por dom Hélder Câmara, Muñoz se tornou uma autoridade no assunto.

Baseado em pesquisas e experiências bem-sucedidas de várias localidades, o Fórum produziu dois documentos e os entregou ao secretário de Assistência Social, Fernando William. Poucas das ideias foram aceitas pela prefeitura. A principal delas foi vocabular. Os funcionários municipais foram orientados a deixar de falar "centro de triagem", usando no lugar "casa de passagem". Em vez de "recolher pessoas" passaram a dizer "acolher".

Para Muñoz, os abrigos respondem às necessidades imediatas, como a fome e o local onde dormir. "A pessoa levou um tempo para cair na rua, e não se pode esperar que ela se recupere em 24 horas", afirmou Muñoz. "Ela precisa fazer o caminho de volta, e é necessário que ela se sinta acolhida para percorrê-lo." Desde a posse de Eduardo Paes, o Fórum não conseguiu agendar uma audiência com o prefeito.

Formado em publicidade, o paulistano Luciano Rocco morava em Londres quando conheceu The Big Issue, a revista cuja filosofia é exposta da seguinte maneira em todas as edições: "Oferecer aos sem-teto uma forma legítima de obtenção de renda." De volta ao Brasil, Rocco criou uma publicação semelhante, a Ocas. Ela foi lançada em junho de 2002, com o apoio da M. Officer e do British Council.

Desde então, mais de 1 700 moradores de rua já foram recrutados para vendê-la no Rio e em São Paulo. Os pobres pagam 1 real por exemplar e o revende por 3 reais, embolsando o lucro. "Muitas pessoas vêm dizer que saíram da rua com o dinheiro que conseguiram vendendo a Ocas", contou Rocco.

Na edição de abril, o tema da capa da Ocas era um filme de Teresa Aguiar sobre a morte de mendigos no Rio, nos anos 60. Havia uma reportagem sobre artistas de rua e um ensaio fotográfico sobre a capital paulista. O número anterior estampava uma entrevista com o jornalista Marcelo Tas, um artigo sobre a invisibilidade dos garis e uma reportagem sobre um grafiteiro que pintou uma cidade inteira na Bahia.

Num amplo galpão com paredes descascadas, cerca de sessenta moradores de rua estavam sentados em cadeiras de plástico. Funciona ali a Igreja Batista Farol da Lapa, bem próxima aos Arcos do bairro boêmio carioca. Na frente, o missionário Henrique César pulava e cantava ao microfone. Poucos pareciam interessados na cantoria. Depois de uma hora, Henrique César os convidou para receber uma bênção.

Seis homens se levantaram. Um deles, um rapaz musculoso vestindo uma regata preta com a inscrição "Eu chapo", puxou uma oração de olhos fechados: "Obrigado, Senhor, por esse momento, Senhor, por essa oportunidade, Senhor, de recebermos este alimento, Senhor!"

Diariamente, à uma da tarde, a igreja distribui almoço aos pobres do bairro. O pedágio é assistir ao culto. "Às seis e meia, teremos outro culto, mas tem que vir assistir!", conclamou o missionário. "Quem vier só para o lanche vai encontrar o portão trancado." Chegara a hora de comer.

Três caldeirões com arroz, carne de panela e angu foram colocados em cima do altar. Os mendigos se levantaram um a um, fizeram seus pratos, alguns completando o cardápio com farinhas ou pimentas trazidas em sacolas de plástico. Ao irem embora, alguns combinaram de se encontrar na próxima refeição.

George Orwell viveu na rua e relata como é a vida dos pobres no livro Na Pior em Paris e Londres,publicado em 1933. Ele contou como religiosos obrigavam os indigentes a assistirem sermões em troca de uma refeição. "Os temas eram sempre religiosos - sobre como Jesus Cristo sempre tinha um lugar macio para os homens pobres e rudes como nós, e sobre como fazia diferença para um homem na estrada se ele fizesse suas orações regularmente", escreveu Orwell, que em seguida revela o que os mendigos achavam das pregações: "Odiávamos aquilo."

Outro autor que morou na rua foi o americano Jack London. No início do século xx, ele viveu por 86 dias como mendigo em Londres, onde 450 mil pessoas se espremiam entre cortiços e calçadas. Suas conclusões sobre a caridade estão em O Povo do Abismo: "As pessoas que tentam ajudar! As suas obras sociais, missões, demonstrações de caridade, e todo o resto, são embustes. Ainda que bem-intencionados, seus projetos são concebidos equivocadamente. Essas pessoas pensam na vida a partir de um juízo malfeito sobre a vida dos pobres. Como disse alguém, fazem tudo pelos pobres, menos descer de suas costas."

"Eu entendo que eles fazem isso na melhor das intenções, mas não deixa de ser humilhante", disse um homem moreno e calvo, que pediu para ser chamado de Cláudio, ao comentar a ação dos missionários da Igreja Farol da Lapa. Nascido em uma família de classe média da serra fluminense, Cláudio fala inglês e é bacharel em turismo. Durante seis anos viveu em Munique com uma brasileira de origem alemã.

Ao voltar ao Brasil, Cláudio deu aulas e entrou como sócio na franquia de uma escola de inglês. O negócio o levou à falência. Sem nada, resolveu tentar a sorte no Rio e se hospedou em um hotel no Catete. Quando o saldo de sua conta bancária bateu os 300 reais, foi morar na rua. Logo no primeiro dia, conheceu um mendigo que sugeriu que procurasse um albergue. Depois de dez dias na fila de espera, conseguiu vaga no Hotel Champagne, um abrigo conveniado com a prefeitura.

"Por sorte, meu único companheiro de quarto era um advogado que também estava tentando reconstruir a vida", contou. Ali, soube que a Secretaria Municipal de Assistência Social selecionava pessoas para o cargo de educador dos abrigos. Em três meses, já empregado, Cláudio conseguiu alugar um pequeno apartamento em Santa Teresa. Atualmente, tem dois alunos particulares de inglês.

"Tenho muita consciência de que sou uma exceção, ainda mais agora, que trabalho com a população de rua", disse Cláudio. "A burocracia para quem quer sair da rua é muito grande. Tirar uma identidade para eles é uma tarefa muito árdua."

Em uma tarde de abril, andei com Cláudio pelo centro do Rio para que ele mostrasse o que os transeuntes não percebem sobre a vida dos indigentes. No espelho d'água em frente ao Museu de Arte Moderna, ele apontou para uma bica escondida e disse: "Dali sai uma água razoavelmente limpa. As pessoas enchem baldes e tomam banho, lavam roupa."

Dito e feito. Um rapaz se aproximou com uma garrafa pet e uma escova de dentes. Em um canto do estacionamento, lavou o rosto, a boca e abriu a tampa de um bueiro, de onde tirou um par de tênis e um saco plástico.

Mais à frente, perto do monumento em homenagem aos pracinhas, dois rapazes misturavam xampu à água de um balde, onde mergulhavam e esfregavam suas camisetas. Um deles, Giovanni Moura da Costa, encarnaria facilmente o papel de galã sem camisa em uma novela das 7. Ele contou ter "casa, mulher e filha", mas o vício em cocaína o levara para as ruas há seis anos. Costa disse manter contato com a família da ex-mulher pelo Orkut. "Quando sobra uma graninha, eu gosto de frequentar as lan houses aqui do centro", contou.

Cláudio sugeriu que ele tentasse acolhimento no abrigo Stella Maris, onde está trabalhando. "É o mesmo abrigo da Praça da Bandeira, só que agora mudou para a Ilha do Governador", argumentou. "E pelo menos um colchão você consegue lá, com certeza." Giovanni da Costa não se animou.

Numa manhã, Marcos Alexandre de Menezes tomava sol na calçada em frente ao Stella Maris, aonde tinha sido levado quatro dias antes. "Eu ia fazer o quê? Sair correndo?", disse ele, que tem uma perna amputada e é cego do olho direito. Nas ruas há mais de dez anos, Menezes parecia tranquilo no novo lar. "Por enquanto, estou bem aqui, tem comida. Mas, se eu mudar de ideia, volto para a rua", afirmou.

Um casal deixava o abrigo carregando uma mochila quase vazia. Marilene Silva puxou a barra da calça azul e mostrou um descamado purulento. "Achei que era uma alergia e fiquei tratando com uma pomada de mel, mas deve ser uma infecção mais grave", disse. Como aqui não tem médico, vamos tentar achar um posto de saúde aqui perto."

Marilene e o marido saíram de São Paulo há três meses. Viajaram ao Rio em busca de emprego. "Procuramos a prefeitura para tentar conseguir um lugar para ficar e nos mandaram para cá", ele contou. "Mas é difícil. Por enquanto, só conseguimos dormir no corredor."

Em outro canto do pátio, um homem de olhos vidrados tremia e balançava o tronco. Dois rapazes o abordaram e o levaram para trás de uma árvore. Minutos depois, os três reapareceram caminhando normalmente e rindo alto. "Foram fumar crack, com certeza", comentou um funcionário com colete da Secretaria de Assistência Social.

Às três em ponto, conforme o combinado, o prefeito Eduardo Paes abriu a porta de seu gabinete, de onde se avista o grande relógio da Central do Brasil. Dispensou o assessor de imprensa ("Pode ir, não preciso de babá") e ofereceu água e café. Perguntei-lhe o que a prefeitura pretendia fazer com os mendigos que tira da rua.

"Esse é um dos problemas mais difíceis de se resolver", respondeu. "É o tipo de área onde você não tem uma política pública uniforme. Você está lidando com dramas de indivíduos, com as histórias as mais loucas possíveis." Para Eduardo Paes, há um dilema insolúvel entre "o lado humanitário e...." - parou para escolher a melhor palavra - "...essa demanda de limpar a cidade. Tem o cara que reclama e tem o cara que acha que tem que permitir. E aí você tem os mais variados tipos de desencargo de consciência da burguesia: o pessoal vem e liberta a sua alma dos pecados distribuindo um sopão."

O prefeito acredita que, no final das contas, a solução duradoura está em dar um tratamento individualizado a cada morador de rua. E disse que é possível fazer isso: "Tem assistente social a dar com o pé na prefeitura do Rio. Eles podem analisar caso a caso."

A desativação do abrigo da Praça da Bandeira, ele disse, era um plano antigo. Uma das razões é que a população do centro da cidade tem o hábito de sustentar os mendigos com comidas, roupas e esmolas. "Acolher um sujeito e levar para lá é o mesmo que levar a raposa para o galinheiro: ele não vai querer sair de lá nunca", afirmou. "Mudar para a Ilha não foi escolha minha, mas foi uma boa escolha. E certamente tem a ver com dificultar a volta para as ruas."

Eduardo Paes reconheceu que as operações de retirada de pessoas da rua acontecem mesmo que não haja vagas nos abrigos. E defendeu que continuem assim: "Você não pode transformar a rua em um lugar confortável para viver. O ideal é que você consiga devolver essa pessoa para casa. Mas, se não conseguir, não dá pra ficar embaixo do viaduto."

O prefeito rechaçou a afirmação que as operações servem para esconder a pobreza dos ricos e dos turistas. "O Choque de Ordem também está tirando muito puxadinho da calçada, é uma ação permanente de preservação do espaço público", disse. Sobre as críticas de elitismo, o prefeito riu. "Não estou nem aí, olha as minhas rugas de preocupação", falou, levantando a mão direita em minha direção. "A degradação do Rio de Janeiro tem muito a ver com esses sociólogos de plantão, essa falsa intelectualidade."

Paes se irritou quando perguntei se as operações não teriam o objetivo de preparar o Rio para a Copa e as Olimpíadas. "É, põe aí que é por causa da Copa do Mundo, da Olimpíada", disse com sarcasmo. "Agora tudo que a gente faz é por causa disso. O acolhimento de hoje é só para 2016. Depois pode voltar tudo para a rua."

Em 1984, a prefeitura do Rio resolveu transformar em abrigo uma fazenda da época do Império, no bairro de Guaratiba, a uma hora do centro da cidade. A ideia era criar um espaço civilizado - com alojamentos limpos e organizados, hortas comunitárias e oficinas de profissionalização - para preparar indigentes a voltar ao trabalho.

A experiência foi narrada no livro No Olho da Rua: a Vida na Fazenda Modelo, do médico pernambucano Marcelo Antonio da Cunha, diretor da instituição entre 1999 e 2003. Ao chegar ao abrigo, Cunha encontrou o que descreveu como

um imenso repositório de vidas naufragadas, reunindo uma estranha e multiforme massa humana formada por todo tipo de gente e procedência: criminosos, pacientes psiquiátricos, portadores de deficiências, crianças de todas as idades, adolescentes, idosos moribundos e doentes crônicos acamados vivendo em total promiscuidade.

No auge de sua ocupação, a fazenda chegou a abrigar 2 500 pessoas.

Ele descreve: "O ônibus da prefeitura, conhecido como 'Cata-tralha', 'Cata-mendigos' ou 'Mendigão', não parava de chegar trazendo mais gente - aqueles que 'enfeavam' a cidade com suas súplicas e andrajos."

Certa vez, uma fábrica de calçados doou parte do estoque para os abrigados. A montanha de sapatos, todos misturados, chegava ao teto de uma sala. Cunha tentou organizar uma brincadeira. Propôs que cada um achasse o par perdido. "A cena me fez lembrar as imagens de Serra Pelada, onde multidões de mineiros subiam e desciam dificultosamente, como formigas, uma grande colina, em busca do ouro escondido sob a terra", escreveu.

Cunha é hoje coordenador do Núcleo de Direitos Humanos da Secretaria Municipal de Assistência Social. E está esperançoso com a promessa de novos abrigos. "Eles vão oferecer alternativas de reinserção dos moradores de rua na sociedade, o que não acontecia na Fazenda Modelo."


19 de junho de 2015

Paula Scarpin

O LOCUTOR INSUPORTÁVEL



Oldelgário Tibiriçá, 64 anos, o narrador mais famoso do Brasil, divide opiniões. Sua família e seus patrocinadores o amam, o resto o odeia. Mas, na hora de acompanhar os jogos da Seleção, todos se unem para ouvir seu (cada vez mais desafinado) palavrório varonil


Amigos do esporte, torcedores do meu Brasil inzoneiro de cinco títulos mundiais, sejam bem-vindos a este espaço de literatura em alta definição!

Que beleza, minha gente. Que beleeeezaaaaa! Como é bom poder praticar essa arte bonita, bonita, boniiiiiita da palavra escrita! Porque, comigo, você sabe, amigo, informação é o que interessa. E para contar a minha história de quarenta anos de carreira e dez copas do mundo, eu preciso, antes de mais nada, agradecer a Brahma Chopp, Castrol gtx, Baterias Moura, Banco Cacique, Preservativos Olla e Sinaf - planos de assistência funeral -, pelo apoio incondicional que dão ao esporte em geral e a mim em particular. Que maravilhaaaa! Não foi fácil, amigo! Não foi fácil chegar até aqui. Só mesmo com a energia de uma Bateria Moura. Haja emoção! Sem o apoio dos milhões de torcedores que nos brindam diariamente com sua audiência, que acreditam na Seleção Brasileira e, acima de tudo, que consomem os bons produtos que apoiam as nossas transmissões, este homem humilde do interior de Goiás jamais teria chegado a um salário mensal de 2 mil reais, mais 975 mil de merchandising. Creiam-me, amigos do esporte: a vida nem sempre sorriu para mim. Mas, falando muito e gritando mais ainda, a verdade é que eu cheguei lá. Não pensem que o meu trabalho é fácil. Nada disso! Quando as pessoas me ouvem narrando partidas pela televisão, devem imaginar que eu tenho um emprego de sonho, que estou sempre presente aos grandes eventos globais e que vivo cercado de celebridades, mas - agueeeenta, coraçãaaaao! - a realidade não é bem assim. Narrar é uma coisa, comandar uma transmissão é outra. A cada jogo, eu sou obrigado a realizar uma série de atividades tão complexas, que você, amigo de casa, nem faz ideia.

Pra início de conversa, eu não sou apenas narrador. Na condição de celebridade, as pessoas anseiam pelas minhas opiniões. Então, sou obrigado a dá-las. Por exemplo: eu, que fui amigo do Senna, aprendi que, no motor, só Castrol gtx. É uma opinião. Das boas. Outra: futebol se faz com 22 sujeitos e um juiz. Quando comecei, o pessoal só falava dos jogadores. Pra fazer uma transmissão diferenciada, como se diz hoje em dia, tive a ideia de dar meus pitacos sobre a arbitragem. Foi um sucesso. Como sou inquieto, pouco tempo depois, inovei mais uma vez: inventei o comentarista de arbitragem. E sabe por quê? Simples: pra poder discordar dele. Fui eu que primeiro atinei pra essa verdade universal: sem um mínimo de conflito não se faz uma boa transmissão. Acho incrível que ninguém tenha reparado nisso. Porque, convenhamos, o comentarista de arbitragem é a coisa mais inútil do mundo, e a prova é que o cara só existe aqui no Brasil (roda a vinheta: Brasil-il-il!). Ele só está lá pra servir de escada. Quando o jogo tá chato, eu brigo com ele e o pessoal abre o olho a tempo de ver o logotipo da Brahma - beba com moderação, mas não muita... - lá na telinha.

Animado com essa coisa de arbitragem, emendei comentários sobre a parte tática, técnica, psicológica, econômica, política, filosófica, sociológica, estética e existencial do jogo de futebol. Fiquei tão bom nessa coisa de comentarista que outro dia tratei da física das bolas de futebol, mencionando inclusive a Segunda Lei de Newton, que não sei bem o que é, mas achei que podia render um troco. Afinal, elogiei a tal lei. Se pagarem, sou até capaz de mencionar a Primeira Lei na gentileza, sem cobrar um tostão. Gostaria muito de falar sobre vinhos e relógios de pulso, mas isso tem sido difícil de encaixar. Haja emoção! Tanta, tanta que, se fosse dinheiro, faltaria, e eu teria de tomar emprestado no Banco Cacique, sempre a juros módicos, como não cansam de garantir os simpáticos gerentes de conta.

Essa capacidade de ser um crânio nos comentários me ajuda com uma dificuldade que venho enfrentando. Que drama, amigooo, que drama! É que eu já não consigo guardar o nome dos jogadores. Há tempos só narro uma partida depois de anotar os nomes num caderninho. E, mesmo assim, quando o plano da televisão é aberto, não identifico ninguém. Por isso, quanto mais comentários, menos narração. Minha sorte é que o povaréu não entende patavina de futebol internacional e aí eu posso inventar. Outro dia narrei um jogo da Coreia do Sul com as anotações do jogo que fizemos contra a China, em 2002 (ou 2006, não lembro). Ninguém percebeu. E olha que eu também narrei os lances do Brasil com a escalação da partida antiga. A verdade, meu Brasil varonil, é que, na hora da emoção - e haja emoção! -, ninguém quer saber se o gol foi do Romário, do Ronaldo ou do Luiz Adriano, aquele grandão lá na frente. Gol é gol, o resto é paisagem, como gosto de dizer. Às vezes reclamam que eu interrompo os outros comentaristas, mas não me venham com essa. Tenho que anunciar promoções de torpedos de celular, de Mega-Sena, campanhas de vacinação, chamar vinhetas, elogiar os preservativos Olla, de vez em quando narrar o que acontece em campo... e vocês ainda querem que eu passe a palavra para os comentaristas?

Outra missão de um estilista da transmissão é manter o público ligado. Nossos anunciantes - Brahma Chopp, Castrol gtx, Baterias Moura, Banco Cacique, Preservativos Olla e Sinaf - planos de assistência funeral -, precisam que tenhamos índices de audiência sempre altos. Não importa se a Seleção esteja jogando bem ou mal, eu tenho que enaltecer sempre o Brasil. O Brasil, o Flamengo e o Corinthians. O resto é traço, estou pouco me lixando. Há anos que não narro um jogo do Botafogo. Aquele time não enche nem o próprio estádio, que dirá dar Ibope. Idem pro Fluminense. Funcionava quando tínhamos o patrocínio da Corega - creme fixador de dentadura. Eles gostavam do público-alvo. Aliás, foi durante uma campanha do tricolor que a Sinaf - assistência funeral - decidiu anunciar. Acabou ficando. Faça o seu.

É, amiiiigo... Como você pode perceber, minha vida não é mole. Por conta disso, pretendo me aposentar após a Copa de 2014. Como até lá já não terei mais condições de guardar nem mesmo o nome da emissora, adotarei a seguinte estratégia: sobre uma fita com gravações das minhas transmissões de 1994 (gosto do som da minha voz naquela edição, um Caruso no auge), samplearei bordões originais do tipo Vamos lá Brasil, É agora ou nunca, Haja emoção, Que beleza,Arrebenta, minha Seleção, É o coração na ponta da chuteira, Acelera, Rubinho e outras coisas, por estilo. Na hora do gol, usarei o meu registro daquele lindo, de falta, do Romário (ou terá sido o Ronaldo?) contra a Inglaterra, em 2006.

Por último, caro trabalhador varonil, amiga dona de casa, eu gostaria de registrar minha total putidão com a campanha depreciativa que lançaram contra mim na internet. Em nome de Brahma Chopp, Castrol gtx, Baterias Moura, Banco Cacique, Preservativos Olla e Sinaf - planos de assistência funeral -, eu repudio tal campanha! O blog #chupaoldelmario é coisa de quem nunca teve um lugar-comum dito por mim em voz alta. Não o divulguem! Caso contrário, prometo narrar também a Copa de 2018 e 2022. E aí vocês vão ver o que é bom pra tosse.

Até a próxima, amigos do esporte, torcedores do meu Brasil inzoneiro de cinco títulos mundiais. (Ou serão seis?)


19 de junho de 2015
Marcos Caetano

NUVENS


Nefelomancia, respondeu o homem, é uma palavra grega, nefelo significa nuvem, e mancia, adivinhar, a nefelomancia é a arte de adivinhar o futuro observando a forma das nuvens, porque nesse tipo de arte a forma é a substância, e é por isso que vim passar as férias nesta praia

- Você fica aqui na sombra o dia inteiro, disse a menina, não gosta de entrar no mar?

O homem fez um sinal vago com a cabeça, podia parecer um sim ou um não, mas não disse nada.

- Posso tratá-lo por você?, perguntou a menina.

- Se não me engano, já está tratando, disse o homem sorrindo.

- Na minha classe, chamamos até os adultos de você, disse a menina, alguns professores deixam, mas meus pais me proibiram, dizem que é coisa de gente mal-educada, o que o senhor acha?

- Acho que estão certos, respondeu o homem, mas pode me chamar de você, não conto para ninguém.

- Não gosta de entrar no mar?, insistiu ela, acho isso singular.

- Singular?, repetiu o homem.

- Minha professora explicou que não se pode usar maravilhoso para tudo, que em certos casos se pode dizer singular, eu disse maravilhoso só por dizer, porque para mim nadar nesta praia é mesmo singular.

- Ah, disse o homem, concordo, também acho maravilhoso, até singular.

- Tomar sol também é maravilhoso, continuou a menina, nos primeiros dias tive de usar proteção solar 40, depois passei para 20 e agora posso usar o bronzeador dourador, aquele que faz a pele cintilar como se nela houvesse estrelinhas douradas, dá pra ver?, mas por que o senhor é tão branco?, chegou há uma semana e fica sempre debaixo da barraca, nem do sol o senhor gosta?

- Acho o sol maravilhoso, disse o homem, juro, acho que tomar sol é maravilhoso.

- Tem medo de se queimar?, perguntou a menina.

- O que você acha?, respondeu o homem.

- Acho que tem medo de se queimar, mas quem não começa devagarinho nunca fica bronzeado.

- É verdade, confirmou o homem, me parece lógico, mas será que é obrigatório se bronzear?

A menina refletiu.

- Obrigatório propriamente não é, nada é obrigatório, exceto as coisas obrigatórias, mas se a pessoa vem à praia, não entra no mar e não se bronzeia, para que vir até aqui?

- Sabe de uma coisa?, disse o homem, você é uma menina lógica, tem o dom da lógica, e isto é maravilhoso, acho que hoje o mundo perdeu a lógica, é um grande prazer encontrar uma menina com lógica, você me concede a honra de conhecê-la?, como se chama?

- Me chamo Isabella, mas os amigos íntimos me chamam de Isabel, com ênfase no e, não como para os italianos, que dizem Isabel com ênfase no i.

- Por que, você não é italiana?, perguntou o homem.

- Claro que sou italiana, contestou ela, italianíssima, mas é importante o nome que meus amigos me dão, porque na televisão sempre dizem Mánuel ou Sebástian, eu sou italianíssima como o senhor e talvez ainda mais, mas gosto de línguas e sei até o hino de Mameli[1] de cor, este ano o presidente da República veio visitar nossa escola e nos falou da importância do hino de Mameli, que é nossa identidade italiana, foi preciso tanto tempo para construir a unidade de nosso país, não gosto nada, por exemplo, daquele senhor da política que pretende abolir o hino de Mameli.

O homem não disse nada, mantinha as pálpebras entreabertas, a luz era intensa e o azul do mar se confundia com o do céu, como se tivesse engolido a linha do horizonte.

- Talvez não tenha entendido a quem me refiro, disse a menina rompendo o silêncio.

O homem não falou, a menina pareceu hesitar, com um dedo rabiscava na areia.

- Não gostaria que o senhor fosse do partido dele, continuou, tomando coragem, em casa me ensinaram que é preciso respeitar sempre as opiniões alheias, porém a opinião daquele senhor não me agrada, você compreende?

- Perfeitamente, disse o homem, é preciso respeitar as opiniões alheias, mas sem desrespeitar as próprias, sobretudo não desrespeitar as próprias, e por que não gosta daquele senhor?

- Bem..., Isabella pareceu hesitar. Além do fato de que, quando fala na tevê, ele sempre tem uma espuma branca nos cantos da boca, mas isso seria o de menos, ele diz um monte de palavrões, escutei com meus próprios ouvidos, e se ele faz isso, me pergunto por que brigam comigo quando faço a mesma coisa, mas por sorte o presidente da República é mais importante que ele, de outro modo não seria presidente da República, e ele nos explicou que temos de respeitar o hino de Mameli, temos de respeitá-lo e cantá-lo como canta a seleção nacional nos campeonatos do mundo, com a mão no coração, na escola cantamos junto com o presidente, líamos nas cópias distribuídas pela professora, mas ele nem lia, sabia de cor, eu o acho maravilhoso, você não acha?

- Praticamente singular, confirmou o homem. Revirou a sacola ao lado da espreguiçadeira, pegou um frasco de vidro e enfiou na boca um comprimido branco.

- Estou falando demais?, perguntou ela, em casa dizem que falo demais e acabo incomodando os outros, estou incomodando?

- De jeito nenhum, respondeu o homem, as coisas que você fala inclusive me parecem singulares, continue, por favor.

- E depois o presidente nos deu uma lição de história, porque, como o senhor deve saber, na escola não se estuda a história moderna, os melhores professores conseguem chegar, ao final da oitava série, no máximo até a Primeira Guerra Mundial, mas o normal é pararem em Garibaldi e na unificação da Itália, mas nós aprendemos um monte de coisas modernas, porque a professora foi ótima, mas o mérito é do presidente, pois foi ele quem deu o input.

- O que foi que ele deu?, perguntou o homem.

- É assim que se diz, explicou Isabella, é uma palavra nova, é para quando alguém começa e arrasta os outros, se quiser repito o que aprendi, é mesmo um monte de coisas que poucos conhecem, quer que eu conte?

O homem não respondeu, mantinha os olhos fechados e estava completamente imóvel.

- Adormeceu?, Isabella tinha um tom tímido, como se estivesse chateada.

- Me desculpe, talvez tenha feito o senhor dormir de tanto tagarelar, é por isso também que meus pais não quiseram me comprar um celular, dizem que de tanto que eu falo receberiam contas astronômicas, sabe, lá em casa não podemos nos permitir os supérfluos, meu pai é arquiteto, mas trabalha para a prefeitura, e quando alguém trabalha para a prefeitura...

- Seu pai é um homem de sorte, disse ele sem abrir os olhos.

Agora falava baixinho, como se sussurrasse.

- Seja como for, continuou, a profissão de construir casas é muito bonita, bem melhor que a profissão de destruí-las.

Isabella deu um gritinho de surpresa.

- Meu Deus, exclamou, existe mesmo a profissão de destruir casas?, não sabia, isso não se aprende na escola.

- Enfim, disse o homem, não é que seja propriamente uma profissão, dá para aprender também de forma teórica, como na academia militar, mas depois há momentos em que certos conhecimentos precisam ser postos em prática, e afinal a meta é essa, destruir casas.

- E como o senhor sabe disso?, perguntou Isabella.

- Sei porque sou militar, respondeu o homem, ou melhor, era, agora estou aposentado, digamos.

- Mas então o senhor destruía casas?

- Não ia me chamar de você?, replicou o homem.

Isabella não respondeu de imediato.

- Acontece que sou um pouco tímida por natureza, embora não pareça, pois falo muito, tinha perguntado se antes você também destruía casas.

- Pessoalmente não, disse o homem, e, para ser sincero, tampouco meus soldados, a minha era uma missão bélica de paz, é meio difícil explicar, sobretudo num dia como este, porém, Isabel, queria te contar uma coisa que talvez não lhe tenham dito na escola, no fundo no fundo a história se resume ao seguinte: existem homens, como seu pai, que por profissão constroem casas e homens do meu ofício que as destroem, e assim são as coisas há séculos, alguns constroem casas e outros as destroem, construir, destruir, construir, destruir, é meio chato, não acha?

- Chatíssimo, respondeu Isabella, realmente chatíssimo, se não fosse pelos ideais, sorte que ainda existem ideais.

- Verdade, confirmou o homem, por sorte na história existem os ideais, quem te disse isso, o presidente ou a professora?

Isabella pareceu refletir.

- Agora não saberia dizer quem explicou isso.

- Talvez tenha sido o presidente quem deu o input, disse o homem, e o que você pode me dizer sobre os ideais?

- Que são todos respeitáveis se a gente acredita neles, respondeu Isabella, por exemplo, no caso da pátria, depois pode ser que alguém se engane por ser jovem, mas, se estiver de boa-fé, o ideal é válido.

- Ah, retrucou o homem, é um assunto sobre o qual devo refletir, mas não me parece o dia mais indicado, hoje está muito quente e o mar parece tão convidativo.

- Então dê um mergulho, provocou ela.

- Não estou com muita vontade, respondeu o homem.

- É porque não está motivado, acho que o que você tem é stress, você não pode imaginar o efeito negativo do stress em nosso espírito, li num livro que minha mãe tem na cabeceira, quer que eu vá pegar alguma coisa pra você no bar do hotel, alguma coisa pra combater o stress?, desde que não seja uma Coca-Cola, que isso eu me recuso.

- Essa você vai ter de me explicar, vamos lá, disse o homem.

- Porque a Coca-Cola e o McDonald's são a perdição da humanidade, todo mundo sabe disso, na minha escola até o bedel sabe disso.

O homem revirou a sacola e pegou outro comprimido.

- Quantos remédios você toma, exclamou Isabella.

- Tenho uma escala horária, disse o homem, é o que pede a receita médica.

- Acho que todos esses comprimidos lhe fazem mal, afirmou ela com convicção, os italianos tomam remédios demais, disseram isso até na televisão, quando na verdade o mais importante é sintonizar nosso espírito com as forças positivas do universo, por isso algumas comidas e bebidas devem ser evitadas, pois transmitem energia negativa, não são naturais, me entende?

- Isabel, posso te contar uma coisa, aqui entre nós?

O homem passou um lenço na testa. Suava.

- A Coca-Cola e o McDonald's não levaram nunca ninguém a Auschwitz, para aqueles campos de extermínio sobre os quais devem ter te falado na escola, porém os ideais sim, já parou pra pensar nisso, Isabel?

- Mas aqueles eram nazistas, objetou Isabella, gente horrível.

- Totalmente de acordo, disse o homem, os nazistas eram gente realmente horrível, mas até eles tinham um ideal e faziam a guerra em nome dele, do nosso ponto de vista era um ideal perverso, mas do ponto de vista deles não, tinham uma grande fé nesse ideal, é preciso ficar atento com relação aos ideais, que me diz, Isabel?

- Tenho de pensar nisso, respondeu a menina, quem sabe pense nisso durante o almoço, é meio-dia e meia, daqui a pouco vão servir o almoço, você não vem?

- Provavelmente não, disse o homem, hoje não estou com muita fome.

- Desculpe se me repito, mas creio que você toma remédios demais, faz como todos os italianos que tomam remédios em excesso.

- Mas, afinal, você é italiana ou não?, insistiu o homem.

- Já me perguntou e já lhe respondi, replicou Isabella irritada, sou italianíssima, talvez ainda mais que você, de qualquer modo, se não vier almoçar você vai perder, hoje no hotel tem o bufê e, depois de todas aquelas coisas croatas que nos serviram, finalmente vai ter fettuccine all'arrabbiata, na verdade, na folhinha do menu está escrito fetucine all'arrabbiata, mas acho que é o nosso prato mesmo, às vezes no exterior é preciso perdoar os erros de ortografia, mas desculpe, por que toma tantos comprimidos, você não seria por acaso um viciado como aqueles que vão às discotecas?

O homem não respondeu.

- Vamos, diga, insistiu Isabella, não contarei pra ninguém.

- Serei sincero, disse o homem, não sou um viciado de discoteca, foi o médico quem me receitou, são comprimidos legalizados, me tiram um pouco o apetite, só isso.

- Também te fazem vomitar, disse Isabella, eu percebi, ontem você veio almoçar e, de repente, se levantou e correu para o banheiro e, quando voltou, estava branco como um cadáver, acho que tinha ido vomitar.

- Acertou na mosca, disse o homem, tinha mesmo ido vomitar, é o efeito dos comprimidos.

- E então por que continua tomando?, não tome mais os comprimidos, concluiu ela.

- Raciocínio lógico, é que de um lado me fazem bem e de outro mal: talvez os comprimidos sejam de certa forma como os ideais, depende de quem precisa tomá-los, eu não os imponho aos outros, não faço mal a ninguém.

A menina continuava fazendo rabiscos na areia.

- Não entendo, disse, às vezes é difícil entender vocês adultos.

- Nós, adultos, somos estúpidos, disse o homem, com frequência somos estúpidos, porém, às vezes, acontece que de fato é necessário tomar comprimidos, independentemente de ser italiano ou não, mas você, Isabel, que afirma ser italianíssima, me diga onde nasceu?, note que isso não é fundamental, eu, por exemplo, nasci num lugar que já nem existe no mapa, porque agora o chamam com outro nome, mas sou italiano, a tal ponto que sou, ou melhor era, um capitão do Exército italiano, e para ser capitão do Exército italiano não se pode ser estrangeiro, não te parece lógico?

Isabella concordou.

- E onde nasceu?, perguntou.

- Numa comarca que agora inventaram, você conhece Walt Disney?

Os olhos de Isabella brilharam.

- Quando era criança, vi todos os filmes dele.

- Pronto: é um lugar assim, vilarejo de fábula, todo de cristal, um cristal que não passa de vidro vulgar, de um ponto de vista real fica na Itália setentrional, da mesma forma que a Toscana está na Itália central e a Sicília na Itália meridional, mas a geografia agora se tornou algo secundário e também a história, da cultura é melhor nem falar, o que hoje conta é a fábula, porém, dado que os adultos, além de estúpidos são também complicados, não quero continuar sendo o complicado, vamos ao que interessa, fiz a pergunta primeiro, onde você nasceu?

- Num lugarejo do Peru, disse Isabella, mas me tornei italiana bem cedo, logo que meus pais me adotaram, por isso me sinto tão italiana quanto você.

- Isabel, disse o homem, sinceridade por sinceridade, havia percebido que você não é ariana como eu, ademais sou branco como um cadáver, você mesma disse, você é mais escurinha, ou seja, não é de pura raça ariana.

- E o que seria isso?, perguntou a menininha.

- É uma raça inexistente, respondeu o homem, inventada por falsos cientistas, mas sabe, se aqueles que tinham ideais deste tipo tivessem vencido a Guerra Mundial, agora você não estaria mais aqui, não estaria de jeito nenhum.

- Por quê?, perguntou Isabella.

- Porque aqueles que não fossem de raça ariana nem teriam o direito de existir, querida Isabel, e as pessoas com a pele um pouco mais escurinha, como a sua, que tem de fato uma cor belíssima, especialmente agora com o bronzeador dourador, teriam...

- Teriam o quê?, perguntou ela.

- Deixa pra lá, disse o homem, é uma coisa complicada e num dia como este não vale a pena complicar a vida, por que não vai dar um bom mergulho antes do almoço?

- Posso nadar depois, respondeu Isabella, perdi a vontade e, desculpe, assim que te vi na semana passada, sempre lendo aqui debaixo da barraca, me ocorreu que você seria capaz de me explicar certas coisas que não tinha entendido, pensei que teríamos uma conversa interessante, dessas difíceis de ter com os adultos e, ao contrário, é até pior que antes, faz meia hora que conversamos e, sinceramente, você me parece meio fora de foco, países inexistentes, gente que destrói casas, você que fazia guerra e paz, creio que sua cabeça anda uma confusão e, além disso, não entendi qual era a tal da sua profissão.

- Consistia em observar aqueles que destruíam as casas uns dos outros, respondeu o homem, esta era a missão bélica de paz, e isso acontecia exatamente aqui.

- Nesta praia?, perguntou Isabella, desculpe, mas não me parece possível, sem querer ofender.

O homem não respondeu. Isabella levantou, tinha posto as mãos nos quadris e observava o mar, era magra e sua silhueta se recortava contra a luz violenta do meio-dia.

- Acho que você diz tais coisas porque não come, disse com voz levemente alterada, não comer faz a pessoa dizer frases estranhas, você está delirando, desculpe se te digo, aqui estamos num hotel de primeira, é supercaro, eu vi os preços, você não pode sair dizendo estas coisas porque te deu na veneta, você não come, não toma sol, não entra no mar, acho que tem algum problema, talvez precise mastigar alguma coisa ou beber um bom suco de frutas, se quiser vou buscar um pra você.

- Se quiser mesmo ser gentil, preferiria uma Coca-Cola, disse o homem, me tira a sede.

- Eu quero ser gentil, afirmou Isabella, você é que não está sendo, primeiro tem de me explicar por que veio de férias justamente aqui onde havia guerra e casas eram destruídas e você ficava só olhando, se é que é verdade.

- Era assim mesmo, só que naquele tempo ninguém queria saber disso, tampouco agora, você verá, as pessoas não gostam de saber que nos lugares de férias antes houve uma guerra, porque se pensam nisso estragam as férias, entende a lógica?

- E então por que você veio?, minha pergunta é lógica, concorda?

- Digamos que é o repouso do guerreiro, disse o homem, ainda que o guerreiro não fizesse a guerra, no fundo era um guerreiro, e o guerreiro deve encontrar repouso onde antes houve guerra, é um clássico.

Isabella parecia refletir. Tinha se ajoelhado na areia, metade do corpo ao sol e metade na sombra, no magro corpo infantil vestia um biquíni que nem pediria a parte de cima, seus ombros estreitos começaram a sobressaltar-se como se chorasse, mas não chorava, parecia ter ficado com frio, tinha as mãos afundadas na areia e o rosto dobrado sobre os joelhos.

- Não se preocupe, murmurou, quando faço assim todos se preocupam, é apenas uma pequena crise própria da idade evolutiva, é que tenho os problemas da idade evolutiva, assim disse o psicólogo, não sei se entende.

- Se você erguer o rosto, entendo melhor, disse o homem, não consigo ouvi-la bem.

A menina levantou a cabeça, tinha o rosto vermelho e os olhos úmidos.

- Você gosta da guerra?, sussurrou.

- Não, disse ele, não gosto, e você?

- Então por que fazia guerra?, perguntou Isabella.

- Já disse que não fazia, assistia, mas eu também lhe fiz uma pergunta, gosta de guerra?

- Odeio, exclamou Isabella, eu a odeio, mas você fala como todos os adultos e me provoca a crise da idade evolutiva, porque no ano passado eu não tinha esta crise, depois na escola nos explicaram os vários tipos de guerra, as boas e as más, e depois escrevemos três redações e só então me vieram essas crises da idade evolutiva.

- Você tem todo o tempo que quiser para explicá-las, disse o homem, conte com calma, o fettuccine all'arrabbiata continuará quentinho sob as lâmpadas halógenas, nem te perguntei em que série está.

- Terminei o sexto ano, mas depois do oitavo irei para o colegial, assim vou estudar grego também.

- Magnífico, mas o que tem isso a ver com suas crises?

- Talvez nada, disse Isabella, é que durante o ano estudamos César e também um pouco de Heródoto, mas sobretudo se a guerra pode servir à paz, foi este o tema de história, não sei se me entende.

- Explique melhor.

- No sentido de que às vezes é necessária, infelizmente, disse ela, a guerra às vezes serve para trazer a justiça aos países onde não existe, porém, certo dia chegaram duas crianças daquele país para onde estão levando a justiça e foram internados no hospital de nossa cidade, e a encarregada de levar frutas e doces para eles foi a minha classe, isto é, eu com Simone e Samantha, os melhores alunos, não sei se me entende.

- Continue, disse o homem.

- Mohamed tem mais ou menos minha idade e sua irmã é menorzinha, não me lembro do nome dela, mas quando entramos no quartinho do hospital Mohamed não tinha braços e sua irmãzinha...

Isabella interrompeu-se.

- O rosto de sua irmãzinha..., murmurou, tenho medo de que, se lhe contar, me volte outra crise da idade evolutiva, a avó era quem os acompanhava porque o pai e a mãe morreram sob a bomba que destruiu a casa deles, assim deixei cair a bandeja com os kiwi e o tiramisù, comecei a chorar e depois vieram as crises da idade evolutiva.

O homem não disse nada.

- Por que não fala nada? Parece o psicólogo que fica me ouvindo e nunca diz nada, diga alguma coisa.

- Acho que você não tem de se preocupar muito, disse o homem, todos sofremos das crises da idade evolutiva, cada um do seu jeito.

- Você também?

- Posso te garantir, disse ele, apesar de achar que a opinião dos médicos está em plena crise da idade evolutiva.

Isabella observou-o. Enfim, tinha se sentado com as pernas cruzadas, parecia mais relaxada e não tinha mais as mãos enfiadas na areia.

- Está brincando, disse.

- Não estou brincando, respondeu ele.

- E quantos anos você tem?

- Quarenta e cinco, respondeu o homem.

- Igual ao meu pai, é tarde para sofrer a crise da idade evolutiva.

- Nem pensar, objetou o homem, a idade evolutiva jamais acaba, na vida nada mais fazemos além de evoluir.

- Evoluir é um verbo que não existe, disse Isabella, se diz evolver.

- Muito bem! Porém, em biologia existe e, de fato, cada um de nós, ao evoluir, tem sua crise, mesmo seus pais têm as deles.

- Como é que você sabe?

- Ontem ouvi sua mãe falando com seu pai no celular, disse o homem, era fácil perceber que andam em plena crise da idade evolutiva.

- Você é um espião, exclamou Isabella, não se pode escutar as conversas alheias.

- Desculpe, disse o homem, a sua barraca fica a três metros da minha e sua mãe falava como se estivesse em casa, queria que eu tapasse os ouvidos?

Os ombros de Isabella foram de novo sacudidos por um arrepio.

- Eles já nem estão mais juntos, disse, assim, eu fui entregue à mamãe e Francesco a papai, um para cada um é o justo, declarou o juiz, Francesco nasceu quando não era mais esperado, mas não tem ninguém no mundo de quem eu goste mais e de noite tenho vontade de chorar, mamãe também chora de noite, já ouvi, e sabe por quê? Porque entre ela e papai há divergências existenciais, assim disseram, significa algo para você?

- Como não, disse o homem, é uma coisa normal, as diferenças existenciais acontecem com todos, não fique preocupada.

Isabella estava de novo com as mãos na areia, mas tinha assumido uma expressão quase travessa, deu uma risadinha.

- Você é mesmo bem esperto, disse, até agora não me disse por que passa os dias sob a barraca, sabe tudo sobre mim e não fala nada de você, mas por que veio para a praia se fica o dia inteiro deitado tomando remédios, o que faz?

- Bem, murmurou o homem, para dizer da maneira mais simples, estou esperando os efeitos do urânio empobrecido e para esperá-lo é preciso paciência.

- Traduzindo...?, perguntou Isabella.

- Explicação longa, os efeitos são efeitos e para entender os resultados não há remédio senão esperar.

- Precisa esperar muito?

- Agora nem tanto, creio, acho que um mês, talvez até menos.

- E nesse meio tempo o que faz o dia inteiro aqui sob esta barraca, não se chateia?

- De modo algum, disse o homem, pratico a arte da nefelomancia.

A menina arregalou bem os olhos, fez uma careta e depois sorriu. Era a primeira vez que sorria pra valer, mostrando pequenos dentes brancos sobre os quais corria um fio metálico.

- É uma invenção nova?

- Ah não, disse ele: é coisa muito antiga, imagine que Estrabão já falava nisso, diz respeito à geografia, mas você só vai estudar Estrabão no ginásio, no primeiro grau, no máximo, se estuda um pouco de Heródoto, como você fez este ano com a professora de geografia, a geografia é uma ciência muito antiga, Isabel, existe desde sempre.

Isabel olhava para ele desconfiada.

- E em que consistiria essa coisa, como se chama?

- Nefelomancia, respondeu o homem, é uma palavra grega, nefelo significa nuvem, e mancia, adivinhar, a nefelomancia é a arte de adivinhar o futuro observando as nuvens, ou melhor, a forma das nuvens, porque nesse tipo de arte a forma é a substância, é por isso que vim passar as férias nesta praia, porque um amigo meu da Aeronáutica, especializado em meteorologia, me garantiu que, no Mediterrâneo, não existe outra costa como esta, onde as nuvens se formam no horizonte num instante. E, assim como se formaram, num instante se dissolvem, e é exatamente neste instante que um verdadeiro nefelomante deve exercer sua arte, para decifrar o que prediz a forma de uma determinada nuvem antes que o vento a dissolva, antes que se transforme em ar transparente e se converta em céu.

Isabella havia se levantado, sacudia mecanicamente a areia das perninhas magras. Arrumou o cabelo e lançou no homem um olhar cético, mas um olhar também cheio de curiosidade.

- Te dou um exemplo, disse o homem, sente-se na espreguiçadeira ao meu lado, para estudar as nuvens no horizonte antes que se desvaneçam é preciso estar sentado e concentrar-se bem.

Apontou o dedo para o mar.

- Consegue ver aquela nuvenzinha branca, ao longe?, acompanhe meu dedo, mais à direita, perto do promontório.

- Estou vendo, disse Isabella.

Era um pequeno chumaço que rolava pelo ar, longíssimo, no céu de esmalte.

- Observe-a bem, disse o homem, e reflita, para a nefelomancia é preciso uma intuição rápida, mas a reflexão é indispensável, não a perca de vista.

Isabella pôs uma das mãos em frente à testa a modo de viseira. O homem acendeu um cigarro.

- Fumar não faz bem à saúde, disse Isabella.

- Não se preocupe com aquilo que faço, concentre-se na nuvem, neste mundo existem muitas coisas que não fazem bem à saúde.

- Abriu-se de lado, exclamou Isabella, como se dela tivessem saído asas.

- Borboleta, disse o homem com segurança, e a borboleta só tem um significado, não há dúvida.

- E qual é?, perguntou Isabella.

- As pessoas que têm incompatibilidades existenciais deixam de tê-las, as pessoas separadas se reunirão e suas vidas serão graciosas como o voo de uma borboleta, Estrabão, página vinte e seis do livro principal.

- Que livro é?, perguntou Isabella.

- O livro principal de Estrabão, disse o homem, este é o título, infelizmente nunca foi traduzido para as línguas modernas, estuda-se no último ano da universidade porque só pode ser lido em grego antigo.

- E por que nunca foi traduzido?

- Porque as línguas modernas são muito apressadas, respondeu o homem, e na pressa de comunicar-se tornam-se sintéticas e, assim, perdem a análise, por exemplo, o grego antigo na declinação dos verbos tem o dual, nós só temos o plural, e quando dizemos nós, neste caso você e eu, pode significar também várias pessoas, mas os gregos antigos, que eram muito precisos, se aquela coisa que estamos fazendo ou dizendo se dá somente entre você e eu, que somos dois, usavam o dual. Por exemplo, a nefelomancia daquela nuvem só nós dois estamos fazendo, somente nós sabemos disso e para tanto tinham o dual.

- Maravilhoso, disse Isabella, e emitiu um gritinho pondo uma das mãos sobre a boca, olhe do outro lado, do outro lado!

- É um cirro, especificou o homem, um belíssimo cirro menino que, em breve, será engolido pelo céu, as pessoas comuns poderiam confundi-lo com um nimbo, mas um cirro é um cirro, sinto muito por eles, e a forma de um cirro não pode ter outro significado que não seja ele próprio, que outras nuvens não têm.

- E qual é ?, perguntou Isabella.

- Depende da forma, disse o homem, você deve interpretá-la, quero que me acompanhe, caso contrário, que tipo de nefelomantes seríamos nós.

- Me parece que está se partindo em dois, disse Isabella, veja, acaba de se partir ao meio, parecem duas ovelhinhas que trotam lado a lado.

- Dois cordeiros cirrinos, aqui tampouco há dúvidas.

- Não entendo nada.

- Fácil, disse o homem, o suave cordeiro por si só representa as evoluções da humanidade, Estrabão, página trinta e um do livro principal, observe bem, mas, quando se divide, são duas guerras que avançam paralelas, uma é justa e a outra injusta, é impossível distingui-las, coisa que, aliás, pouco nos interessa, o importante é entender que fim ambas terão, qual será o futuro delas.

Isabella olhou para ele com ar de quem aguarda uma resposta urgente.

- Um final miserável, posso garantir-lhe, querida Isabel.

- Tem certeza mesmo?, perguntou ela com voz ansiosa.

- É você quem deve me dizer, sussurrou o homem, eu agora fecho os olhos, é você quem deve interpretá-las, observe-as e espere, com paciência, mas tente captar o instante, porque depois não haverá mais tempo. O homem fechou os olhos, esticou as pernas, tapou o rosto com um chapéu e permaneceu imóvel, como se tivesse adormecido. Talvez tenha passado um minuto, pouco mais. Na praia, reinava um grande silêncio: os banhistas tinham ido ao restaurante.

- Estão se desfazendo numa espécie de farrapo, disse Isabella baixinho, como quando o rastro dos aviões se desfia, quase não dá mais para ver, veja você também.

O homem não se mexeu.

- Não é preciso, disse, Estrabão, página vinte e quatro do livro principal, ele não se enganava, a profecia do final de toda guerra ele a fez há dois mil anos, só que até então ninguém a tinha lido bem e hoje, finalmente, nós a deciframos nesta praia, nós dois.

- Sabe que você é um homem maravilhoso?, disse Isabella.

- Tenho plena consciência disso, respondeu o homem.

- Acho que está na hora de ir ao restaurante, continuou ela, talvez mamãe já esteja na mesa, preocupada, podemos continuar conversando à tarde?

- Não sei, a nefelomancia é uma arte que cansa muito, talvez de tarde eu tenha de dormir, caso contrário, hoje à noite não conseguirei nem jantar.

- É por isso que precisa tomar tanto remédio?, perguntou Isabella, por causa da nefelomancia?

O homem afastou o chapéu do rosto e a observou.

- O que você acha?, perguntou.

Isabella havia levantado, saiu do círculo de sombra, seu corpo brilhou à luz do sol.

- Amanhã eu te digo, respondeu.



[1] Trata-se do hino nacional da Itália, cuja letra foi escrita por Goffredo Mameli.


19 de junho de 2015
Antonio Tabucchi

MAO VIVE...





Pouca gente no planeta vive um cotidiano mais musical do que os 4 mil habitantes da vila de Nanjie, ou Nanjiecun, em Henan, província da China central. Todos os dias, incluindo domingos e feriados, eles acordam religiosamente às 6h15, sempre ao som de um clássico revolucionário: O Oriente é vermelho/ O sol está nascendo/ Na China brotou um Mao Tsé-tung.../ O presidente Mao ama as pessoas/ Ele é o nosso guia... Até às 17 horas, quando o hino Socialismo É Bom avisa que o expediente acabou, eles serão embalados por sucessivas peças do cancioneiro maoísta, entremeadas com discursos do próprio Timoneiro e três boletins de notícias cuidadosamente oficiais. Graças aos alto-falantes instalados nas esquinas e nos principais pontos turísticos de Nanjie, ouvir, seja a música, seja a falação, é compulsório.

Não que o fim do expediente deixe ao léu o revolucionário ainda carente. Se necessitar alimento espiritual, terá sempre à mão a contemplação dos muros. Neles abundam outdoors da Revolução Cultural, o movimento que entre 1966 e 1976 levou aos píncaros o fervor por Mao. O esfomeado poderá também correr até a praça do vilarejo e se prostrar bem perto de um branco Mao Tsé-tung, no alto de 6 metros. Aos pés dele não dá, pois a estátua é guardada dia e noite por jovenzinhos em uniforme militar, guardas vermelhos redivivos. En passant, dará uma espiada, à esquerda e à direita, em retratos de Marx, Engels, Lênin e Stálin, e dali sairá a trote para o museu que abriga a casa onde nasceu o menino Mao. Poderá passear pela réplica e, querendo, meditará passo a passo junto às diversas fases da vida revolucionária de seu líder.

Aos praticantes do turismo vermelho, as lojinhas de Nanjie oferecem boas possibilidades de escolha. Ali se compra um Mao, mas também um Buda e um Jesus. É para lembrar, quem sabe, que acreditar é preciso. A troica improvável disputa espaço com relógios digitais que trazem no fundo vermelho uma cabeça de Mao gloriosa, encimada por uma auréola flutuante de luzinhas que vão mudando de cor e de posição. Sai por uns 260 reais e não deve ser adquirido por impulso consumista ou comunista. Antes o turista precisa ver se há espaço no carro ou no ônibus, pois o mimo algo psicodélico tem 1 metro de altura.

Reduto do modelo maoísta, Nanjie é criação da unidade local do Partido Comunista da China. Em escala nacional, como se sabe, as políticas de Mao ficaram tão na moda quanto o espartilho e o voltarete. Hoje o país adota um sistema em que se pode conspurcar comunismo com capitalismo sem angústias ou crises de consciência. Para mostrar como seria se pudesse ter sido, os nostálgicos mantêm pequenas ilhas no país, espécie de parques temáticos que fazem ver, concretamente, como era bom o comunismo que não houve. Nanjie é a primeira e mais famosa dessas comunas pós-Mao. Nelas impera o sistema de coletivização do trabalho, e os operários, bons espécimes arqueológicos, recebem subvenção para oferecer suas vidas pública e privada ao controle do Estado. Oferecer é a palavra, pois conquistar uma vaga em Nanjie exige passar num duro vestibular de fidelidade ao partido.

Quem manda ali é Wang Hongbin, que está à frente da seção local do partido desde 1977. O cigarro, que ele pita à moda revolucionária, segurando-o pelo polegar e dedos médio e indicador, remete a tempos idos, assim como as quatro imagens de Mao em sua sala quase vazia. Em burocratês escorreito, ele explica que não, não existe corrupção na vila, sim, seguiremos em frente, rumo ao progresso definitivo da civilização, apesar, sim, daquela questão do empréstimo do banco.

Em 1985, na contramão dos passinhos mudancistas que a China ensaiava, Wang achou que era hora de acelerar o processo de coletivização dos meios de produção, mas, para fundar o que viria a ser o Grupo NanjieCun, a única alternativa era se valer do contrarrevolucionário método de ir ao banco falar com o gerente. Ele foi, e a resposta que obteve faria o mais sujo dos porcos de Wall Street coçar a pança em devaneio: 150 milhões de dólares.

Foi essa bolada (saldo ainda devedor) que financiou as 26 fábricas do grupo, as quais produzem medicamentos, artigos gráficos, cerveja, biscoitos, macarrão instantâneo e aguardente de sorgo de teor alcoólico nunca inferior a 56%. Todos os produtos, sem exceção, chamam-se NanjieCun. Somadas à estrutura do partido e do governo, as fábricas empregam todo o exército de mão-de-obra local, além de 5 mil trabalhadores migrantes.

A certa altura da história, Wang Hongbin percebeu, pelo andar da carruagem, que era hora de apostar na indústria do turismo. Raciocinou mais ou menos assim: se os ocidentais vivem batendo perna por vilarejos medievais, os engravatados de Beijing, a bordo de suas bmws, bem que poderiam vir conhecer a nossa brava Nanjie. Investiu em hotéis e lojas, e, segundo diz, a vila atrai 400 mil turistas por ano, a maioria chineses.

Quem trabalha em Nanjie tem casa, água, luz, aquecimento, saúde e educação gratuitos. Quem está aposentado também. Os apartamentos, de três quartos, têm mobília sempre igualzinha, para não criar inveja: geladeira, televisor, sofá de madeira e um belo relógio Mao. Até casamento é sempre coletivo. Juntar os trapinhos, só em 1° de outubro, data da fundação da República Popular.

"Viver aqui é mais fácil", diz Chen Xiu enquanto faz compras no supermercado, onde troca por mercadoria os tíquetes que recebe à guisa de dinheiro. Sim, estão vivinhos da silva os tíquetes de racionamento, aqueles que o governo central distribuía vinte anos atrás. Dinheiro mesmo, só 700 iuans por mês (180 e poucos reais). O salário sobra - já que não compra nada em Nanjie -, mas não costuma ir para a poupança, pois Chen, assim como a maioria, gosta de acreditar que os benefícios estatais jamais cessarão.

A prudência recomendaria começar um pé-de-meia, pois os dias de glória do Grupo NanjieCun parecem ter ficado lá pela década de 90. Muitas fábricas já não atendem às necessidades do mercado. O chefe do Departamento de Propaganda da comuna, Wang Zhengdong, frustrou-se ao organizar uma visita à fábrica de cerveja. Deu com a porta fechada. Em razão da escassez de demanda, ela agora só funciona de quarta a sexta. Pasmaceira idêntica atinge a fábrica de macarrão instantâneo, a menina dos olhos do grupo. "Poucos pedidos", explicou um constrangido Wang Zhengdong.

O jeito pode ser olhar para a parede, respirar fundo e botar fé nas palavras de ordem: "Tremei, reacionários nacionais e estrangeiros, com nossos esforços incansáveis, nós, o povo chinês, certamente alcançaremos nosso objetivo. Tremei, reacionários nacionais e estrangeiros, com nossos esforços incansáveis, nós, o povo chinês, certamente alcançaremos nosso objetivo. Tremei, reacionários nacionais e estrangeiros..." Agora vai, camaradas.


19 de junho de 2015
Janaína Silveira

PASSÁROS ESPERTALHÕES


Um roteiro da corrupção em Praga cheio de metáforas ornitológicas


O guia turístico Justin Svoboda veste um uniforme da Swat, o esquadrão especial da polícia norte-americana, e leva no pescoço um cachecol com as cores de todos os partidos da República Tcheca. Postado em frente a uma mansão da tranquila rua Lopatecka, nos arredores da capital, ele filosofa: “Praga é um belíssimo lugar para observar o comportamento dos pássaros da corrupção.” Depois, didático, define o comportamento da espécie: “São aves peculiares que tentam tirar o máximo das outras aves.”

A mansão em estilo moderno que deixa Svoboda tão inspirado é de propriedade do empresário e lobista Roman Janoušek, uma das personalidades mais notáveis deste país do Leste Europeu. Apelidado de “prefeito fantasma” e de Voldemort, o vilão da saga de Harry Potter, Janoušek éamicíssimo de Pavel Bém, que foi o prefeito (oficial) de Praga entre 2002 e 2010. Acusado de subornar funcionários, fraudar concorrências e lucrar com a venda de terras públicas, o empresário acabou preso no ano passado – pelo atropelamento de uma mu-lher. Ele estava embriagado e pisou mais fundo que o recomendável no acelerador do seu Porsche Cayenne.

A biografia de Janoušek e outros komptr (padrinhos), como os tchecos se referem a corruptos e mafiosos, é a matéria-prima da CorruptTour, a agência de turismo na qual Svoboda trabalha. Seu roteiro mais requisitado, que leva o nome em inglês de Crony Safari, ou Safári dos Compadres, é uma excursão aos escândalos locais. Durante quase duas horas e meia, os cartões-postais não são a praça São Venceslau, a Catedral de São Vito ou o Castelo de Praga, mas lugares que guardam a marca das celebridades de má fama.

Os tchecos são assombrados pela sensação de que uma máfia domina os negócios e a administração. Como lembrou o New York Times, um ditado dos tempos do comunismo nunca saiu de moda: “Aquele que não rouba do Estado rouba da própria família.” As cores no cachecol de Svoboda servem para indicar que o fenômeno, nesta era democrática, é pluripartidário. Seu mais recente protagonista foi uma ave de alta plumagem, o ex-primeiro-ministro Petr Nečas, do conservador Partido Democrático Cívico.

Há três anos, Nečas assumiu o comando do Executivo com uma plataforma de combate à corrupção. Em junho, foi obrigado a renunciar, acusado de corrupção e abuso de poder. Uma operação da polícia e da promotoria prendeu sua chefe de gabinete e amante, a loura e curvilínea Jana Nagyová. Ela foi acusada de corromper parlamentares e de ter dado ordens ilegais de espionagem ao serviço de inteligência militar. Entre os bisbilhotados estava a mulher do premiê – e o casal acabou se divorciando.



aquela quarta-feira de agosto, um ônibus da CorruptTour levava vinte interessados no safári, a maioria turistas alemães. “Nosso hábitat da corrupção é muito bem conservado. Por favor, nos ajude a protegê-lo”, anunciou Petr Sourek, dono da agência e mentor da empreitada que usa metáforas ornitológicas tchecas para descrever maracutaias universais. Como Svoboda, ele também veste um colete à prova de balas. Os dois dividem o microfone na descrição das atrações.

O ônibus passa por Blanka, a “mãe de todos os túneis”. A obra resultará em um dos maiores túneis urbanos da Europa, com 6,4 quilômetros de extensão. Antes calculados em 22 bilhões de coroas, os gastos já ultrapassaram a marca de 37 bilhões – mais de 4,6 bilhões de reais. Sourek pede a atenção dos presentes ao concreto onde foi enterrado dinheiro público, inclusive da União Europeia. O caso levou à prisão o deputado e ex-governador da Boê-mia Central David Rath.

Petr Sourek, de 38 anos, trouxe do teatro a faceta performática da trupe da CorruptTour. O passeio custa 30 euros e proporciona uma visão incomum da cidade. Uma das paradas é uma rua residencial com um conjunto de apartamentos populares. Um deles é a residência declarada do empresário Ivo Rittig, chamada de “ninho paralelo” porque ele passa a maior parte do ano em Mônaco. Entre os negócios suspeitos de Rittig está a exploração do transporte público de Praga.

Em outra parte da cidade, o veículo para em frente ao verdadeiro domicílio de Rittig, bem mais vistoso. Os turistas são orientados a não descer do ônibus para não perturbar o pássaro em seu hábitat natural. “É capaz de ele ficar agressivo”, alerta Sourek. Na tranquila rua Rohácova, fica o lar de Martin Vnouček, um laranja que tem mais de setenta empresas em seu nome. O guia Svoboda conta que o pássaro Vnouček é hábil na arte de colecionar “sementes”.

Na última parada, o ônibus estaciona à beira de uma floresta. Os turistas são instruídos a seguir uma trilha bucólica. Depois de quinze minutos, chegam ao grand finale do safári, o mausoléu que Martin Roman mandou construir para si e sua família descansarem quando deixarem este mundo. Ex-diretor da estatal de energia CEZ, Roman foi acusado de financiar partidos políticos. De volta ao ônibus, o turista pode manipular um gerador de ruído, usado para driblar grampos telefônicos, além de comprar bottons e camisetas da CorruptTour.

Por coincidência, Petr Sourek havia convidado para o passeio os intérpretes Michaela Cerna e Milan Pichy, que falam português. Sourek explicou que, desde que a fama de sua agência chegou à imprensa internacional, ele tem recebido e-mails de brasileiros que pedem um roteiro adaptado a seu país. “Dizem que no Brasil vamos encontrar locais de interesse por toda parte.”

Por enquanto, os dois intérpretes receberam a missão de elaborar uma versão do roteiro de Praga para turistas brasileiros. A expectativa é que consigam adaptar as explicações baseadas na passarada tcheca para o público tupiniquim. Não é nada fácil para um visitante de primeira viagem entender a gama de trocadilhos com nomes de aves. O controvertido político Tomáš Hrdlička, por exemplo, tem um sobrenome exótico que significa “rolinha”. Já o lobista Janoušek costumava chamar o ex-prefeito de Praga pelo codinome fofo de Kolibřík, beija-flor. Milan Pichy conhece a expressão “mamar nas tetas” e talvez a inclua nas anedotas do Crony Safari. Já Michaela pensa em piadas com animais da fauna brasileira, como cutia e preguiça.

19 de junho de 2015

TAMINE MAKLOUF